Nunca mais me posso esquecer
Tramada a infância e as associações que nunca sabemos que estamos a fazer e que vão ficar, para sempre, coladas ao paladar e aos cheiros
Não há bacalhau, nem panados, nem tortilha, como nos almoços da minha avó. Por muito que me esforce por fazer parecido, não há azulejo na minha cozinha que vacile sempre na mesma posição, nem há apoio de mesa que faça aquele ranger, de todas as vezes. Tramada a infância e as associações que nunca sabemos que estamos a fazer e que vão ficar, para sempre, coladas ao paladar e aos cheiros.
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Não há bacalhau, nem panados, nem tortilha, como nos almoços da minha avó. Por muito que me esforce por fazer parecido, não há azulejo na minha cozinha que vacile sempre na mesma posição, nem há apoio de mesa que faça aquele ranger, de todas as vezes. Tramada a infância e as associações que nunca sabemos que estamos a fazer e que vão ficar, para sempre, coladas ao paladar e aos cheiros.
Nunca mais me esqueci do toque do cabelo do meu avô, de cada vez que lhe amparava a cabeça, quando ele a encostava, devagarinho, ao sofá. Acho comovente a forma como a memória nos vinca os afectos de maneira a que possamos lidar com sensações das pessoas, depois de já não as termos. Depois de o meu avô morrer, sonhei várias vezes com aquele toque de cabelo e com a minha mão pousada na perna dele, enquanto o ouvia falar. Falha-me a parte em que ele pousava a mão por cima da minha e, há vários anos, que defino isso como profundamente injusto. Gosto que os sonhos me permitam prolongar as sensações terrenas e deixar que elas estejam nos meus dias, que é como quem diz noites, para sempre, e lembro-me de, desde muito nova, ficar triste de cada vez que os sonhos não vinham.
Espero o dia em que volte a lembrar-me do toque da mão do meu avô por cima da minha porque, por alguma razão, me fechei naquele casa de banho, a meio dos meus sete anos, no dia em que a casa emudeceu para um silêncio que nunca tinha feito antes, por alguma razão eu me fechei naquela casa de banho e pedi, vezes sem conta, no silêncio dos pequeninos, “nunca mais me posso esquecer, nunca mais me posso esquecer”. A prece para “nunca mais me esquecer” — da voz, do cheiro, do toque — nascia no dia em que o silêncio que a casa nunca tinha feito antes queria dizer que alguma coisa se passava e que eu não queria crer que se passasse.
Tenho muito medo de me esquecer da voz do meu avô. De cada vez que mergulho no mundo dos sonhos, peço para voltar a sentir a mão dele por cima da minha, fosse isso um passo para a voz dele nunca mais sair de mim, porque o toque do cabelo dele ficou mas a voz tem muito mais volume que isso nas sensações dos sonhos que nunca vou querer perder, como se lhes somasse uma auréola de recordação igual à do cinema e olhasse tudo com uma nitidez que é capaz de juntar cheiro e paladar, para sempre.