Um compêndio do coração

José Eduardo Agualusa resgata uma das personagens mais fascinantes da história de Portugal em África

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História, lendas e reflexões intemporais misturam-se neste romance de aventuras de José Eduardo Agualusa Miguel Manso

De vez em quando, as coisas não corriam de feição no Império Português em África. O novo romance de José Eduardo Agualusa relembra-nos o tempo em que os holandeses cobiçavam Luanda, percebendo as fraquezas da pequena metrópole tomada pelos Filipes de Castela. Longe da pequenez da capital, numa altura em que o século XVII ainda era quase uma novidade, um padre pernambucano chega a Angola e tem uma visão que não é a de Nossa Senhora: “Na manhã em que pela primeira vez vi Ginga, fazia um mar liso e leve e tão cheio de luz que parecia que dentro dele um outro sol se levantava. Dizem os marinheiros que um mar assim está sob o domínio de Galena, uma das nereidas, ou sereias, cujo nome, em grego, tem por significado calmaria luminosa, a calmaria do mar inundado de sol.”

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De vez em quando, as coisas não corriam de feição no Império Português em África. O novo romance de José Eduardo Agualusa relembra-nos o tempo em que os holandeses cobiçavam Luanda, percebendo as fraquezas da pequena metrópole tomada pelos Filipes de Castela. Longe da pequenez da capital, numa altura em que o século XVII ainda era quase uma novidade, um padre pernambucano chega a Angola e tem uma visão que não é a de Nossa Senhora: “Na manhã em que pela primeira vez vi Ginga, fazia um mar liso e leve e tão cheio de luz que parecia que dentro dele um outro sol se levantava. Dizem os marinheiros que um mar assim está sob o domínio de Galena, uma das nereidas, ou sereias, cujo nome, em grego, tem por significado calmaria luminosa, a calmaria do mar inundado de sol.”

O relato celestial de Francisco José de Santa Cruz não vai permanecer idílico, pois em breve, quando a luz se dissipar, perceberá que avistou sem ainda o desconfiar uma das mulheres mais controversas da história de Portugal em África ou de África em Portugal. Dona Ana de Sousa, ou Ngola Ana Nzinga Mbande, ou Rainha Ginga (1583-1663) foi uma rainha dos reinos do Ndongo e de Matamba, no Sudoeste de África. O seu título real na língua quimbundo — Ngola — foi o nome utilizado pelos portugueses para denominar Angola.

Ginga, que se tornou mito na história de Angola, é-nos descrita nalgumas destas páginas envolta na geoestratégia da época. Quando escolhe ficar ao lado dela, trabalhando como seu secretário, o missionário Francisco José de Santa Cruz está a fazer uma escolha pecaminosa: “O Paraíso deixara de ser para mim algo abstrato e remoto. O Inferno também. O Paraíso era ela e o ar que ela respirava, e o Inferno a ausência dela. A toda a volta só havia demónios.”

Há nestes primeiros capítulos do relato do padre pernambucano o recurso à técnica da anestesia, o que nos permite desprendermo-nos da realidade e, enfeitiçados de encantos, prosseguirmos atrás dele. Neste contexto a tarefa é fácil, prazenteira e aceite pelo leitor de forma voluntária. O ponto de viragem acontece no capítulo quinto, onde se escreve que “há mentiras que resgatam e há verdade que escravizam.” É nesta altura que começam a saltar perigos dos caminhos que podem ser mosquitos ou leões, inimigos que eram aliados, piratas lendários quando a estrada é feita de mar: “Somos maus pela mesma razão que as pedras não caem para cima, quando as soltamos perdendo-se no céu. Somos maus por indolência.”

A Rainha Ginga

é um romance de aventuras bem escrito e sem retóricas falsamente sofisticadas onde se misturam lendas, figuras históricas e reflexões intemporais precisamente sobre o tempo. Escreve o padre Francisco: “Não habitamos ao longo da vida um único corpo, e sim inúmeros, um diverso a cada instante.” Esta é uma vida pacificada por amores e desamores, sobressaltada pelo adrenalina que o cruzamento com verdadeiros piratas lhe deu, com uma duração felizmente grande para se poder distanciar, desprender. Francisco José de Santa Cruz é um achado de personagem na triangulação quase global que a sua biografia permite, unindo Portugal, Brasil e Angola.

Quase no final do livro, temos notícias frescas de Ginga: a rainha, que um dia quis ser tratada por rei e que chegou a ter não um séquito de aias mas de aios, morre aos 80 anos em paz com os portugueses e com a Igreja Católica.

Um dos trunfos do romance resulta disto: a sua figura tutelar, porque pertence quase ao domínio da lenda, aparece e desaparece e é-nos contada por alguém que, embora tenha respirado o mesmo ar que ela, aplica uma patine ao seu relato, não a deixando sair da imagem que a história fez dela. Aqui e ali o pitoresco e o detalhe de riquezas, modos de vida, datas, façanhas, salpicam o livro. Mas são apenas pintas, antes fruto do fascínio do próprio Agualusa em partilhar o muito que estudou e descobriu na preparação do livro — andanças e trabalhos que, de resto, muito lhe agradecemos.