Sou de onde escrevo
Não pertencer a nenhum lugar e poder ser de todos com uma liberdade só imaginável em Babel. Americana de origem indiana, natural de Londres mas a viver em Roma, Jhumpa Lahiri, outra das presenças desta FLIP, tem feito da sua biografia um lugar de muitas personagens. Em A Planície volta ao tema com uma saga de irmãos afastados pelas ideias e pela geografia. E agora? Tudo será em italiano.
A geografia importa para a história porque tudo na escrita desta mulher de 47 anos parte desta identidade fragmentada e ainda em construção. Roma, onde vive há dois anos com o marido, o jornalista Alberto Vourvoulias-Bush, e os dois filhos, Octavio e Noor, de 12 e nove anos, pode não ser a última paisagem; a América foi aquela onde aprendeu a ler e a escrever numa língua diferente daquela em que aprendeu a ouvir e a falar, o bengali em que o avô materno lhe contou as primeiras histórias. “Sim, a língua é determinante para formar uma identidade”, continua, voz clara, neste momento de pausa na ficção em que questiona, num ensaio, a possibilidade de ter outra vida sempre que se ganha outra língua. “Agora tenho o italiano”, diz Nilanjana Sudeshna Lahiri, a rapariga com nome quase impossível de pronunciar pelas outras crianças do infantário onde andou, em Rhode Island. A professora chamou-lhe Jhumpa, para simplificar. A filha mais velha de um bibliotecário e de uma amadora de poesia seria sempre alguém “sem habilidade para pertencer a um sítio” e esse lado autobiográfico tem sido o seu material de escrita, com personagens que inventa para paisagens muito reais. De uma forma simplificada, pode-se afirmar que na escrita de Jhumpa Lahiri quase tudo persiste e o que muda são os nomes das personagens. Tem sido assim até agora.
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A geografia importa para a história porque tudo na escrita desta mulher de 47 anos parte desta identidade fragmentada e ainda em construção. Roma, onde vive há dois anos com o marido, o jornalista Alberto Vourvoulias-Bush, e os dois filhos, Octavio e Noor, de 12 e nove anos, pode não ser a última paisagem; a América foi aquela onde aprendeu a ler e a escrever numa língua diferente daquela em que aprendeu a ouvir e a falar, o bengali em que o avô materno lhe contou as primeiras histórias. “Sim, a língua é determinante para formar uma identidade”, continua, voz clara, neste momento de pausa na ficção em que questiona, num ensaio, a possibilidade de ter outra vida sempre que se ganha outra língua. “Agora tenho o italiano”, diz Nilanjana Sudeshna Lahiri, a rapariga com nome quase impossível de pronunciar pelas outras crianças do infantário onde andou, em Rhode Island. A professora chamou-lhe Jhumpa, para simplificar. A filha mais velha de um bibliotecário e de uma amadora de poesia seria sempre alguém “sem habilidade para pertencer a um sítio” e esse lado autobiográfico tem sido o seu material de escrita, com personagens que inventa para paisagens muito reais. De uma forma simplificada, pode-se afirmar que na escrita de Jhumpa Lahiri quase tudo persiste e o que muda são os nomes das personagens. Tem sido assim até agora.
E tem sido um sucesso, ainda que apenas com quatro livros e alguns ensaios, mais uma ou outra entrevista a autores onde tenta perceber cada universo de escrita. “Não tenho uma rotina, mas tento manter uma ligação diária com o trabalho. Sejam os 15 minutos em que penso na história ou as três a quatro horas em que não levanto a cabeça do papel”, conta numa conversa com medo de repetições. “Parece que estamos sempre a dizer as mesmas coisas…” Não será assim. Contará de Pessoa e de Tabucchi, de como a escrita pode ser a aprendizagem de outra identidade ou de muitas. Na mesma língua ou numa língua que deixou de ser estranha. “É como sair de uma prisão”, acrescenta.
Ao primeiro livro, Intérprete de Enfermidades, publicado em 1999 (em Portugal saiu dois anos depois pela D. Quixote), Jhumpa Lahiri ganhou o Pulitzer para ficção e não mais deixou de estar na lista dos premiados, dos que mais vendem, dos mais aguardados entre os escritores da América. É uma norte-americana de origem indiana que escolheu falar da imigração ou emigração; da quebra de elos, familiares, políticos, culturais; da perda; de como é ser indiano na América, em narrativas realistas, com uma escrita sem experimentalismos ou jogos de palavras em que a estranheza e o toque de exotismo vêm da sensação do sentimento de se ser um intruso no mundo onde se vive. No caso, ser-se indiano na América.
Pertencer ou não pertencer
Parace fatalismo, mas o universo criativo não se separa do seu atlas real. Tem sido assim desde o início, quando, em criança tímida, começou a escrever para socializar. A solidão do acto viria mais tarde, mas a grande questão manteve-se. Como dizer a diferença e ser aceite? Começou em contos que saíram em revistas como a New Yorker ou a Harvard Review depois de anos a ser rejeitada. Nove foram reunidos no tal volume Intérprete de Enfermidades, que, além do Pulitzer, ganhou também o PEN/Hemingway. “O que liga as personagens, o que as magoa, o que as faz viver com alguém ou deixar de viver com alguém. O que as leva a sair. Interessam-me as conexões, as alianças. O que une duas pessoas apesar de haver um oceano a separá-las. Explorar as motivações mais subtis”, conta ao Ípsilon.
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E no último livro, como no primeiro, a primeira página, as primeiras linhas vão para o cenário, como se ele ditasse o que se segue. “A leste do Tolly Club, depois de a Deshapran Sasmal Road bifurcar, há uma pequena mesquita. Uma curva leva a um enclave sossegado. Um enxame de vielas estreitas e casas modestas de classe média.” Estamos n’A Planície, o seu último romance agora editado em Portugal e o espaço que vai determinar o destino dos irmãos quase gémeos, Shubash e Udayan. É como olhar para um postal onde se percebem contágios e a relação entre paisagem, linguagem e acção. A ordem pouco importa… É do lugar onde está que avista, como se tudo acontecesse outra vez, a saga de dois irmãos de Calcutá, a cidade natal dos seus pais – dois rapazes que crescem com uma existência quase gémea, mas que acabam a separar-se. Um vai para Rhode Island seguir a sua ambição pelo saber científico, o outro fica em Calcutá envolvido no movimento revoltoso naxalita, de inspiração maoísta, que pretendia mudar a sociedade indiana no início da década de 70.
Publicado em 2013, A Planície foi finalista do Booker Prize mas perdeu para The Luminaries, da neo-zelandesa Eleanor Catton. As duas vão agora encontrar-se na FLIP, o lugar onde Jhumpa irá contar, numa conversa marcada para o dia 2 de Agosto, como tudo está a mudar para si. Para onde ainda não sabe. “Foi um livro que me levou tempo. Uns dez anos. Parte de um acontecimento que fui ouvindo contar desde pequena e que aconteceu no bairro dos meus pais. Contava-se que alguns rapazes estavam envolvidos naquele movimento e um dia a polícia rodeou o bairro e eles foram encontrados mortos. Dizia-se que foram colocados perante a família, como foram feitos reféns. Ouvi muitos detalhes. Muitos foram preservados no meu romance. E não fazia sentido colocá-los noutro lugar. Construí a paisagem a partir da minha memória, do que vi depois, e tentei dar-lhe um sentido a partir de um incidente inicial que condiciona o resto da história. O que tive de inventar foram as personagens, porque eu não conhecia aquelas pessoas, não conhecia as vítimas daquela execução, nem a família.”
A crítica não foi unânime na recepção. O aplauso andou a par de quem considerou que a capacidade inventiva de Jhumpa se tinha esgotado. Com o romance anterior, Namesake (2003), também ele uma saga de imigrantes indianos na América, como já o havia sido Numa Terra Estranha (2008), outra colectânea de contos. “Neste livro penso mais profundamente sobre a memória, sobre como o tempo nos muda ou abandona, ou como se esvai, o que representa enquanto trauma devido a qualquer tipo de perda: a morte de alguém, o deixar o país, ficar sem referências, sem orientação em relação ao mundo. Quem sofre perdas muito profundas tem uma relação mais dependente com o tempo, o passado torna-se muito significativo por ser a dimensão que contém o bem perdido. Este livro é sobre isso.”
Todos foram, pode-se acrescentar, só que neste isso perde o carácter de novidade. Saberá Jhumpa Laihiri escrever sobre a mesma coisa parecendo que está a escrever um novo livro? Ela está em fase de procura de resposta. “Passados dois meses de chegar a Roma surgiu-me a ideia de uma história e, quando fui escrever, ela apareceu-me em italiano. Estava a tomar notas e a história ganhou corpo, evoluiu de forma tão estranha e poderosa que me deixou meio atónita. Pus-me, então, uma série de questões sobre a língua e a minha relação com o inglês e com o bengali, e agora com o italiano; sobre o que tudo isso significava para mim enquanto pessoa e enquanto escritora.”
Disso, e com a ajuda de referências como Fernando Pessoa, Antonio Tabucchi ou Cesare Pavese, fez um ensaio. Será o seu próximo livro. Uma série de reflexões sobre identidades criativas. O que é ser-se uma multiplicidade ou, como ela diz, ter a tal inabilidade para pertencer. É dessa forma que se diagnostica. Foge à questão do que é ser indo-americana. “Não é o mais importante. O que importa é o que isso faz de nós.” Numa família, num país, num universo criativo. Shubash, Udayin ou Gauri, a mulher com que ambos acabam por casar, estão presos à tragédia da ligação ao lugar.