Uma opção melhor do que a guerra: falar com o Hamas
Há pouco tempo a perder porque estamos a chegar a um momento em que a solução dos dois Estados deixará de ser possível.
Contudo, pode haver uma alternativa que seja capaz de contribuir para pôr fim ao impasse e encorajar o progresso em direcção a uma verdadeira solução de dois Estados para o imbróglio. Mas, para poder ter sucesso, o Presidente Obama teria de ter mudado a política americana face ao Hamas – e, se o fizesse, a Europa segui-lo-ia. Já tivemos indícios do que essa mudança poderia ser possível, nas suas declarações sobre a questão no passado.
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Contudo, pode haver uma alternativa que seja capaz de contribuir para pôr fim ao impasse e encorajar o progresso em direcção a uma verdadeira solução de dois Estados para o imbróglio. Mas, para poder ter sucesso, o Presidente Obama teria de ter mudado a política americana face ao Hamas – e, se o fizesse, a Europa segui-lo-ia. Já tivemos indícios do que essa mudança poderia ser possível, nas suas declarações sobre a questão no passado.
No seu famoso discurso do Cairo, em 2009, sobre “Um Novo Começo” o Presidente americano disse que a América não viraria as costas “às legítimas aspirações dos palestinianos pela dignidade”. Numa palavra, pela primeira vez um Presidente americano reconheceu que havia uma questão palestiniana em relação à qual os Estados Unidos poderiam ter uma resposta. No seu discurso, depois de sublinhar “os laços profundos da América com Israel”, o Presidente foi ao ponto de afirmar que os palestinianos “sofrem pequenas e grandes humilhações que são a consequência da ocupação”. “Portanto, que não fiquem dúvidas: a situação dos palestinianos é intolerável”. O Presidente também disse que “ a América não virará as costas à legítima aspiração dos palestinianos pela dignidade, oportunidade e por um Estado que seja deles”.
É uma tragédia ter de admitir que, cinco anos depois deste discurso histórico, há poucos sinais de que o Presidente Obama não vai, mesmo, virar as costas aos palestinianos, sobretudo depois das suas iniciativas para a paz terem sido tão brutalmente ignoradas no início deste ano. Se o seu discurso do Cairo significa mais do que mera retórica, chegou o momento de mostrar que se preocupa com o sofrimento dos palestinianos, garantindo que o Governo de Israel compreenda totalmente o preço que pagará por continuar a sua guerra contra Gaza. O Presidente pode fazê-lo? Sim, pode! O que precisaria de fazer?
Depois de garantir que a violência em Gaza termine, deve mudar a sua estratégia para resolver a questão palestiniana e conseguir uma solução assente em dois Estados. Uma estratégia que, até agora, tem assentado apenas nas negociações com um Mahmoud Abbas enfraquecido e com a OLP, na Autoridade Palestiniana, mesmo que tenha obtido poucos resultados palpáveis. Pelo contrário, o Presidente Obama devia reconhecer também o Hamas como um interlocutor legítimo, ao lado da Autoridade, e deixar de opor-se à unidade palestiniana.
O Hamas, por seu lado, deve pôr fim aos disparos de rockets contra Israel e juntar-se aos movimentos palestinianos pacíficos para encontrar uma forma de avançar, aprendendo, como o Presidente sugeriu há cinco anos no Cairo, com o êxito dos movimentos cívicos afro-americanos e os movimentos civis da África do Sul. Com um governo de unidade, juntando a OLP e o Hamas, que deveria ser reconhecido pela comunidade internacional, a liderança palestiniana estaria numa posição muito mais forte para negociar com Israel e aceitar os compromissos necessários para uma paz duradoura e segura.
No entanto, para conseguir tudo isto, os EUA e a União Europeia precisam de rejeitar o discurso de Israel segundo o qual o Hamas é apenas uma organização terrorista. Se os jihadistas radicais não têm tido influência, pelo menos até agora, na Palestina, isso deve-se em primeiro lugar ao facto de o Hamas ter optado há cerca de uma década por transformar-se num movimento político e abandonar o terrorismo. Comparando a situação com outros países da região, que lutam contra o extremismo violento, é claro até que ponto foi importante esta decisão do Hamas. Ironicamente, o Governo israelita sabe isto, e é por isso que, apesar da retórica, não quer que o Hamas seja destruído.
O Hamas, pelo seu lado, pode ser persuadido a aceitar uma solução que garanta a segurança de Israel e permita a criação de uma Palestina independente e democrática, se sentir as garantias apropriadas para a sua sobrevivência e a sua participação num processo político viável no futuro.
Além disso, o reconhecimento do Hamas pelos EUA e pela UE e a participação do movimento nas negociações de paz acabariam por isolar os seus próprios elementos radicais e outros grupos radicais em Gaza e na Margem Ocidental, que se opõem a um verdadeiro acordo de paz. O fim ao bloqueio de Gaza mantido por Israel e pelo regime militar egípcio – uma das exigências fundamentais do Hamas para uma trégua duradoura – também contribuiria para uma sociedade mais aberta e mais plural na qual a hegemonia do Hamas poderia ser desafiada mais facilmente e mais democraticamente. No entanto, para conseguir que esta estratégia tenha sucesso, o regime de Sissi, agora no poder no Cairo, teria de abandonar o seu antagonismo em relação ao Hamas, um antagonismo que, nestes últimos meses, tornou o isolamento de Gaza ainda pior.
Há pouco tempo a perder porque estamos a chegar a um momento em que a solução dos dois Estados deixará de ser possível. Não restam dúvidas de que é isto que a direita israelita deseja, com o seu sonho de um Grande Israel e com a continuação da construção dos colonatos, confiscação de território palestiniano e a expulsão dos palestinianos de Jerusalém Este. Do seu ponto de vista, a guerra contra Gaza é uma forma de opor-se simultaneamente a um governo unitário e a uma solução de dois Estados. No entanto, para eles, a alternativa seria um pesadelo, na medida em que continuar a guerra contra Gaza radicalizaria a opinião dos palestinianos, persuadindo-os de que a solução de dois Estados já não é possível.
Se isso acontecesse, os palestinianos mudariam do objectivo da independência nacional para a exigência do respeito pelos direitos civis num Estado único dominado por Israel no qual juntariam as suas forças às dos árabes israelitas, transformando-se na maioria da população. E isso faria chegar o dia em que a discriminação contra os palestinianos deixaria de ser tolerada, mesmo pelos judeus israelitas, levando à criação de um Estados multicultural e multirreligioso. Este seria exactamente o resultado oposto ao pretendido pelos que estão no poder em Israel, que defendem um Estado Judaico.
Se o Presidente Obama ainda acredita que a solução dos dois Estados é a melhor opção para garantir a segurança de Israel e, ao mesmo tempo, pôr fim ao sofrimento e à humilhação dos palestinianos, terá de agir depressa. Temos de ter a esperança de que esperar que Obama faça aquilo que ele sabe que é preciso fazer para resolver a questão israelo-palestiniana, não se transforme numa “espera de Godot”. Mesmo temendo que essa esperança possa pode vir a ser em vão.
Antigo director do Instituto de Segurança da União Europeia