A garganta muito funda de Colin Stetson e a hiper-África de Selma Uamusse

Na transição de Porto Covo para Sines, o Festival Músicas do Mundo tinha guardados dois concertos capazes de questionar o discernimento de olhos e ouvidos: o saxofone que parecia uma banda de Colin Stetson e a África em expansão de Selma Uamusse.

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Comecemos por Colin Stetson. Começa a ser habitual que alguns dos momentos mais intensos do FMM passem pelo auditório do Centro de Artes, onde a distância entre músicos e assistência encurta drasticamente e a música enche todo o espaço em volta. Stetson é um saxofonista incomum, fabricando uma música circular (como a técnica de respiração que lhe permite um sopro contínuo de minutos a fio), e alterna entre um vulgar saxofone alto e um barítono de proporções titânicas.

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Comecemos por Colin Stetson. Começa a ser habitual que alguns dos momentos mais intensos do FMM passem pelo auditório do Centro de Artes, onde a distância entre músicos e assistência encurta drasticamente e a música enche todo o espaço em volta. Stetson é um saxofonista incomum, fabricando uma música circular (como a técnica de respiração que lhe permite um sopro contínuo de minutos a fio), e alterna entre um vulgar saxofone alto e um barítono de proporções titânicas.

Colaborador de gente como Tom Waits ou Arcade Fire, Colin parece ter todo um mundo a desprender-se-lhe da garganta. E não é exagero: não são apenas os saxofones em que constrói pequenos loops mutantes que tanto podem soar a transposições de temas da Penguin Cafe Orchestra, ao jazz-punk dos The Thing (do ligeiramente mais incendiário Mats Gustafsson) ou trechos das Suites para Violoncelo de Bach transformadas por uma espantosa rudeza. É muito mais do que isso.

Aquilo que Stetson nos mostrou na segunda-feira é uma linguagem pessoal em que esses movimentos circulares fazem crer estarmos a ouvir dois ou três saxofones em simultâneo, ao mesmo tempo que, com recurso a um microfone-coleira (é a melhor descrição que se arranja para um dispositivo que capta as notas vindas das cordas vocais), vai entoando pequenas melodias que ficam a pairar por detrás da robustez do saxofone. Alguém se lembrava de Kimmo Pohjonen, e com razão: música extremamente física, exploração do instrumento para lá das suas possibilidades óbvias e essa voz que se vai infiltrando no todo como se fosse uma extensão natural de tudo isto. Um prodígio sem a musicalidade diminuída.

Na véspera, a despedida de Porto Covo alcançaria igualmente estádios pouco normais de originalidade musical com o triângulo jazz-soul-África gizado por Selma Uamusse, cantora dos Wray Gunn nascida em Moçambique que agora se apresenta a solo à frente de uma hiper-África. É daí que tudo parte, com letras em xangana, um corpo rítmico de origem africana indesmentível e a toada mantida por instrumentos como a timbila ou a mbira. Mas tudo aquilo que se passa em seguida, de músicas de trabalho a baladas que abrem um fosso entre os instrumentos para a voz soberba de Selma tentar encontrar o caminho até Nina Simone, a andamentos funk que Angélique Kidjo tomaria por filhos, a temas inspirados na música do Mali ou detritos de funk-jazz-espacial, aquilo que Selma oferece é uma permanente confusão dos sentidos, num deslumbramento que se renova a cada segundo perante a revelação de outros mundos. Falta algum polimento instrumental, mas a ideia de uma música celebratória que não abdica de percorrer um caminho que não é a direito é tão intrigante quanto sedutora.

Hora de celebrar

Celebração, de resto, foi coisa que não escasseou nesta semana de festival – e que se prolonga até sábado, em Sines. Em grande parte, devido à presença sul-americana no FMM. Ainda em Porto Covo, os colombianos Cimarrón mostraram ser uma banda a dois tempos: relativamente convencionais quando ao serviço da voz de Anaveydober Triana; um assombro de execução instrumental quando deixados à solta. A música llanera do grupo transforma-se, neste segundo registo, numa notável locomotiva conduzida pelo virtuosismo altamente melódico dos instrumentos de cordas (bandola e do cuatro), numa convocação muito especial do jazz manouche de Django Reinhardt cruzado com uma noção de western colombiano e chorinho brasileiro. Uma torrente de notas tocadas a uma velocidade estonteante e a deslumbrar de tal maneira olhos e ouvidos que o corpo mal se lembra que poderia estar a dançar.

Já a actuação da argentina La Yegros, na terça-feira, no Castelo de Sines, far-se-ia ao ritmo da cumbia, essa música de fama popularucha e movida a acordeão elevada a grande expressão moderna da América Latina na última década. Na versão da banda comandada por Mariana Yegros, os ritmos sofrem injecções regulares de jungle e drum & bass, e a voz cede ao rap, mas sempre com o cuidado de não manchar uma música de clara vocação pop, enquanto zona de transição da paisagem rural para a paisagem urbana. Como ajuda para a festa, passou ainda pelo palco a bomba de energia Cata Pirata, vocalista dos sul-africanos Skip & Die.

Há ainda a lembrar as histórias invariavelmente sobre amor (mas também sobre sogras) da dupla polaca Karolina Cicha & Bart Palyga, e a aposta do FMM num espectáculo “fora de formato”, vindo de Kerala, na Índia, história clássica de luta entre Bem e Mal encarnada nas figuras do demónio Darika e da deusa Kali. Um ritual primitivo, ritualístico, que ajudou a desmontar a ideia de que neste circuito apena se vêem produções já muito estilizadas e adaptadas ao campo de visão do olho europeu.

O público que sabe

O antídoto para o cansaço de que acima se falava e que o FMM fornece como shot nos últimos concertos da noite foi amplamente conseguido na terça-feira pela amálgama dançante dos Debademba, junção de uma guitarra vinda do Burkina Faso (mas que arrasta Led Zeppelin e surf à sua passagem) e de uma voz do Mali de vigor inesgotável. Os dois (acompanhados de banda) parecem estar sobre brasas o concerto todo, cuspindo temas atrás de temas em que alguma redundância aparece sempre disfarçada pelo andamento viciante.

Também do Mali assistimos à cantora Mamani Keitab (em substituição de Oliver Mtukudzi, retido no Zimbabwe por falta de visto), cantora que faria um figurão em Sines não fosse já terem passado por este palco Rokia Traoré, Oumou Sangaré ou Fatoumata Diawara (que regressa no sábado). O público formado pelo festival tornou-se, de facto, exigente e conhecedor, aderindo mas não esquecendo que as vozes do Mali têm tendência a ser transcendentes e esta é “apenas” incrivelmente boa.

Dada, precisamente, essa aposta na formação de um público conhecedor e exigente (algo impensável há dez anos), estranha-se que, ao contrário de edições anteriores, em 2014 a entrada nos concertos do Castelo de Sines esteja vedada pelas autoridades a menores de seis anos, invocando razões de segurança (no mesmíssimo espaço em que, horas antes, e com entrada livre, não há limitações nos concertos não-pagos).

Na noite de terça-feira era, por isso, fácil dar com várias mães instaladas à entrada do recinto, de guarda às crianças e de bilhete ou pulseira na mão. O FMM, que sempre se distinguiu por um festival de descobertas e fora dos formatos habituais, depois de no ano passado sofrer com inspecções exaustivas que acumulavam filas de mais de uma hora à entrada, corre o risco de, aos poucos, se transformar noutra coisa que ainda não sabemos o que é.