Infâncias de vitrine

Em pleno século XX, os filhos dos doentes de lepra eram educados num mundo à parte e mostrados aos pais através do vidro. Na propaganda do Estado Novo, eles eram os afortunados “filhos sãos”.

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Quem atentasse naquelas crianças, nos dias em que eram levadas na carrinha cinzenta de capot arredondado, veria meninas de saia de pregas cinzenta, camisa branca de gola com casaco de malha, soquetes e sapatinhos de fivela, laçarote na cabeça, os meninos de calção, camisa e casaco de malha, meia e sapatinho de atacadores, muito aprumados. Sem nada saber sobre a história daquelas crianças perceberia, só de olhar, que aquela devia ser uma ocasião especial. E era. 

Antes de chegarem já estavam cheios os bancos de madeira de um lado e de outro, ocupados por quem os queria ver, como se estivessem à espera de um espectáculo, de uma entrada em cena. Abria-se a porta e os meninos bem vestidos entravam naquele rectângulo central com paredes de vidros transparentes dos dois lados, como se fosse uma montra, numa espécie de aquário onde os colocavam com periodicidades variáveis, alguns uma vez por semana, outros uma vez por mês, duas vezes por ano, uma vez por ano, uma vez na vida. Nunca.

Lá dentro, as vigilantes que traziam os meninos indicavam aos pais, sentados naquela espécie de plateia familiar do outro lado do vidro, quem eram os seus filhos; aos meninos apontavam-lhes quem eram os seus pais. Alguns pais manifestavam vontade de lhes fazer festas, de os beijar. As funcionárias faziam-lhes a vontade: aos mais pequeninos pegavam ao colo e aproximavam-lhes os rostos do vidro, à altura dos pais, para que eles os beijassem, a alguns espalmavam-lhes as mãozinhas no vidro para que os pais pusessem as suas no mesmo sítio mas do outro lado da superfície. 

Aos mais velhinhos os pais já faziam perguntas, que lhes chegavam abafadas através dos pequenos orifícios perfurados no vidro, até parecia que lhes estavam a falar de longe e não dali: então estás bem? Tens comido bem? Tens-te portado bem? Tratam-te bem? As perguntas clássicas. E eles, bem comportados, respondiam que “sim” a todas as perguntas. E os pais ficavam consolados. No final do visionamento, alguns pais mostravam aos filhos as prendas que tinham para levarem com eles e, com aqueles mimos, se lembrarem deles longe da vista. Duas camisolas tricotadas à mão, uma amarela, outra rosa, amêndoas pela Páscoa, rebuçados, uma caneta preta de tinta permanente. E estava terminada a visita às pessoas que lhes diziam que eram os seus pais.

Os meninos eram então retirados do rectângulo envidraçado, a porta fechava-se e voltavam a entrar na carrinha Peugeot cinzenta, a fazer o percurso inverso e a regressarem ao sítio que ficava ali muito perto, a dois quilómetros, mas que parecia tão longe. Era onde viviam todos juntos, no meio da floresta.

Sem saber a que cheiram os pais

É do sítio com paredes de vidro a primeira memória de infância de Francisco Santos, de 49 anos, teria ele uns quatro anos. Lembra-se de lhe pegarem ao colo para o porem à altura do rosto dos pais, a mãe no lado direito, o pai no esquerdo, os dois separados um do outro e ele, pequenino, no meio: “Eu encostava a cara e eles aos beijos a mim, aos beijos ao vidro, não era à gente. Chorava um de cada lado. Queriam tocar na gente. É uma imagem horrível.” Lembra-se de sentir a frieza do vidro e de ver os lábios deles no sítio onde colocava a face. Passou a infância sem saber a que cheiram os pais, como é tocar-lhes. “Faltou-nos o contacto com os nossos pais, o tacto, os corpos. A minha infância é um vazio.”

Podia dizer-se que Fátima Alves, hoje com 52 anos, tinha sorte, a família dela era a que mais pedia para ver os filhos. Ela sentia-se especial, por ser da família Pedrosa Alves, por receber atenção, por lhe darem aquelas prendas, mas aqueles que lhe apontavam como pais nunca deixaram de ser estranhos, “pais de vidro”. Não era possível construir naquelas visitas colectivas uma relação. Tudo aquilo era acabrunhante, as vigilantes ouviam-lhes as conversas. É uma infância feita “de memórias de vitrine”, como lhes chama o irmão de Fátima, Pedro Alves, de 51 anos.

E por pior que possa parecer a descrição, o sonho de Maria da Conceição Jesus Silva, “Zota”, como gosta de ser tratada, era também ser transportada para aquele sítio com paredes de vidro, mas isso nunca acontecia. Houve apenas uma vez, retém dessa ida a imagem de uma cadeira de rodas onde estava sentada uma pessoa que só mais tarde percebeu ser a sua mãe. “Gostava tanto de me lembrar da carinha dela.” Só lhe falavam da mãe para a obrigar a escrever uma carta a dizer que tinha passado de ano na escola. Maria da Conceição aproveitava para juntar que “gostava muito dela, que pensava muito nela e que um dia gostava de ir viver com ela”. Nunca recebeu resposta. Os pais eram para esquecer.

Eles eram “os filhos sãos” dos doentes leprosos do Hospital-Colónia Rovisco Pais, próximo da vila da Tocha (no distrito de Coimbra), que para assim se manterem — rezava a propaganda da altura — tinham de ser separados dos pais no exacto momento em que nasciam. Os filhos tinham, ao fim ao cabo, sorte — assim lhes diziam também a eles quando já tinham idade para o entender — porque nunca iam ficar como alguns dos pais que viam do outro lado do vidro, alguns com deformações graves, sem a ponta do nariz, dos dedos, com feridas nos braços. A lepra é uma doença que ataca sobretudo os nervos e a pele.

O sítio onde eram levados para serem vistos pelos pais ficava encostado à porta principal do Hospital-Colónia, onde nunca entravam. Esse mundo da doença era-lhes vedado, ficava limitado àqueles vislumbres. Nem sempre este edifício das paredes de vidro, que foi sendo conhecido como o locutório, existiu. No início — o hospital-colónia nasceu como leprosaria nacional em 1947 —, os pais chegavam a ver os filhos ao ar livre, separados por uma sebe espinhosa que tapava o arame farpado, conta o mais antigo doente internado no Rovisco Pais, Abel Ferreira, que entrou adolescente e tem agora 88 anos. Mas não bastava, lembra Ana Maria Silva, assistente social que entrou para o hospital em 1948 e hoje tem 88 anos. “Se não houvesse uma barreira, havia pais que não conseguiam evitar beijá-los. Queriam agarrá-los, beijá-los. Havia que evitar isso.” O edifício foi acrescentado, surgiu dessa necessidade. “E já viu, vinham as pessoas na estrada e viam aquelas crianças todas na rua, bebés ao colo, outros a pé. Dava mau aspecto”, junta. 

Assim, com a construção daquele edifício, tudo se passava de forma recatada, longe dos olhares exteriores de quem não conhecia e podia interpretar de forma errada “a boa-fé” com que aquele edifício foi construído, sublinha — para que pais e filhos se vissem, sem risco de contágio, dando continuidade àquela que era uma das preocupações do criador da instituição, o médico Bissaya Barreto: “Que o infortúnio dos pais não pese na vida destas crianças”, cita o livro Leprosaria Nacional-Modernidade e Ruína no Hospital-Colónia Rovisco Pais, recentemente editado pela Dafne Editora.

Não havia grande interesse em explicar aos mais novos o que tinham acabado de viver no locutório. “Não percebíamos que raio era aquilo, eles a chorar. Eu tinha medo de lá ir, se tivesse vontade própria prescindia de ir lá”, conta Francisco Santos. 

O que é isso, leprosos?

“A primeira vez que ouvi falar em lepra tinha cinco anos, pensei que era um brinquedo”, conta Maria da Conceição Jesus Silva, hoje com 60 anos. Depois lá havia um dia em que lhes diziam que eram “filhos de leprosos”. “O que é isso, leprosos?”, perguntou um dia. “Viraram-me as costas, não diziam nada.” Ninguém lhe explicou que o sítio onde viviam a partir dos quatro anos, o “preventório”, tinha sido criado para “prevenir” o contágio da doença.

Aquelas idas eram para os pais, não eram para os filhos, que apenas faziam o papel de meninos bem-comportados para os sossegar e convencer de que estavam melhor assim, tão bem tratadinhos. “Eles aceitavam muito bem a separação. Eram compreensivos, sabiam que era o melhor para os filhos”, recorda Ana Maria Silva, que fez o parto da primeira criança nascida no creche, um ano depois de o hospital ter aberto portas, em 1948, e que se tornou o seu afilhado.

A criança nascia na sala de partos e era separada da mãe, sem que esta lhe tocasse. Os pais eram previamente informados de que os filhos seriam depois levados para um sítio à parte, dois edifícios apartados do hospital, a creche, onde o bebé ficaria até aos três anos, para depois transitar para o preventório, dos três anos supostamente até aos dez, mas aonde muitos ficaram até bastante mais tarde. O sítio onde viviam os meninos tinha sido arquitectado para ser uma espécie de recanto de pureza, um paraíso longe da doença, na “zona sã”, onde viviam rodeados de vegetação. 

Dizia-se que havia justificação científica para corte tão radical. O isolamento compulsivo de doentes com lepra, e da separação dos filhos, tinha ficado instituída na 2.ª Conferência Internacional da Lepra, em 1909, refere Alice Cruz, antropóloga do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, que fez a sua tese de mestrado e doutoramento sobre o Rovisco Pais e a temática da lepra. O que se sabia na altura era que o médico norueguês Gerhard Hansen, que tinha descoberto em 1873 o bacilo da doença (Mycobacterium leprae), tinha decidido isolar os doentes numa leprosaria, conseguindo assim reduzir a incidência da doença na Noruega. Desconhecia-se se a diminuição se tinha ficado a dever ao isolamento de doentes ou à melhoria das suas condições de vida, mas partiu dele a sugestão de, naquele congresso, tornar o isolamento compulsivo e a consequente separação dos filhos. 

Por todo o mundo o modelo foi replicado, com variações. Nalguns casos, as leprosarias eram mesmo em ilhas, para que o isolamento fosse ainda maior, como Kalaupapa no Hawai, que deixou de fazer isolamento em 1969, ou Spinalonga, em Creta (Grécia), que foi fechada em 1957. Algumas leprosarias chegaram a ter a sua própria moeda com medo de que o contágio acontecesse através do dinheiro em circulação. A crença, na altura, era de que a lepra se transmitia através do toque.

No Rovisco Pais, os dias de ir ao locutório eram também especiais por outra razão. “A primeira vez que pus sapatos foi para ir ver os meus pais”, lembra Conceição Marques Fernandes. Mas “era calçar e tirar”. Saídos da vista dos pais, fora do compartimento transparente, regressavam ao preventório, onde lhes despiam as roupas bonitas e quentes e tornavam a usar aquela que era a sua indumentária de todos os dias, “um bibinho e sandálias, fosse Inverno ou Verão. Passei muito frio”. 

Quanto aos presentes que recebiam dos pais no locutório, “assim que se fechava a porta bye, bye”, diz Fátima, que nunca mais se esquece da caneta preta Parker que lhe levou o tio Ilídio e que ficou para uma das vigilantes, o que dá a dimensão de como as duas partes do vidro eram impotentes para mudar o que quer que fosse, porque um poder mais alto, o dos médicos e dos funcionários, se sobrepunha.

Na casa onde hoje vive, em Coimbra, há um objecto que ela quer muito mostrar porque é o símbolo dessa infância de faz-de-conta. É um palhaço. Ela tinha pedido um na cartinha que todos tinham de escrever ao menino Jesus, e ele chegou. “Tive-o nas mãos, agarrado ao peito”, mas na festa de Natal houve uma criança que manifestou desejo em ficar com ele e foi-lhe retirado “para ser dado ao filho do senhor doutor”. Aquele que está sentado em sua casa, cara triste, gravata quadriculada a condizer com o forro do fato calça-casaco verde e uns grandes sapatos amarelos, foi-lhe oferecido já em adulta por uma amiga a quem contou esta história de um dos Natais passados no preventório. “Detesto o Natal. O Natal é para quem tem dinheiro.”

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Durante 20 dos cerca de 30 anos em que funcionou, o hospital teve uma publicação própria, a Rovisco Pais-Revista Portuguesa da Doença de Hansen [designação moderna da lepra]. Na capa de uma edição de 1967 aparecem dois fotogénicos bebés dentro de dois berços de embalar forrados com farfalhudos folhos, azuis para os meninos, rosa para as meninas. Noutras capas vêem-se as imagens de uma menina de bibe rosa e com ar alegre, de uma aula com uma menina de vestido amarelo a fazer contas no quadro de ardósia, de rapazes a jogar à bola. Eram populares as capas com os filhos dos doentes, meninos de ar rosado e sadio que eram a face visível da bondade da instituição, da forma como tratava dos pais, mas também acudia “aos seus filhinhos”. 

Artigos na imprensa da época dão conta do ambiente “dos maiores carinhos” em que cresciam estas crianças. “Diz aí carinho?”, interroga Francisco Santos. Diz. Assim como se dá conta, por exemplo, num Diário de Minho de 1949, de um bonito baptizado de duas “crianças legítimas de doentes internados”, onde se explica que “para as defender do contágio foram logo à nascença assistidas de modo especial e internadas na creche onde, na pessoa duma assistente de puericultura, têm uma segunda mãe”.

É verdade que os berços eram mesmo assim, bonitos, e era neles que embalavam os bebés, mas a mãe de Francisco Santos contou-lhe, já ele era adulto, que o pessoal era tão pouco que, para os adormecer, havia uma encarregada que atava a cada uma das caminhas um cordel e os adormecia num embalo colectivo. Quem está ao pé de Francisco nota que está constantemente a mudar o peso de uma perna para outra, a abanar como um barco. Francisco está convencido de que é desses tempos de institucionalização que lhe vem este auto-embalo que não consegue travar e que já reconheceu noutros “manos”, nome que dá aos que passaram pela creche e preventório do Rovisco Pais. 

Mas Francisco Santos foi, no dizer do mais antigo doente internado, Abel Ferreira, que ainda visita de tempos a tempos, “um dos que tiveram sorte. Tu safaste-te porque saíste cedo. Tu és um homem completo”. Diz que a instituição via “a criança como um bezerrinho, que se tira à nascença”. “A criança não é uma máquina, precisa de afecto. Não lhes faltava alimentação, faltou-lhes o principal, o colo da mãe, pai ou família. Ficavam marcados, diminuídos psicologicamente. Os filhos têm todos problemas.”

Abel Ferreira diz que Francisco teve sorte porque aos quatro anos foi entregue a uma enfermeira e amiga da mãe que o criou lá fora. Uma irmã de Francisco teve azar. “Foi dada a uma família de agricultores. Fizeram dela a escrava da casa.” Quando a conheceu tinha oito anos, estava muito magra, “tinha a pele ferida cheia de buracos” e a sua “madrinha” acabou por a acolher também. Na altura, não havia adopção, e nos ficheiros dos filhos estão guardados os chamados “termos de entrega”. “Um papel de 25 linhas e estava adoptada para a vida. A segurança social não existia. Éramos criados como galinhas de aviário. Era à balda”, comenta Francisco, que acabou por fazer a sua vida como ourives.

Madalena Rico, assistente social de 69 anos, que é vista por doentes e filhos como “uma mãe”, diz que pelo menos no seu tempo (entrou já em 1969) já não era bem assim como conta Francisco, que o serviço social do hospital ia fazer visitas para saber como estavam os filhos colocados cá fora. Se havia família dos doentes, era essa a primeira opção de colocação, só depois se tentavam outras “famílias de acolhimento”, mas os pais tinham de autorizar. E lá está, a assinatura dos pais de Francisco no “termo de entrega” da filha.

As principais memórias de infância de Conceição Marques Fernandes, 57 anos, são do preventório, na sua dupla função de criança e de criança que tinha de cuidar de outras crianças. “Com 11 anos, cozinhava para 65 crianças” e lembra-se de sozinha manejar enormes panelas, cheias de leite. Das muitas tarefas que tinha a seu cargo, que iam desde puxar o lustro e encerar a tijoleira vermelha, passar a ferro, servir à mesa médicos e aprendizes de médicos quando havia sessões, a única de que ela gostava era de tomar conta de bebés e quando descreve esses momentos é como se estivesse a falar de bonecos: “Dava-lhes biberão, vestia-os, dava papinha, tirava-lhes as fraldinhas. Uma camarata tinha 50 camas de bebés.” Fátima descreve a mesma experiência com um tom menos enternecido: “Com dez anos, tinha 20 crianças à minha responsabilidade, se faziam chichi na cama ou na fralda eu levava por não os pôr no bacio.” Era uma das muitas “transgressões” que no preventório davam direito a punição.

Era tanta a confusão entre o que dava ou não direito a castigo que a primeira vez que lhe veio a menstruação Conceição Marques Fernandes pensou que ser castigada, como acontecia quando fazia chichi na cama, escondeu-o durante tanto tempo quanto pôde. Era imprevisível o que iria fazer parte da lista de actos puníveis: cantar a tabuada (mesmo estando certa) em vez de a dizer, ser rapariga e jogar à bola com os rapazes, roer as unhas. 

Castigos aplicados: adesivo na boca, ficar ajoelhado com as mãos debaixo dos joelhos, “dois dias a pão e água”, “uma noite a dormir no ‘cubículo’, onde guardavam o lixo e havia ratos”, “dormir nua debaixo da cama”; quando faziam chichi na cama eram arrancados da cama para serem mergulhados numa banheira de água gelada, seguidos de voltas a correr em torno do edifício com o colchão sujo às costas.

“O que é a vida hoje e o que era antigamente”, diz Conceição Marques Fernandes, como se o tempo histórico explicasse toda a sua infância de trabalhos e castigos sem fim. Fátima, que foi destes filhos a única que conseguiu tirar o 12.º ano, já cá fora, não tem formulação tão apaziguada desses tempos. Hoje aquilo que lá passaram tem nomes, diz: chama-se “exploração infantil, maus tratos infantis, trabalho infantil”. Cada vez que ouve que para serem educadas as crianças precisam de “castigos” vem-lhe à imagem a sua infância. 

Mas isso é o que diz Fátima porque Pedro Alves, o seu irmão mais novo que teve a mesma infância, apenas sorri ao ouvi-la, ainda hoje, tão revoltada a cantar, maquinal, o hino que todos tinham de saber de cor, cada vez que lá iam “pessoas importantes”: “Ó Hospital Rovisco Pais/ És a mãe que dá carinho/ Que estás de braços abertos/ A acudir aos doentinhos/ Ó preventório, Ó nossa morada/ Para nosso bem tu foste criado/ A rodeá-lo um lindo jardim/ Com botões de rosa, cantemos assim.

O irmão ouve a irmã a entoar os versos que soam a marcha popular com uma raiva que fez com que nunca tenha esquecido uma palavra da letra, ao contrário dele, que conta ter escolhido apagá-la da memória, e diz, plácido, “ó Fátima, era assim em qualquer colégio, na altura. Era o sistema”.

Ana Maria Silva, que não trabalhava no preventório, desconhece esses maus tratos de que falam os filhos, mas admite que possam estar a referir-se “aos disparates dos antigos”, de um tempo em que se educava crianças com “o quarto escuro” e “metia-se medo com os papões”. E, depois, “tinha de haver ordem, eles haviam de fazer das boas, um preventório cheio, mais que cheio”. 

Do tamanho de 144 campos de futebol

Uma foto emoldurada de um Salazar ainda jovem e uma Nossa Senhora de Fátima, com os três pastorinhos ajoelhados à sua frente, são dois dos objectos que restaram no edifício onde as crianças eram mostradas, e que hoje está transformado num desorganizado armazém com objectos desse passado. No papel, a leprosaria terminou em 1996. Hoje é o Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro-Rovisco Pais, os seus utentes são doentes com lesões neurológicas, músculo-esqueléticas, amputados, grandes politraumatizados, mas os restos dos edifícios lá estão, muitos ao abandono. Ali, junto a este edifício localizado à entrada do Rovisco Pais, começava o mundo dos “pais doentes dos filhos sãos”. 

O médico Bissaya Barreto descrevia assim no mesmo livro a portaria que começava na longa alameda que sai do locutório: “Ampla, aberta, rasgada e acolhedora, convidando risonhamente a entrar os que devem entrar, cercados apenas por uma sebe, em que as flores abundam.” Percorrer a estrada que sai da portaria é seguir por uma longa avenida — “que era muito linda, toda cor-de-rosa e branca, cheia de loendros, o professor Bissaya Barreto adorava loendros”, rememora Ana Maria Silva — até se chegar a um recinto que faz lembrar um Portugal dos Pequenitos. O que se queria é que aquele local fosse “uma ridente aldeia” de onde ninguém quereria sair. “Houve o desejo de conseguir que os doentes fujam para a leprosaria e não fujam da leprosaria”, escreveu Bissaya Barreto. Afinal, que outro sítio no Portugal daquele tempo teria para oferecer aos seus habitantes cinema ao ar livre? Lagoa privativa? Floresta privada? Lá dentro havia “uma capela de aldeia”, uma equipa de futebol. Nesse mundo miniatural também havia “uma prisãozinha”, lembra um dos filhos, Francisco Santos.

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A sala das visitas. Na propaganda do Estado Novo, eram os afortunados "filhos sãos"

Era “um ambiente de maravilha”, “dotado de horizonte” e “encantos naturais”, continua o médico. Pretendia-se que se vivesse naquele enorme recinto de 144 hectares (onde caberiam uns 144 campos de futebol) “em relativa liberdade”, querendo-se com a expressão dizer que o objectivo foi tirar-lhe “o aspecto de prisão”, arame farpado sim, mas disfarçado por airosa vegetação. 

Mesmo sendo um sítio criado para ser atractivo, vigorava, em todo o caso, um sistema de internamento compulsivo. Havia as chamadas “brigadas móveis” que percorriam o país para ir buscar pessoas a casa, com mandados de captura, com polícia. Havia denúncias. O pai de Francisco sempre lhe contou que não teve tempo para se despedir da família, que arrombavam portas. Havia casais separados, filhos que vinham, outros que ficavam, famílias desfeitas a meio da noite. “No início foi o pandemónio”, lembra Abel Ferreira. 

Ana Maria Silva lembra-se da chegada dos primeiros doentes. “Nunca me esquece, chegaram de noite, em comboios especiais, embrulhados em cobertores, eram de Alcains. Chorei quando vi a primeira mulher, tinha deixado a casa, marido, filhos. Eram trazidos à noite para não haver despedidas, melindres, para não serem vistos e também porque alguns não queriam vir.” “Havia pessoas sem narizes, sem olhos, sem dentes, sem bocas, os dedos a cair, não é possível descrever.” Era um tempo em que nas aldeias havia famílias inteiras afectadas pela doença e barricadas em casa, recorda. Entre os doentes, havia também crianças infectadas e, para ela, essa visão ainda tornava mais premente o perigo da infecção e a necessidade de separar os bebés dos pais.

E havia doentes que não se conseguiam capturar. Madalena Rico mantém viva a memória daquele senhor de Albergaria que “subia a um pinheiro como um gato. Nunca o conseguiam apanhar”. No arquivo com ficheiros dos doentes, há duas gavetas reservadas só para estes “doentes em fuga” ou “em ausência irregular”. A investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Alice Cruz, diz que não houve por parte dos doentes “resistência activa e frontal” ao sistema, mas que a resistência se fazia “de pequenos actos de subversão do modelo”, que passavam, por exemplo, por fugir para ir casar ao exterior e depois voltar. O pai de Francisco, por exemplo, não se resignava a ver os filhos com vidro de permeio e esgueirava-se do hospital pelos bosques para os ir espreitar ao longe. Alice Cruz chama-lhe “a belíssima arte da sobrevivência”.

Subida a alameda do Rovisco Pais, surge um aglomerado urbano de traça típica do Estado Novo. A dividir o recinto ao meio havia uma linha invisível que separava este mundo em dois sexos, explica o livro Leprosaria Nacional. O hospital-colónia tinha sido pensado para criar um mundo que se queria estéril, até a capela tem naves separadas para que, nem na missa, homens e mulheres estivessem juntos. Aquele era, em teoria, um sítio feito para conter e levar à extinção a doença, dissuadindo os doentes de se reproduzirem. Mas este tipo de medidas contraceptivas nunca foram suficientes.

A alguns dos que lá nasceram os pais contaram que foram concebidos no enorme pinhal da instituição, às escondidas. Por ter engravidado a mãe, o pai de Francisco passou 23 dias na prisão da leprosaria, eram os dois solteiros e esse tipo de comportamento era castigado. Mas continuou a acontecer. Passado um ano e meio, a mãe engravidou de novo e tiveram de os deixar casar. Acabaram por ter cinco filhos dentro do hospital e por ganhar direito a uma daquelas casinhas amarelas onde só podia viver quem era casado. Foram-na enchendo de animais domésticos que, para Francisco, vinham fazer as vezes dos filhos de quem eram separados à nascença e de cuja infância não presenciada lhes chegavam apenas ecos. Já ele era adulto, a mãe relatou-lhe as únicas travessuras que retinha da sua infância, que lhe tinham sido transmitidas por uma funcionária, a da vez em que foram encontrar o pequenino Francisco em frente a um açucareiro que tinha devorado sozinho, e de um dia que um senhor doutor com barba foi à creche e ele lhe disse “lava a cara poco [porco]”.

Ninguém sabe ao certo quantas crianças e adolescentes filhos de doentes ali nasceram e viveram separados dos pais doentes, que chegaram a ser 1200. Certo é que a creche foi pensada para albergar 50 bebés, o preventório 120 crianças até aos dez, mas acabavam por ficar mais tempo. Numa lista do arquivo do hospital, dá-se conta, por exemplo, da entrada de 78 bebés na creche, só em 1960, no ano seguinte entram 90 crianças no preventório. 

Lucília Vaz Marques apanhou lepra em criança, entrou aos nove anos, em 1951, saiu com 35 anos, em 1977. Ali conheceu o seu marido e aceitou quando lhe tiraram os dois filhos na sala de partos, como “era lei”. Recorda-se bem da primeira vez que viu o filho fora da sala de parto, tinha ele um mês. Ela tinha-se arranjado “como se fosse para uma festa, o vestido era castanho com rosas amarelas, quase novo. Eu não tinha assim muita roupa, vestia o resto das doutoras e das enfermeiras”. O bebé estava lindo, “de branquinho”. Ia vê-lo uma vez por mês. À medida que o viu crescer através do vidro ele também lhe respondia que “sim” à pergunta “tratam-te bem?” 

“O Zé nunca me contou nada, coitadinho, tinha medo.” Mas um dia começaram a circular notícias de um doente que conseguia ir espreitar o filho e que começou a dizer “que lhes batiam”. Lucília fez o pouco que estava ao seu alcance, falou com o padre que era o padrinho do filho e tirou-o com quatro anos do Rovisco Pais para o pôr na Casa do Gaiato. Quando finalmente saiu do hospital e teve meios para o ir lá buscar, quando ele tinha oito anos, ele preferiu ficar, porque ao menos ali podia continuar a estudar. 

Apesar de um outro hino que lhes dizia que ali tudo seria possível — “Hoje somos jovens/ Amanhã senhores/ Se estudarmos bem/ Dentro de alguns anos seremos doutores” —, elas eram treinadas para bordar e cozinhar, eles aprendiam carpintaria. Fátima queria muito estudar, mas estava sempre a ser interrompida para tarefas domésticas e, por ser maria-rapaz, ouviu muitas vezes “nunca vais ser ninguém”. Fátima fez-se adulta em oposição a muito do que viveu no Rovisco Pais. “A maria-rapaz que nunca ia ser ninguém” jogou futebol no União de Coimbra, nunca mais voltou a vestir uma saia na vida, conseguiu tirar o 12.º ano, tem casa, carro e trabalha no sector da hotelaria, conta com brio. Na década de 1970, o hospital arranjou uma carrinha para os filhos irem estudar fora, ao liceu da Figueira da Foz, recorda Madalena Rico, mas só se lembra de um filho que conseguiu estudos superiores, “chegou a padre” e hoje faz a sua vida a cuidar de crianças abandonadas em Moçambique.

"Pais de vidro"

No papel, a leprosaria Rovisco Pais desapareceu em 1996, mas muito antes disso os portões foram-se abrindo a quem apresentava análises negativas, pessoas que saíam curadas, conta Madalena Rico. E veio o 25 de Abril. Fátima lembra-se desse dia, “fizemos a nossa pequena revolução, fomos para o telhado e escrevemos em cartazes ‘Abaixo a PIDE’, “Fora as vigilantes’”. Ainda não era desta. Acabaram o dia com mais um castigo, eles com cabeças rapadas à máquina zero, elas com corte de rapazinho. Foi o início do fim do preventório. Fátima saiu em 1975, o irmão em 1976.

Apesar das más memórias, ela não estava preparada para sair. Tinha 13 anos quando lhe disseram que o preventório ia fechar, que tinha de ir fazer a sua vida. O serviço social não fazia ideia onde estavam os pais, que tinham saído curados, mas não tinham ido buscá-los e tinha os irmãos espalhados pelo país. Assim, as primeiras casas fora do preventório que o hospital arranjou a Fátima, Maria da Conceição e Conceição fora do Rovisco Pais foi “como criadas de servir”. Era uma espécie de continuação do que já tinham de fazer dentro do Rovisco Pais.

Conceição Marques Fernandes lembra-se de “em casa de uma patroa” não ter horário, de adormecer num banquinho da cozinha à espera que os jantares com convidados acabassem e não precisassem mais dela por esse dia; Fátima guarda desse tempo a tentativa de violação de um patrão, um professor universitário, aos 14 anos; já Maria da Conceição Jesus Silva retém dessa experiência a primeira vez que viveu com uma família, a primeira vez que viu o que era isso. “A família era linda! Ali era o marido, a mulher, os três filhos, lindo, lindo.” Eram tão lindos que um dia ela não aguentou aquilo que via como a vida perfeita. A patroa percebeu que ela não estava bem quando os pratos que estava a tentar pousar na mesa caíam ao chão. “Agarrei numa mão cheia de comprimidos e tomei-os.” Tinha 21 anos quando tentou suicidar-se.
O mundo lá dentro era tão mau que imaginavam que, cá fora, quando finalmente conseguissem ser reunidos aos seus “pais de vidro”, as suas vidas seriam maravilhosas, que seriam finalmente felizes com a sua verdadeira família. Não foi assim.

A assistente social Ana Maria Silva tem uma explicação: “Eles eram tratados como meninos ricos.” “Deu-se-lhes todas as oportunidades, escola, catequese, iam fazer a primeira comunhão, o liceu.” Depois fala da parte material, “eles lá tinham tudo. Carne e peixe do melhor, o pão era muito bom, era um pão extraordinário”. E por terem “tudo” não se habituavam ao mundo, à pobreza das casas maternas. Mas admite que as dificuldades de adaptação à vida com as suas famílias não se limitavam a isso. E conta a história de dois gémeos que entraram com cinco meses na creche e saíram adolescentes para voltarem para a mãe. É verdade que a casa era pobre, muito pobre, as divisões feitas de tecido, mas “os filhos que ela criou adoravam-na, os gémeos voltaram crescidos e nunca se adaptaram. O ver é uma coisa, o conviver é outra, é muito diferente”.

Muitos vivem nesta tensão, de não terem tido uma vida com uma família biológica que sentem que lhes foi roubada e, ao mesmo tempo, o conhecimento de que muitos vinham de famílias pobres e disfuncionais, ou tornadas disfuncionais pela segregação e separação dos filhos, que pouco lhes poderiam ter dado. 

“Pensava que sair daquele mundo de tanto sofrimento ia ser diferente, que a minha mãe era uma doce mulher, uma mãe carinhosa, que sorrisse para mim. Nunca tivemos carinho de ninguém. Era uma ilusão. Não teria sido feliz cá fora, se tivesse ficado em casa com a minha mãe”, admite Conceição Marques Fernandes, hoje com 57 anos. A mãe era alcoólica e em casa não tinham nem comida nem casa de banho.

Os seus tempos de felicidade são sim de uma outra instituição para crianças, também obra do médico Bissaya Barreto, gerida por irmãs francesas. “O Bissaya Barreto nem sonhava com os maus tratos que nos davam. Era muito amigo das crianças”, sublinha. É desse lugar um caderninho de costura que tem estatuto de tesouro, ali está exemplificado “o ponto de chuleio, o ponto de passajar as meias, o ponto cruz”. Ali não lhe batiam.

No preventório, sempre teve um dormir turbulento, batia com a cabeça nas grades da cama até ficar ferida. Continuou em adulta, mas o marido descobriu o segredo, pousava-lhe uma mão em cima e ela parava. “Era isso que lhe faltava, carinho”, diz. Reformada desde os 43 anos por razões psiquiátricas, é uma dona de casa que serve o marido com desvelo. Fátima nunca chegou a beijar o pai. Soube que ele tinha morrido quando chegou aos 18 anos, cinco anos depois de ter saído do preventório. Reencontrou a mãe quando já tinha 20. Teve como projecto de vida reuni-los todos na família original. “Foi uma ilusão.” O laço que se quebrou com “a mãe biológica” não se recupera apenas com a sua vontade, não se adoptam filhos adultos, a ligação é artificial. O único filho criado pela a mãe (ainda viva) é, na sua opinião, “o filho verdadeiro” — o irmão mais novo nasceu já cá fora, e a mãe amamentou-o, assistiu-lhe aos primeiros passos, sempre lhe pôde tocar. Ao longo dos anos, há doentes que foram saindo curados, como foi o caso da mãe de Fátima, mas ninguém acautelou a colagem das partes que tinham sido separadas. “O Estado a mim não me deu nada, o Estado a mim deve-me, roubou-me a infância.”

Sem saber dos irmãos

Foi já adolescente que Francisco começou a conviver com os pais, que viveram toda a vida na casinha construída para os doentes dentro do Rovisco Pais. Lembra-se de ainda ter visto cinema ar livre no recinto com o pai e de ele ter morrido quando tinha 17 anos, atropelado na recta da Tocha, a estrada que levava à vila. Percebeu ao longo dos anos que tinha irmãos, que “cada um foi mandado para seu lado”, mas que estiveram todos ao mesmo tempo na creche e preventório mas nunca ninguém “os apresentou”. “Nunca ninguém me disse que eu tinha lá irmãos.” 

“Zota” nunca soube quem era a mãe, além do nome na certidão de nascimento, Estela Silva. Pensou então que todos os seus problemas se resolveriam quando um dia alguém a tratasse por mãe, como ouvia tanta gente na rua a chamar a tanta gente. Diz que não foi selectiva, o seu primeiro marido tinha mais 35 anos do que ela, não gostava particularmente dele, mas agradece-lhe. Quando a filha nasceu não a quis no berço, dormia com ela na cama, pesava 2950kg, “a minha Soninha. Era linda, branquinha, de olho azul, nem parecia nossa filha e foi, muito precoce”, que aos 11 meses começou a dizer aquela sílaba, mã, mã. Bastava. “O que eu chorava com aquele mã, mã da minha Soninha”. Minha Soninha, meu Vasco, meu José. É como se o pronome possessivo fizesse parte do nome dos filhos.

Francisco Santos lembra-se do pânico quando soube que ia ser pai. “Como é que se pode dar amor aos filhos sem nunca o ter tido? Tive de o ir procurar.” Fala da incapacidade de dizer “não”, o “não” que dizem que os pais têm de saber dizer. “Eu digo que ‘não’, mas depois volto atrás.” Vive nesse dilema constante que é negar o que nunca teve e querer dar em excesso. Das poucas vezes que lhes deu uma palmada, teve de se ir esconder para chorar. “É uma guerra constante dentro da minha cabeça, então eu não tive pai nem mãe e agora bato nos meus filhos? Cada acto meu como pai transporta a minha infância.” “Qualquer filho que nasceu lá e é pai de certeza que se identifica”.

As suas vidas são o resultado desta história, da história da lepra no mundo, da história da lepra em Portugal. Todos aceitam como boa a explicação de que os pais foram afastados porque tinha de ser, que eles tinham de ser separados, porque tinha de ser, para evitar o contágio. O que questionam são os métodos, não a razão. 

Desconhecem que na década em que o Rovisco Pais abriu portas já tinham surgido as sulfonas, um antibiótico que representou, na prática, a cura para a doença. Fátima, Pedro, Maria da Conceição e Conceição nasceram todos depois. 
“Em Portugal, há o paradoxo de ter a inauguração em 1947, numa altura em que se começa a perceber que o internamento compulsivo não serve para nada”, diz Alice Cruz, porque as pessoas podiam ser tratados no exterior. “A partir da década de 1940, há um tratamento que cura e em Portugal ergue-se um megaprojecto para segregar. É uma questão política, nunca foi uma questão científica”, explicada também pela existência de “um regime paternalista em relação às camadas mais pobres da população portuguesa”. 

“E não se pode dizer que foi fruto da ignorância, houve uma escolha de manter o internamento compulsivo. O director clínico, Manuel Santos Silva, ia aos congressos internacionais, adoptou a medicação”, diz. O ponto de viragem em termos mundiais foi em 1953, em que no 5.º Congresso Internacional de Lepra, em Madrid, “abandonou-se o internamento compulsivo e a separação dos filhos”, explica. “Foram pessoas a quem foram roubados direitos civis e políticos sem qualquer evidência científica.”

Cada país fez o seu percurso, mais ou menos desfasado daquela recomendação. Se na Noruega o último doente da leprosaria de São Jorge, em Bergen, só teve doentes até 1946, em Espanha, por exemplo, a colónia-sanatório de Fontilles, inaugurada em 1927, passou a tratar os doentes fora do hospital em 1964. 

O que se sabe hoje é que “o mais hediondo dos males”, como lhe chamava Bissaya Barreto, é, no grupo das doenças infecto-contagiosas, a menos contagiosa. Embora o enfoque do contágio tenha sido posto no perigo do toque, esta, sabe-se hoje, é uma via de contágio completamente residual. A via respiratória, à semelhança de uma vulgar gripe, é como acontecem a maior parte das transmissões, através de espirros. Mais de 95% das pessoas têm imunidade natural à lepra.
Mas a lepra continua a carregar “o peso de algo que nunca foi seu”. “A concepção ocidental da lepra é inseparável da ideia de castigo divino, isso nasce da Bíblia, que chama erradamente lepra a um conjunto muito vasto de doenças dermatológicas”, refere. “Passou a ser a doença da impureza, da sujidade.” É que “as doenças nunca são só doenças, são categorias que nos permitem organizar a sociedade e onde colocamos as pessoas”. E depois “há doenças com uma carga simbólica tão brutal que”, como dizia a ensaísta Susan Sontag, “se tornam adjectivos”, nota Alice Cruz. Em definição de dicionário, “leproso” continua a significar “nojento”, “contaminado”, “corrompido”.

O exemplo brasileiro

Não se sabe quando nasceu o último bebé separado dos pais no Rovisco Pais. No Brasil, a data está definida: houve separação desde a década de 1940 até 1980, diz Artur Custódio, coordenador nacional Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase. No Brasil, conseguiram identificar 12 mil filhos com histórias parecidas com a destes portugueses. “Houve adopções de legalidade questionável, pessoas que cresceram sem saber nada do seu passado e dos seus pais.” Artur Custódio chama o que se fez a estes doentes e seus filhos “crime de Estado e violação de direitos humanos”. Em reconhecimento desse facto, o governo de Lula da Silva atribuiu, em 2007, uma pensão vitalícia aos doentes isolados compulsivamente por terem lepra, algo que tinha sido feito, pela primeira vez, em 2001 no Japão. Na base das decisões está a ideia de que o isolamento continuou a ser praticado sem razões científicas.

“Agora é a vez dos filhos, há manifestações de filhos por todo o país.” O objectivo é que o Estado brasileiro lhes atribua uma indemnização ainda este ano. Mas “só o estar a haver esta discussão está a mudar vidas, ao contar a história melhoram auto-estima, há pessoas a escrever livros”. Em Nascidos Depois, a brasileira Teresa Oliveira fala de pessoas como ela, a quem chama “filhos órfãos de pais vivos”. No país que continua hoje a ter uma grande incidência da doença, houve cerca de 100 leprosarias, muitos são hoje museus, algo que faz parte de um movimento global em vários países para o não apagamento desta memória, explica o coordenador brasileiro. 

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A administração do Rovisco Pais diz existir a intenção de criar um espaço museológico sobre a lepra dentro do recinto. Mas no edifício onde estes filhos viram durante a sua infância os seus “pais de vidro”, cada vez que chove, a água cai directamente do tecto para cima do arquivo metálico onde estão os ficheiros de doentes e seus filhos. A ferrugem impede muitas gavetas de se abrirem, o bolor está a comer texto e datas. Na vila da Tocha, a dois quilómetros do Rovisco Pais, pouco se sabe da antiga leprosaria, desconhece-se a existência destes filhos. Mas, sem o saberem, os que ali vivem tão perto continuam a reproduzir aquelas que eram as ideias principais de propaganda do Estado Novo, que “era lindo lá dentro, tinha jardins lindos e que era o melhor hospital para esse mal da pele que acabou por causa do hospital”. Porque “já não há pessoas dessas”.

Júlia Silva, portuguesa, 37 anos, empregada de limpeza em Guimarães, foi diagnosticada com a Doença de Hansen há 15 anos, e tem dificuldades em movimentar um dos braços. De 2009 a 2012, houve apenas 33 casos notificados em Portugal. Júlia é apoiada pela Associação Portuguesa de Amigos de Raoul Follereau, que uma vez por ano organiza um convívio de novos e velhos doentes no Rovisco Pais. Ela vai, leva as duas filhas, segue o percurso tradicional que passa por visitar “os doentes hanseníanos” que ali continuam, agora por sua escolha, e que estão internados há 50, 60 anos. Mas não faz perguntas. É uma forma de se defender, de não imaginar o que seria ter aquela mesma doença há 60 anos, chegar ao ponto de se ficar desfigurado, de ser preso, de ser separado dos filhos. Ela teve Ana Rita há oito anos, depois do diagnóstico de lepra, e lembra-se do dia do nascimento da filha como “um dia bonito”, em que tudo foi tão rápido que nem precisou de epidural e que a amamentou até “falhar o leite”. Por isso, não quer saber desse passado. “Não me interessa saber o que era dantes, para não me pôr a pensar nisso.”

Agradecimentos
Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro - Rovisco Pais; Gabinete de Comunicação, Inês Torres; Presidente do Conselho de Administração, Victor Lourenço // Associação de Desenvolvimento Progresso e Vida da Tocha, Mário Gomes // Madalena Rico; Ana Maria Silva; Alice Cruz; João Gomes- A Cidade e as Cenas; Leonor Teles; Associação Portuguesa de Amigos de Raoul Follereau, João Ferreira