Regresso infinito
Luísa Costa Gomes numa sucessão torrencial de histórias, frequentemente hilariantes
“Podemos realmente começar antes de começar realmente?”, pergunta Constantino, à laia de introdução, nesta “novela rústica em paradoxos”, como a define a autora. É uma variante da célebre fórmula “era uma vez”, que funciona eternamente como ignição para a sucessão torrencial de histórias, aventuras, desmandos, sonhos e desassossegos, aqui protagonizados por dois irmãos, o impaciente e turbulento Constantino e o reflexivo e melancólico Cláudio. São rapazes à solta (“a cavalar”) numa grande casa que brilha na escuridão, num vasto campo, com uma alargada e amável família. Os preceptores sucedem-se — lá mais para o final chega Orlando, mas só irá complicar a situação —, a Mãe anda ocupada com o Bebé, o Pai está longe, o Avô e a Avó são gentis e divertidos, há um batalhão de Tias, a prima Florença toca piano e é demasiado bela para ser olhada e o cão Fortaleza, a cozinheira Escolástica, a criada Dulcínia — que gosta de meter medo com histórias de fantasmas — são outros tantos intervenientes neste relato sobrepovoado por figuras em tudo exemplares. Cláudio e Constantino discutem exaustiva e impertinentemente o que vêm, o que ouvem, o que sonham, o que fazem, o que é feito por outros e até o que não se ouve, o que não se vê, o que não se sente e o que não se faz. Esta prática continuada, num mundo que é um laboratório propício à investigação, começa com um episódio nada edificante: os irmãos decidem dar banho a um número indeterminado de pintos. Fazem-no com extremo cuidado, questionando a bondade do gesto, mas o resultado é a morte dos animais por afogamento. Este acidente desata os fios de um novelo feito de problemas intermináveis — “como é que boas intenções podem ter consequências terríveis?”, ou “porque é que Constantino não é castigado quando ele próprio exige ser castigado? — que se vão desenrolando em paradoxos, dilemas, impasses e conflitos cada vez mais intrincados, desaguando em constantes “aporias”.
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“Podemos realmente começar antes de começar realmente?”, pergunta Constantino, à laia de introdução, nesta “novela rústica em paradoxos”, como a define a autora. É uma variante da célebre fórmula “era uma vez”, que funciona eternamente como ignição para a sucessão torrencial de histórias, aventuras, desmandos, sonhos e desassossegos, aqui protagonizados por dois irmãos, o impaciente e turbulento Constantino e o reflexivo e melancólico Cláudio. São rapazes à solta (“a cavalar”) numa grande casa que brilha na escuridão, num vasto campo, com uma alargada e amável família. Os preceptores sucedem-se — lá mais para o final chega Orlando, mas só irá complicar a situação —, a Mãe anda ocupada com o Bebé, o Pai está longe, o Avô e a Avó são gentis e divertidos, há um batalhão de Tias, a prima Florença toca piano e é demasiado bela para ser olhada e o cão Fortaleza, a cozinheira Escolástica, a criada Dulcínia — que gosta de meter medo com histórias de fantasmas — são outros tantos intervenientes neste relato sobrepovoado por figuras em tudo exemplares. Cláudio e Constantino discutem exaustiva e impertinentemente o que vêm, o que ouvem, o que sonham, o que fazem, o que é feito por outros e até o que não se ouve, o que não se vê, o que não se sente e o que não se faz. Esta prática continuada, num mundo que é um laboratório propício à investigação, começa com um episódio nada edificante: os irmãos decidem dar banho a um número indeterminado de pintos. Fazem-no com extremo cuidado, questionando a bondade do gesto, mas o resultado é a morte dos animais por afogamento. Este acidente desata os fios de um novelo feito de problemas intermináveis — “como é que boas intenções podem ter consequências terríveis?”, ou “porque é que Constantino não é castigado quando ele próprio exige ser castigado? — que se vão desenrolando em paradoxos, dilemas, impasses e conflitos cada vez mais intrincados, desaguando em constantes “aporias”.
É claro que o paradoxo tem, por si só, um efeito de extrema comicidade, plenamente conseguido em Cláudio e Constantino. As histórias, que se sucedem ao ritmo das de As Mil e Uma Noites, são deliciosamente divertidas e por vezes hilariantes. O cruzamento da grande erudição com a descrição de actividades comuns, como a labuta no campo ou os cuidados urgentes com um recém-nascido, a sucessão de personagens típicas das fábulas — a Criada, a Rapariga, os animais falantes, etc. —, as desvairadas aventuras, as personagens desarmantes — como a tia Eva que está escrever um livro sem fim, uma autobiografia que, evidentemente, não pode terminar — compõem uma bem humorada e complexa narrativa, com imagens exuberantes e a afirmação dessa força superior que é a imaginação, constantemente movida pela curiosidade e pela inteligência.
Luísa Costa Gomes é uma autora com ligações profundas ao teatro e não é de admirar que o relato se desenrole numa sucessão de “cenas”, com os protagonistas a entrarem para dizer as suas deixas, anunciar factos, calamidades ou acontecimentos banais, e a saírem dos cenários, muitas vezes chamados para outras tarefas, desviados dos seus intuitos, ou simplesmente removidos quando já não são necessários.
Em Cláudio e Constantino existe, ainda, uma óbvia homenagem a Lewis Carroll e às suas inumeráveis charadas, e a autores como Salman Rushdie, que tem usado o “encantamento”, por exemplo em O Último Suspiro do Mouro ou A Feiticeira de Florença. Os irmãos “viajam” nos sonhos — como em Peter Pan —, o Pai, que é da marinha mercante, anda no mar à procura da Ilha que Não Existe e a autora aproveita as regras dos navegantes para um exercício em torno do conceito de Catch 22, tal como foi formulado pelo escritor Joseph Heller. Outras alusões importantes dizem respeito às célebres aventuras do Barão de Münchhausen — cruzar o espaço numa bala de canhão — e às obras da Condessa de Ségur que, com as suas Meninas Exemplares e principalmente Os Desastres de Sofia, certamente inspirou as figuras dos primos da América, os quais, de cada vez que chegam, num único e temido dia, destroem tudo, pelo que a família é obrigada a retirar todos os objectos, armazená-los e substituí-los por cópias durante essas 24 horas.
Discípula assumida de Voltaire — a releitura de Micromegas é essencial —, Luísa Costa Gomes utiliza a técnica dos diálogos platónicos, exactamente porque muitos deles são considerados aporéticos, isto é, inconclusivos, e retoma constantemente a questão da medida temporal. Em Cláudio e Constantino não é possível determinar o tempo histórico, cronológico. A acção pode passar-se em qualquer século — a imaginação, o sonho, os afectos, os devaneios não são atributo de um momento específico —, mas as referências à Internet e a um telemóvel surgem como uma surpresa. Sabe-se que, no início, Cláudio tem oito anos e Constantino 12; que crescem ao longo da história; que esse crescimento não corresponde necessariamente a uma progressão temporal; que é certo e sabido que o tempo tanto pára — quando nos apaixonamos — como arranca à desfilada sem se deter, que tanto é líquido, como sólido, que escorre, se evapora ou se detém. No capítulo final, Depois de Acabar, é apontada uma curiosa lista de referências usadas pela autora, oferecendo-nos pistas para um universo estranhamente familiar e consolador, apesar da auto-contradição permanente que nos obriga, alegremente, a ultrapassar incontáveis dificuldades e incertezas.