Uma Antígona siciliana

Tínhamos saudades de Emma Dante: faz-nos muita falta este teatro desassombrado. As Irmãs Macaluso encerra hoje o 31.º Festival de Almada com um mergulho em apneia numa paisagem escura e pobre, mas habitada por um imenso desejo de vida.

Fotogaleria

Há coisas que continuam as mesmas, mesmo que seja preciso mudá-las, lia-se nesse romance crepuscular de Tommaso di Lampedusa. E em Palermo, na Sicília, ainda são os homens que mandam, da porta da rua para fora. Ainda são as mulheres que se oferecem em sacríficio. Ainda são os mortos que assombram os vivos e ainda são os vivos que têm medo de si mesmos. Ainda há uma montanha silenciosa que observa os homens e as mulheres sem os deixar sair daquele pó que se lhes cola como se fosse mais natural do que a própria pele. Às vezes cospe-se terra, às vezes cospe-se fogo. Às vezes a única solução é escolher morrer. Outras vezes há quem decida escolher viver.

Emma Dante é, aos 47 anos, das que escolheram viver mesmo que isso possa significar morrer todos os dias. Encenadora, actriz, dramaturga, romancista, cineasta, é um caso à parte na paisagem europeia, com o seu teatro que insiste em fugir da representação do quotidiano até que ele se torne tão ficcional que parece um registo directo e não, nunca, um documentário forjado. Um teatro que não se compreende numa ideia simplificada de feminismo, porque o uso que Emma Dante faz das calças, sendo político, não é menos humanista do que o desejo de abolir o esterótipo. Um teatro que, afinal, é político porque não pode ser outra coisa, nem de outra forma. “Um teatro que nasce do quotidiano mas que é mais do que isso: não é o seu espelho. É um teatro onde o gesto morre todos os dias e todos os dias se regenera": palavras dela.

As Irmãs Macaluso, que hoje encerra, no Palco Grande da Escola D. António da Costa, o 31.º Festival de Almada, marca a terceira passagem de Emma Dante por Portugal; é a sexta peça sua que podemos ver por cá depois de mPalermu e La Scimia (Teatro Carlos Alberto e Teatro Nacional São João, Porto, 2004) e Carnezzeria, Vita Mia e Mischelle di Sant’Oliva (Centro Cultural de Belém, Lisboa, 2008). Na sua cruel brevidade, o espectáculo vive de um desejo de fuga a partir da memória, como se nela buscasse as razões da prisão. Emma Dante faz-nos regressar a uma Palermo que parece ficção pela força brutal dos sentimentos. De tão intenso que é, habitado por corpos que se oferecem a um ritual de expiação, As Irmãs Macaluso surge-nos como um mergulho em apneia numa paisagem rochosa, de areia escura, pobre, quase sem destino, mas habitada por personagens com um imenso desejo de vida.

Sete irmãs – Lia, Antonella, Gina, Cetty, Maria, Pinuccia, Katia – presas à memória da infância, de um dia de praia que as fez deixar de serem crianças, e depois a todas as mortes que se seguiram a essa que era só uma brincadeira, como se na invocação dos mortos encontrassem forças para mais um dia de vida. Sete irmãs e os seus fantasmas, os seus medos, as suas falhas. Sete actrizes e três fantasmas (o pai, a mãe e o filho de uma delas, todos mortos) dentro de um texto cheio de melancolia amarga, como os limões que eram a única coisa que tinham para comer. Personagens que nem chorar podiam porque era como se não tivessem olhos através dos quais as lágrimas pudessem sair.

 

A língua do povo

Emma Dante viu um dia uma encenação da Antígona, de Sófocles, e percebeu que a força daquela mulher era a força que gostaria de ter para enfrentar a montanha silenciosa que paira sobre Palermo, as calças dos homens, a pobreza das ruas, os poderes silenciosos, e para compreender porque se dizia que nunca nada mudaria. Se o teatro representa “um gesto que morre, é também um gesto que se deve regenerar, tal como o quotidiano”.

Nesse dia, Emma Dante percebeu que o teatro também podia ser isso: “a força de resistir”. E Antígona, a que queria enterrar o irmão e escolhia morrer porque isso significava estar mais viva do que na vida que a sua condição lhe podia dar, tornou-se para ela uma espécie de guia para um teatro que desafia a montanha silenciosa.

As imagens no teatro de Emma Dante são um caso à parte na paisagem do teatro contemporâneo europeu e, nomeadamente, naquilo a que se chama escrita de palco. O texto não existe para criar imagens metafóricas ou simbólicas,  mas para mostrar, revelar, expor ideias concretas. Há na sua relação com o corpo e com a palavra algo que vai para lá da metáfora e que parte, precisamente, da mesma força que encontrou na resistência de Antígona: “Todo o meu trabalho se centra nos actores. É a partir deles que tudo surge. As suas improvisações são o que me permite perceber o que são os traços das pessoas, as suas falhas, as suas virtudes”.

De resto, esse seu teatro concreto, e habitado por um quotidiano que se torna visível a partir da precisão do gesto, expressa-se através do dialecto que guarda a história da Sicília colonizada.  “Os dialectos são a língua do povo, são eles que contam a sua história”, conta-nos uma encenadora que insiste que, em Itália, os seus espectáculos não tenham legendas. “Os italianos são mais estrangeiros ao meu teatro do que um público estrangeiro.” É um gesto político. “É claro que é um gesto político. Quero que os italianos façam o esforço de compreender o seu próprio país. Se a língua conserva as tradições de um país, o país não existe sem esse esforço”, diz.

Dizia Antígona: “Não sou feita para odiar mas para amar.” Assim diz Emma Dante.

 

Um trabalho de revelação


Palermo é a personagem principal dos espectáculos de Emma Dante, mas a paisagem que entra pelos seus textos é como uma respiração em suspenso. “Para mim isso não é um problema específico de Palermo. Essa suspensão é a prisão onde entramos tantas vezes. O que conto nos meus espectáculos não são histórias de Palermo. Não quero contar a história de Palermo. Quero contar a história da humanidade a partir de Palermo.” Diz Antígona: “Se as forças me faltarem, continuarei.” Assim diz Emma Dante.

A narrativa da família Macaluso, contada nesse dialecto que traz as memórias de todo um povo, é como um jogo temporal com a memória do próprio corpo, lançado ao campo de batalha, como dizia Pier Paolo Pasolini. Um corpo que desaparece no interior do quadro negro onde residem os fantasmas, por oposição ao precipício que é a frente do palco, e que se oferece, sem efeitos, aos espectadores, inventores últimos da paisagem. “O que procuro fazer, ao tornar visível esse quotidiano, é inventar uma paisagem onde os actores sejam a memória dos lugares e das pessoas. O trabalho dos actores deve ser feito de forma perigosa. Procuro fazer-lhes entender que não devem ter medo nem vergonha de ter medo. Devem trazer consigo o que existe de mais pessoal para que possam inventar essas paisagens a partir da palavra.”

Emma Dante tem com os seus actores, que trabalham como se fossem uma família – ao ponto de o nome da família do espectáculo ser, efectivamente, o nome de família de uma das actrizes –, um cuidado particular com essa ideia de construção e com o que ela possa produzir. “O quotidiano sobre o qual escrevo é o quotidiano que eles habitam. O trabalho, muito rigoroso, é um trabalho de revelação desse quotidiano, de modo a que ele não se torne, por sua vez, ficcional, o que é muito difícil porque o corpo tem uma memória”.

E então pede-lhes que aquele que é o seu quotidiano seja construído a partir das suas falhas, do que normalmente recusam.

Percebemos melhor o que nos diz Emma Dante quando, dias depois de termos visto o espectáculo em Avignon, encontramos algumas das actrizes-irmãs num autocarro, à saída de um outro espectáculo, tentando experimentar formas de voltar a acreditar que o estalo que uma delas dá e a outra recebe seja verdadeiro. Quando contamos este episódio à encenadora, ela ri-se e explica o que todos os dias diz aos seus actores: “É preciso convencer o actor a esquecer completamente a história e o que irá acontecer a seguir. Um estalo é algo doloroso. Esta actriz [Leonarda Saffi] que todas as noites o deve receber tem, a cada representação, de se esquecer que o vai receber, do mesmo modo que a actriz que o dá [Stéphanie Taillandier] não o pode antecipar. A memória que o corpo tem coloca o actor numa posição de defesa. É preciso que o corpo se esqueça, para que possa restituir uma memória ao espectador.”

Emma Dante não quer que o quotidiano se torne ficção. Para isso impede os actores de se esconderem das personagens, tal como gostaria de impedir os silicianos de se esconderem, na paisagem, do seu destino:  “A beleza não é algo que lhes deva pertencer. A beleza pertence a quem a sabe reconhecer.” 
 

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Há coisas que continuam as mesmas, mesmo que seja preciso mudá-las, lia-se nesse romance crepuscular de Tommaso di Lampedusa. E em Palermo, na Sicília, ainda são os homens que mandam, da porta da rua para fora. Ainda são as mulheres que se oferecem em sacríficio. Ainda são os mortos que assombram os vivos e ainda são os vivos que têm medo de si mesmos. Ainda há uma montanha silenciosa que observa os homens e as mulheres sem os deixar sair daquele pó que se lhes cola como se fosse mais natural do que a própria pele. Às vezes cospe-se terra, às vezes cospe-se fogo. Às vezes a única solução é escolher morrer. Outras vezes há quem decida escolher viver.

Emma Dante é, aos 47 anos, das que escolheram viver mesmo que isso possa significar morrer todos os dias. Encenadora, actriz, dramaturga, romancista, cineasta, é um caso à parte na paisagem europeia, com o seu teatro que insiste em fugir da representação do quotidiano até que ele se torne tão ficcional que parece um registo directo e não, nunca, um documentário forjado. Um teatro que não se compreende numa ideia simplificada de feminismo, porque o uso que Emma Dante faz das calças, sendo político, não é menos humanista do que o desejo de abolir o esterótipo. Um teatro que, afinal, é político porque não pode ser outra coisa, nem de outra forma. “Um teatro que nasce do quotidiano mas que é mais do que isso: não é o seu espelho. É um teatro onde o gesto morre todos os dias e todos os dias se regenera": palavras dela.

As Irmãs Macaluso, que hoje encerra, no Palco Grande da Escola D. António da Costa, o 31.º Festival de Almada, marca a terceira passagem de Emma Dante por Portugal; é a sexta peça sua que podemos ver por cá depois de mPalermu e La Scimia (Teatro Carlos Alberto e Teatro Nacional São João, Porto, 2004) e Carnezzeria, Vita Mia e Mischelle di Sant’Oliva (Centro Cultural de Belém, Lisboa, 2008). Na sua cruel brevidade, o espectáculo vive de um desejo de fuga a partir da memória, como se nela buscasse as razões da prisão. Emma Dante faz-nos regressar a uma Palermo que parece ficção pela força brutal dos sentimentos. De tão intenso que é, habitado por corpos que se oferecem a um ritual de expiação, As Irmãs Macaluso surge-nos como um mergulho em apneia numa paisagem rochosa, de areia escura, pobre, quase sem destino, mas habitada por personagens com um imenso desejo de vida.

Sete irmãs – Lia, Antonella, Gina, Cetty, Maria, Pinuccia, Katia – presas à memória da infância, de um dia de praia que as fez deixar de serem crianças, e depois a todas as mortes que se seguiram a essa que era só uma brincadeira, como se na invocação dos mortos encontrassem forças para mais um dia de vida. Sete irmãs e os seus fantasmas, os seus medos, as suas falhas. Sete actrizes e três fantasmas (o pai, a mãe e o filho de uma delas, todos mortos) dentro de um texto cheio de melancolia amarga, como os limões que eram a única coisa que tinham para comer. Personagens que nem chorar podiam porque era como se não tivessem olhos através dos quais as lágrimas pudessem sair.

 

A língua do povo

Emma Dante viu um dia uma encenação da Antígona, de Sófocles, e percebeu que a força daquela mulher era a força que gostaria de ter para enfrentar a montanha silenciosa que paira sobre Palermo, as calças dos homens, a pobreza das ruas, os poderes silenciosos, e para compreender porque se dizia que nunca nada mudaria. Se o teatro representa “um gesto que morre, é também um gesto que se deve regenerar, tal como o quotidiano”.

Nesse dia, Emma Dante percebeu que o teatro também podia ser isso: “a força de resistir”. E Antígona, a que queria enterrar o irmão e escolhia morrer porque isso significava estar mais viva do que na vida que a sua condição lhe podia dar, tornou-se para ela uma espécie de guia para um teatro que desafia a montanha silenciosa.

As imagens no teatro de Emma Dante são um caso à parte na paisagem do teatro contemporâneo europeu e, nomeadamente, naquilo a que se chama escrita de palco. O texto não existe para criar imagens metafóricas ou simbólicas,  mas para mostrar, revelar, expor ideias concretas. Há na sua relação com o corpo e com a palavra algo que vai para lá da metáfora e que parte, precisamente, da mesma força que encontrou na resistência de Antígona: “Todo o meu trabalho se centra nos actores. É a partir deles que tudo surge. As suas improvisações são o que me permite perceber o que são os traços das pessoas, as suas falhas, as suas virtudes”.

De resto, esse seu teatro concreto, e habitado por um quotidiano que se torna visível a partir da precisão do gesto, expressa-se através do dialecto que guarda a história da Sicília colonizada.  “Os dialectos são a língua do povo, são eles que contam a sua história”, conta-nos uma encenadora que insiste que, em Itália, os seus espectáculos não tenham legendas. “Os italianos são mais estrangeiros ao meu teatro do que um público estrangeiro.” É um gesto político. “É claro que é um gesto político. Quero que os italianos façam o esforço de compreender o seu próprio país. Se a língua conserva as tradições de um país, o país não existe sem esse esforço”, diz.

Dizia Antígona: “Não sou feita para odiar mas para amar.” Assim diz Emma Dante.

 

Um trabalho de revelação


Palermo é a personagem principal dos espectáculos de Emma Dante, mas a paisagem que entra pelos seus textos é como uma respiração em suspenso. “Para mim isso não é um problema específico de Palermo. Essa suspensão é a prisão onde entramos tantas vezes. O que conto nos meus espectáculos não são histórias de Palermo. Não quero contar a história de Palermo. Quero contar a história da humanidade a partir de Palermo.” Diz Antígona: “Se as forças me faltarem, continuarei.” Assim diz Emma Dante.

A narrativa da família Macaluso, contada nesse dialecto que traz as memórias de todo um povo, é como um jogo temporal com a memória do próprio corpo, lançado ao campo de batalha, como dizia Pier Paolo Pasolini. Um corpo que desaparece no interior do quadro negro onde residem os fantasmas, por oposição ao precipício que é a frente do palco, e que se oferece, sem efeitos, aos espectadores, inventores últimos da paisagem. “O que procuro fazer, ao tornar visível esse quotidiano, é inventar uma paisagem onde os actores sejam a memória dos lugares e das pessoas. O trabalho dos actores deve ser feito de forma perigosa. Procuro fazer-lhes entender que não devem ter medo nem vergonha de ter medo. Devem trazer consigo o que existe de mais pessoal para que possam inventar essas paisagens a partir da palavra.”

Emma Dante tem com os seus actores, que trabalham como se fossem uma família – ao ponto de o nome da família do espectáculo ser, efectivamente, o nome de família de uma das actrizes –, um cuidado particular com essa ideia de construção e com o que ela possa produzir. “O quotidiano sobre o qual escrevo é o quotidiano que eles habitam. O trabalho, muito rigoroso, é um trabalho de revelação desse quotidiano, de modo a que ele não se torne, por sua vez, ficcional, o que é muito difícil porque o corpo tem uma memória”.

E então pede-lhes que aquele que é o seu quotidiano seja construído a partir das suas falhas, do que normalmente recusam.

Percebemos melhor o que nos diz Emma Dante quando, dias depois de termos visto o espectáculo em Avignon, encontramos algumas das actrizes-irmãs num autocarro, à saída de um outro espectáculo, tentando experimentar formas de voltar a acreditar que o estalo que uma delas dá e a outra recebe seja verdadeiro. Quando contamos este episódio à encenadora, ela ri-se e explica o que todos os dias diz aos seus actores: “É preciso convencer o actor a esquecer completamente a história e o que irá acontecer a seguir. Um estalo é algo doloroso. Esta actriz [Leonarda Saffi] que todas as noites o deve receber tem, a cada representação, de se esquecer que o vai receber, do mesmo modo que a actriz que o dá [Stéphanie Taillandier] não o pode antecipar. A memória que o corpo tem coloca o actor numa posição de defesa. É preciso que o corpo se esqueça, para que possa restituir uma memória ao espectador.”

Emma Dante não quer que o quotidiano se torne ficção. Para isso impede os actores de se esconderem das personagens, tal como gostaria de impedir os silicianos de se esconderem, na paisagem, do seu destino:  “A beleza não é algo que lhes deva pertencer. A beleza pertence a quem a sabe reconhecer.” 
 

The partial view '~/Views/Layouts/Amp2020/CITACAO_CENTRAL.cshtml' was not found. The following locations were searched: ~/Views/Layouts/Amp2020/CITACAO_CENTRAL.cshtml
CITACAO_CENTRAL