A Primeira Guerra Mundial vista do retrovisor

Ao sétimo livro, o escritor de policiais Pierre Lemaitre recebeu o Prémio Goncourt. Foi no ano passado com Até Nos Vermos Lá em Cima , um romance de guerra e uma homenagem à literatura.

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Pierre Lemaitre começou tarde a publicar, depois de rejeições de muitos editores ENRIC VIVES-RUBIO

Se nos seus romances as personagens se perguntam “Como cheguei aqui?”, com um Goncourt ao seu sétimo livro publicado, Pierre Lemaitre, 63 anos e uma carreira que começou tarde e depois de rejeições de muitos editores, faz a mesma pergunta. O escritor esteve em Lisboa a lançar este seu livro, a história de dois homens, Albert e Édouard, um bancário e um artista, que se conhecem nas trincheiras da guerra de 1914-1918 e no pós-guerra, em França, ficam abandonados à sua sorte criando uma burla amoral.  Este Verão, Pierre vai começar a trabalhar na adaptação ao cinema.

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Se nos seus romances as personagens se perguntam “Como cheguei aqui?”, com um Goncourt ao seu sétimo livro publicado, Pierre Lemaitre, 63 anos e uma carreira que começou tarde e depois de rejeições de muitos editores, faz a mesma pergunta. O escritor esteve em Lisboa a lançar este seu livro, a história de dois homens, Albert e Édouard, um bancário e um artista, que se conhecem nas trincheiras da guerra de 1914-1918 e no pós-guerra, em França, ficam abandonados à sua sorte criando uma burla amoral.  Este Verão, Pierre vai começar a trabalhar na adaptação ao cinema.


No seu primeiro livro, o policial Travail soigné, há um serial killer que copia crimes inventados por romancistas. É uma ideia engraçada.

Pareceu-me interessante começar a minha carreira literária por um livro que homenageasse a literatura. Sou, para ser pretensioso, pós-moderno: durante muito tempo ensinei literatura e como lhe devo tanto – quase tudo – parecia-me normal pagar a minha dívida simbólica com uma homenagem. Travail soigné é a história de uma série de crimes que se passam em livros e é num livro que se vai encontrar a solução. É divertido, elegante, e foi a minha maneira sorridente e humorística de pagar a dívida.

No posfácio de Até Nos Vermos Lá em Cima também agradece “os empréstimos” a vários autores, desde Émile Ajar a Carson McCullers.

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É curioso porque estão lá autores de que não gosto, como o cantor Georges Brassens. Mas sou leal, tento ser honesto, e quando estava a escrever, lembrei-me de alguma coisa que disse numa entrevista. Como retomei essa ideia, pago a minha dívida citando-o. Mas não se pense que esta lista é a das minhas admirações. Não é. É simplesmente a lista de pessoas que disseram ou escreveram qualquer coisa que me atravessou o espírito enquanto escrevia.

Uma das quais é Proust, que lhe inspirou  uma cena.

No capítulo X precisava de fazer com que uma personagem surgisse muito poderosa, terrível, perigosa. Se estivesse no cinema, escolheria um actor com esse ar. Mas estou na literatura. Então como fazê-lo? É preciso – e isso é a lição de Hemingway – encontrar algo que traduza o que a personagem é. Não podemos simplesmente dizer que se trata de um homem terrível, é preciso que o leitor o sinta. Proust conseguiu fazê-lo em O Lado de Guermantes. Como me inspirei nele, pus lá o nome. Mas não é para me situar como um filho espiritual de Proust. É só porque num dado momento a sua trajectória cruzou-se modestamente com a minha.

Esclarece também que concebeu a burla dos monumentos aos mortos depois de ter lido um artigo de Antoine Prost sobre o escândalo das exumações militares dos anos 1920.

O artigo de Prost não foi o agente iniciador do livro. Na realidade, não sei como é que acontece com os outros romancistas, mas é-me muito difícil saber em que momento começa um livro no meu espírito. 

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Há escritores para quem começa com uma imagem ou com uma voz.

Pode ser, mas de cada vez que reflicto na primeira imagem encontro outra e ainda outra. Tenho a impressão de que temos várias imagens – do que vimos e do que ouvimos – e a um dado momento tudo converge para o mesmo ponto. É a ideia do romance que começa a vir. É muito difícil saber como começa um livro, sobretudo este.

Mas já disse que desde a adolescência tinha um interesse particular pela Primeira Guerra Mundial.

É prático dizer isso. Também tenho uma paixão pelo Tintin, por raparigas, pela filosofia... Mas não coleccionei durante toda a minha vida fotos da Primeira Guerra Mundial, não sou um maníaco; frequentei mais as raparigas do que a guerra. No entanto, tem razão. Na minha adolescência li sobre a Primeira Guerra Mundial e essa guerra abalou-me, principalmente pelas suas imagens. É uma guerra de uma barbárie extrema, e o que mais me impressionou foi a juventude dos soldados franceses. Eu devia ter 17 anos e identifiquei-me com eles. Já adulto, e enquanto intelectual, o que me interessou foi perceber que esta guerra que me tinha tocado por razões psicoafectivas tinha também uma grande importância geopolítica. Era a Grande Guerra que fazia com que o século XIX acabasse em 1914 e que o século XX começasse a partir de 1918. Era a placa giratória entre dois séculos, entre dois países, a França antes da Guerra e a França do pós-Guerra, e entre duas concepções da Europa, a Europa imperial e a Europa moderna como a viríamos a conhecer. De facto, os dois interesses convergiram: o afectivo e literário e o político e social.

De qualquer maneira, escreveu um romance que não é sobre a guerra, mesmo se as primeiras 40 e tal páginas decorram durante o conflito. É sobre as pessoas que não conseguiram sair da guerra depois de ela acabar…

Eles continuam uma outra guerra, passam de uma guerra a outra. Parece-me universal. Se olharmos para o final da Guerra do Vietname, vemos que os veteranos foram muito mal recebidos nos EUA. Rambo, o filme com Sylvester Stallone, conta a história de um homem que regressa e que ninguém quer ver. Todas as guerras provocam a mesma coisa: ficamos muito contentes por enviar homens para a guerra mas não ficamos contentes de os ver regressar. É universal, não é uma característica francesa nem da Primeira Guerra Mundial.

Então de que maneira lhe interessou olhar para esta guerra?

O período antes da Primeira Guerra Mundial já tinha sido tratado em muitos romances, bem como a guerra propriamente dita. O que me parecia interessante era deslocar-me, sair da Primeira Guerra, olhando-a como se através de um retrovisor. Parecia-me uma perspectiva cinematográfica interessante. A questão que se coloca sempre a um escritor é a do ponto de vista, não há mais nenhuma questão em literatura. Onde se coloca a câmara? Onde pomos os nossos olhos? 

E a seguir?

A seguir são questões técnicas, a maneira como cozinhamos. A verdadeira criação, a verdadeira inteligência de um texto é : onde colocamos “o olho da câmara”? É John dos Passos, na trilogia U.S.A, que fala do “olho da câmara” e é uma excelente metáfora do trabalho de um romancista: há mil maneiras de contar uma história, a verdadeira questão é onde vamos colocar a iluminação. Pareceu-me que nesta Primeira Guerra Mundial havia uma maneira de a iluminar que ainda não tinha sido muito vista: era colocar a câmara no fim e olhar pelo retrovisor.

Foi aí que leu sobre os monumentos aos mortos?

Foi um pouco antes. O artigo de Prost revelava que em três ou quatro anos foram erigidos 30 mil monumentos aos mortos. Em alguns domingos foram inaugurados 50 a 60 monumentos aos mortos em localidades francesas. Um mercado extraordinário. Achei isso espectacular e guardei-o na minha cabeça. Quando estava a colocar a questão de como ia contar a minha história, lembrei-me. O artigo falava do pós-guerra, da maneira como erigimos monumentos à glória dos que estão mortos, e por isso decidi fazer um romance sobre os vivos. 

No entanto, a morte paira neste livro do princípio ao fim. Há também uma viagem do bem ao mal. Como liga isso ao universo da sua literatura?

Venho do romance policial que é hoje, no século XXI, o grande género literário que reflecte sobre o bem e o mal. O mal principal é provocar-se a morte de outro. Um policial começa sempre por um homicídio, um crime. A grande questão que coloca sempre, centenas após centenas de livros, é "como é que chegamos lá, porque é que matamos?"


Há quem defenda que é no policial que ainda se faz um romance social. Até Nos Vermos Lá em Cima retrata toda a estrutura de uma sociedade.

Mas isso não muda nada à questão. Escrevi Cadres noirs, um romance social sobre o desemprego. O meu herói, aos 50 e tal anos, está desempregado e fazem-no crer que vai conseguir um emprego. Faz tudo para o ter e dá-se conta de que lhe mentiram, de que nunca esteve em causa ele ficar com aquele trabalho. Fica furioso. O livro começa com esta frase: “Nunca fui um homem violento e pergunto-me como cheguei aqui." Um homem banal que se transforma numa besta selvagem faz no fundo a mesma velha pergunta. A questão de Albert Maillard, a personagem de Até Nos Vermos Lá em Cima, é : “Como é que eu, um empregado de banco, passei a ser um escroque perseguido pela polícia, que fez o acto escandaloso de roubar o dinheiro dos monumentos aos mortos? Como cheguei a isto?”

Édouard, o outro protagonista, deve ter-lhe dado prazer a criar.

Ele agrada muito às mulheres. Acorda nelas o lado maternal.

Gostei particularmente da ideia das máscaras.

Foi um pouco cobarde da minha parte porque tive o Édouard estropiado à minha frente o tempo todo e a determinada altura pus-lhe uma máscara. Tente viver 48 horas com Édouard e irá compreender muito rapidamente como se é posto à prova.

O que mais impressiona é o odor da doença. Fez isso bem.

Funciona bem, é verdade, mas sentia-o mesmo. E havia outra coisa, como a chegada de Luísa, a menina. A minha hipótese era fazer um livro em que ninguém saísse incólume da guerra. Mesmo esta menina cujo pai morreu cuja mãe ficou louca. Podemos dizer que é uma criança muda.

É por isso que a relação dela com Édouard funciona.

Os dois são seres emudecidos. Édouard não consegue falar por causa dos seus ferimentos na garganta e ela desde o princípio que só o olha, fala pouco. Vão reaprender juntos e, no fundo, as máscaras são a sua linguagem, a linguagem das pessoas que já não têm palavras. Quando não temos mais palavras, fazemos coisas em vez de as dizer. É também por isso que matamos: quando não podemos simbolizar qualquer coisa pelas palavras compramos um revólver. É simples.

É também um romance sobre a amizade?

Não sei se eles são verdadeiramente amigos, Albert e Édouard. Estão ligados um ao outro pelas circunstâncias e não sabem como se separar. São camaradas de guerra.

Muitas vezes descreve-os como se fossem um casal.

Não se podem separar. Por exemplo, qual é o problema de Albert? Alguém lhe salvou a vida. Como é que pagamos essa dívida? Para a pagar, Albert faz a lida da casa e a comida para Édouard, não se sabe em que momento vai poder dizer que pagou a sua dívida. Se for amizade, é uma amizade curiosa. É muito mais perverso do que isso.

Para que personagem escreveu este livro?

Escrevi-o para si, para os leitores.

Mas para que personagem?

Para Albert e para Merlin.

Termina aliás com Joseph Merlin, enviado para inspeccionar cemitérios militares pelo Ministério das Pensões, Subsídios e Alocações de Guerra.

Sim, foi para Merlin. Penso que nesta história muito complicada em que não há muita moral, o que faz com que o herói seja amoral, Merlin é o único a encarnar a moral. Apesar de tudo, ele que é porco, mau, desagradável, antipático…

 …faz o que é preciso ser feito.

Toda a história nos conduz a Merlin. Afectivamente fiz este livro para Albert, mas politicamente fi-lo para Merlin.

No final diz que Merlin é inspirado numa personagem de Louis Guilloux.

É um escritor do século XX que escreveu um livro [ Le Sang noir ] sobre a Primeira Guerra Mundial, um romance volumoso com uma particularidade: passa-se num só dia e conta a história de um professor de filosofia que se chama Merlin. Mudei-lhe o nome e fiz uma personagem mais moralista. E assim voltamos ao início da nossa conversa sobre a homenagem à literatura. No fundo, continuo a fazer o que sei fazer. Há uma citação que me diverte, é de Scott Fitzgerald: “Um romancista é alguém que tem duas ou três coisas a dizer e que livro após livro tenta dizê-las melhor."