Auto-retrato de um homem a atravessar um rio
Paisagem Desconhecida chega a Lisboa, em estreia mundial, na próxima quarta-feira. É a nova viagem sensorial de Josef Nadj – uma viagem em que o gesto e a sua memória configuram uma coreografia voluntariamente secreta, para um corpo voluntariamente furtivo.
Paisagem Desconhecida, que o artista nascido em 1957 em Kanjiza, na Voivodina (então Hungria, hoje Sérvia), vem estrear a Lisboa, a convite do 31.º Festival de Almada, é uma nova tentativa de compreender como se pode atravessar a vida. Dentro dessa vida, que Nadj entende como uma paisagem, um rio e um homem que o atravessa, ajudado por mãos que esculpem no ar o que de mais próximo possa existir de uma ideia de pertença. Fala-se de desejo porque se fala de utopia. “Como fazer representar a figura humana se ela está sempre a mudar?”, pergunta Nadj, coreógrafo e escultor, bailarino e pintor, homem que carrega nas rugas do rosto o exílio húngaro e na leveza das mãos a casa francesa que o acolheu em 1980.
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Paisagem Desconhecida, que o artista nascido em 1957 em Kanjiza, na Voivodina (então Hungria, hoje Sérvia), vem estrear a Lisboa, a convite do 31.º Festival de Almada, é uma nova tentativa de compreender como se pode atravessar a vida. Dentro dessa vida, que Nadj entende como uma paisagem, um rio e um homem que o atravessa, ajudado por mãos que esculpem no ar o que de mais próximo possa existir de uma ideia de pertença. Fala-se de desejo porque se fala de utopia. “Como fazer representar a figura humana se ela está sempre a mudar?”, pergunta Nadj, coreógrafo e escultor, bailarino e pintor, homem que carrega nas rugas do rosto o exílio húngaro e na leveza das mãos a casa francesa que o acolheu em 1980.
Encontramos Nadj em Paris, durante os ensaios de Paisagem Desconhecida, interrompidos, também eles, pelas greves que desde Junho têm afectado dezenas de espectáculos e festivais. Tem mais tempo livre do que estava a contar: por esta altura deveria estar a fazer visitas guiadas à exposição que o Parc de la Villete preparou e organizou em torno da sua obra ao longo dos dois últimos anos. A mini-retrospectiva que estava incluída no programa Nadj à la Villette incluía as apresentações de Les Philosophes (2001) e Ozoon (2013), que funcionariam como porta de entrada para esta nova criação, que ali teria a sua antestreia ainda in progress antes das primeiras apresentações oficiais de dias 16 e 17 no Teatro Nacional D. Maria II – uma nova criação que, uma vez mais, se estrutura em torno do desaparecimento e da memória.
A interrupção dos ensaios e o cancelamento das peças tornaram-se para Nadj num modo de pensar o significado do seu próprio percurso. Aos 58 anos, há muito tempo que deixou de querer compreender o seu movimento. A fixação do gesto não é algo que lhe interesse mais do que o lastro deixado por esse mesmo gesto. “Como se pode guardar a memória?” Fala por perguntas que transforma depois em movimento. Paisagem Desconhecida é um percurso e um inventário de modos de “projectar uma imagem final”: a morte. “Nunca se deve tentar compreender tudo”, avisa. “Quem sabe de que vamos precisar quando chegarmos a essa paisagem desconhecida? O que fazemos depois? O que deixamos aqui?”
O corpo que se esconde
Há em Nadj um prazer imenso pela descoberta que pode parecer ser contrariado pela intensa dor que os seus espectáculos carregam. Ele chama a esse peso “a memória da qual partimos”. Paisagem Desconhecida é um outro nó, um outro centro nevrálgico num discurso no qual confluem referências da pintura renascentista interpretadas por artistas perseguidos no século XX e em que o movimento se esconde atrás de máscaras, tal como a música descarna o espaço cada vez mais estreito, cada vez a precisar mais de um espectador que seja mais do que (melhor do que?) um observador.
Porque não é a fixação do gesto que lhe interessa, mas sim “o lastro desse gesto”, Paisagem Desconhecida vai buscar a sua memória a algo que já não existe: Paysage aprés l’orage, criação de 2006 pensada como “um auto-retrato do artista enquanto trabalha” e feita 20 anos depois do choque que foi Canard Pékinois (passou pelos Encontros Acarte em 1988), verdadeira ars poetica de um homem que se escondia nos gestos primitivos, recusando a sua dimensão telúrica e insurgindo-se contra a recusa do homem em reconhecer a sua culpa.
Então, em 2006, Nadj desenhava, fotografava, coreografava, ensaiava modos de expressão que tentavam definir o corpo e a identidade a partir de processos de contemplação. Quase dez anos depois, “o novo corpo não vai substituir aquele que já existiu”. Paisagem Desconhecida não começa onde Paysage aprés l’orage ficou, no meio da depressão argilosa, por entre as folhas das árvores, atrás da máscara que era a fotografia. “Nunca se recomeça. Faz-se de novo. É essa a diferença entre um quadro e uma coreografia. O espectáculo já existe na nossa memória, existirá no nosso corpo, inevitavelmente; não precisamos de voltar a ele como voltamos a um quadro porque as ideias não se esgotaram. Há diferentes abordagens ao gestos. Para mim, no gesto, a força e o significado é que importam, o modo como o utilizamos. Não são a forma nem a escrita do gesto que me movem, mas sim a relação primária com a matéria, que é sempre a mesma."
Para ele, o corpo só existe na sua relação com uma paisagem, como um objecto que procura o seu espaço e o encontra. Falar da presença do homem numa paisagem equivale a falar de vida. “O corpo é um elemento dessa paisagem. A sua importância varia conforme o modo como a entendemos. O que refazemos e inventamos são formas de diálogo entre o corpo e a paisagem, entre o homem e a vida."
Paisagem Desconhecida não se construiu enquanto continuação de Paysage aprés l’orage, mesmo que Nadj considere que nunca devemos dar por concluídos os auto-retratos. As obras, às vezes, “são apenas variações sobre um mesmo tema” – a sua é-o certamente. “É como andar: precisamos das duas pernas para encontrar o equilíbrio, mas continua a ser necessário saber como andamos." Não se trata tão-pouco de um regresso, nem de um recomeço. Ou sequer de um passo atrás para melhor ver. Construir a partir das ruínas? “Construir a partir da memória. Não são ruínas. Ensaiamos modos de habitar esta nova arquitectura, ao mesmo tempo que pensamos o que arquitectura pode ser. Inventamos as regras ao mesmo tempo que inventamos as formas do espectáculo. Agora interessa-me o corpo que se esconde nas máscaras e nos figurinos, ou em superfícies que o escondem (ou será que o revelam?) – as ramificações de uma presença possível do corpo."
Máscaras
Quase 20 anos depois, os corpos de Josef Nadj e Ivan Fatjo, acompanhados pela música de Akosh S. e Gildas Etevenard, escondem-se menos, mas nem por isso se revelam mais. Os espectáculos de Nadj são também as suas máscaras. Quando diz que quer procurar “a harmonia do gesto através de uma arquitectura que se inventa a cada instante” está também a falar de uma máscara que se constrói. “Podemos fazer essa analogia e dizer que as criações são a máscara de um coreógrafo. Uma máscara não serve só para esconder, muitas vezes também serve para revelar dimensões escondidas. Tal como as pessoas, também as obras vivem de coisas que nos escapam." Às vezes, aquele que leva a máscara não revela aquilo de que se esconde. Esta paisagem é desconhecida porque esta vida é desconhecida. Por entre gestos de desaparecimento, por entre movimentos que parecem restos de uma luta, por entre frases que são como ideias fragmentadas, perpassa em toda esta vasta paisagem um desejo de ascese.
Os movimentos existem para libertar os corpos ou são os corpos que se vão desapossando de formas reconhecíveis? “Todo o meu trabalho é habitado pelo paradoxo que nos impede de continuar, como as pedras que encontramos no caminho. Avançamos porque não temos outro modo de chegar ao que procuramos. Encontramos uma forma mesmo que busquemos, incessantemente, o que fica fora da forma. A forma nunca chega. A matéria palpável de que se constitui o espectáculo é a expectativa que lançamos sobre a matéria não-concreta, sobre o que lá não está.”
Há em todo o movimento de Paisagem Desconhecida um questionamento profundo sobre a vida e a morte, sobre “esta passagem que fazemos entre duas existências”. O que intuímos, mais do que vemos, é um espaço aberto que tenta captar essa fusão entre bailarinos e músicos. É um processo humanista, sem artifícios visuais. “A forma habita a ideia que procuramos”, diz alguém para quem o trabalho “vive da procura daquilo que é comum entre a diferença e a semelhança".
Já tínhamos visto, nas suas recentes passagem por Portugal – com Petit Psaume du Matin (2001), em que com Dominique Mercy ensaiava modos de ritualizar a alegoria, e mais tarde com Les Corbeaux (2010) e ATEM le Souffle (2012) –, como para Nadj a ideia de paisagem é também a de um território sem fronteiras, uma paisagem mental tanto quanto uma paisagem real. Porque começa no corpo (Les Corbeaux) e se relaciona com o olhar ou com a sua ausência (ATEM Le Souffle), o movimento é algo que nunca se conclui, tal como o horizonte é algo que nunca se atinge. “Uma visão que nunca se concretiza. É algo que fazemos, mas não sabemos como formular”, diz este coreógrafo que gosta de pensar uma coreografia como “um discurso sobre a presença e a memória”.
E então pergunta, com as mãos a acompanharem as palavras: “Como pode o gesto falar de algo que está em permanente mudança? Como pode o gesto ser a voz dessa mudança?”