Livros de escola, crianças e a necessária confiança no saber
Se uma criança conclui que o seu livro está errado, fica com uma grande margem de manobra para nos dizer: “Não estudo, porque esse livro é uma porcaria. Só diz parvoíces.”
A escrita de um manual é por isso um acto complexo e de grande responsabilidade – está em causa a criação desse laço de confiança – que tem de resultar de um conhecimento razoavelmente vasto das temáticas abordadas. Estas têm de ser trabalhadas de forma a poderem ser apresentadas numa linguagem e numa lógica formal compatível com a idade dos estudantes, mas sem que isso as afaste da justeza do conhecimento que esteve na base desse processo. Se uma criança conclui que o seu livro está errado, fica com uma grande margem de manobra para nos dizer: “Não estudo, porque esse livro é uma porcaria. Só diz parvoíces.” E é exactamente isso que por vezes acontece.
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A escrita de um manual é por isso um acto complexo e de grande responsabilidade – está em causa a criação desse laço de confiança – que tem de resultar de um conhecimento razoavelmente vasto das temáticas abordadas. Estas têm de ser trabalhadas de forma a poderem ser apresentadas numa linguagem e numa lógica formal compatível com a idade dos estudantes, mas sem que isso as afaste da justeza do conhecimento que esteve na base desse processo. Se uma criança conclui que o seu livro está errado, fica com uma grande margem de manobra para nos dizer: “Não estudo, porque esse livro é uma porcaria. Só diz parvoíces.” E é exactamente isso que por vezes acontece.
Vejamos o manual Despertar para o Estudo do Meio 3 – da autoria de Franclim Pereira Neto, Edições Livro Directo, 2012 – e tracemos um percurso relacional plausível entre uma criança do 3.º ano do 1.º ciclo e o referido manual. O livro arranca com uma secção intitulada “À descoberta de nós mesmos – a nossa nacionalidade e naturalidade – a existência de vários países”. Começa com duas linhas que passo a citar: “Um país é um território geograficamente delimitado e habitado por uma comunidade com história e cultura própria, com uma unidade política, um estado e as mesmas leis.” A informação assim alinhada em duas singelas linhas corresponde a oito complexos blocos temáticos, que depois de isolados precisariam, arrisco um número, de uma semana cada um para serem assimilados por crianças de oito ou nove anos (para um nível de conhecimento universitário seriam necessários alguns anos de trabalho para o estudante entender criticamente as fragilidades da definição proposta). Depois de se deparar com duas linhas em que estão alinhadas palavras que remetem para conteúdos que não são explicados, a criança depara-se com um mapa da Europa, com um mapa de Portugal e, logo na segunda página do seu manual, com esta afirmação: “A nacionalidade é atribuída no momento do nascimento (país onde se nasce) ou por meio de naturalização (adoção da nacionalidade do país onde se reside, concedida pelo Estado).”
Imaginemos que na sala de aulas da nossa criança estão, para além dela, crianças cujos nascimentos ocorreram nas seguintes situações: 1) nasceu em Portugal, onde os pais, que são russos, residem; 2) nasceu nos Estados Unidos da América, onde a mãe, portuguesa, estava a estudar; 3) nasceu em França, onde os pais, portugueses, estavam na altura a trabalhar; 4) nasceu em Portugal, mas tem uma mãe portuguesa e um pai com dupla nacionalidade (português e canadiano); 5) nasceu em Portuga,l onde os pais, que são cabo-verdianos, vivem. É possível que a primeira criança seja russa, a segunda americana, a terceira portuguesa, a quarta portuguesa e canadiana e a quinta portuguesa. Se a criança tentar perceber, a partir do manual, a diversidade concreta das formas de obtenção das nacionalidades dos seus colegas, fica completamente baralhada. Porque o livro devia começar por explicar que, no que diz respeito à nacionalidade, há o chamado "direito de solo" e o chamado "direito de sangue", e que os vários países formulam, a partir dessas duas matrizes, leis – que são muito diferentes de país para país e de época para época – que definem a forma de aceder às respectivas nacionalidades. Passava-se então a perceber que a primeira criança seria russa por direito de sangue, a segunda americana por direito de solo, a terceira portuguesa por direito de sangue, a quarta portuguesa e canadiana por direito de sangue e a quinta portuguesa por direito de solo. Depois dessa primeira explicação geral, o livro devia apresentar a lei portuguesa, que desde 1981 se baseia no direito de sangue, com alterações recentes (2006) baseadas no direito de solo. A formulação incluída no manual leva a supor que a nacionalidade decorre sempre e só de um direito de solo – o que torna a situação das crianças cujas nacionalidades foram obtidas por direito de sangue incompreensível.
Uma vez esclarecida a questão das nacionalidades, a hipotética criança vai continuando o seu percurso escolar e, depois de dar por adquirido que o seu livro de escola organiza frequentemente a informação de forma pouco lógica – e que o melhor é pedir a alguém que lhe faça uns esquemas mais coerentes –, chega, já na página 104, a uma secção intitulada “Os diferentes espaços da nossa localidade – espaços privados e espaços públicos”. Nela começa por encontrar duas definições que até fazem sentido para si: 1) “num espaço privado apenas podem entrar os seus donos ou quem eles autorizam”; 2) “num espaço público podem entrar todas as pessoas que precisam de utilizar esse espaço”. Mas o pior vem depois, quando chega àquilo que para uma criança realmente conta: a experiência do concreto. Num esquema que opõe espaços públicos e espaços privados (página 106) encontra, do lado dos públicos, entre outros: clínicas, farmácias, cinemas, lojas de comércio e bancos. Nessa altura a criança pergunta: “Mas uma daquelas pessoas que têm de viver na rua pode ir sentar-se nos bancos de um banco?” E depois: “E os donos das clínicas deixam lá entrar todas as pessoas que precisam de se tratar?” É nesse momento que um adulto, mesmo que consciente do facto de não dever romper os laços de confiança da criança com as instituições que transmitem o saber, se descontrola e lhe confessa a sua solidariedade: “Sim, o livro diz disparates. O melhor é atirá-lo para um canto e estudar de outra maneira.” E começa pacientemente a explicar-lhe que um centro comercial é um espaço privado que faz de conta que é público, porque assim as pessoas gostam de lá ir e acabam por lá gastar o dinheiro, mas que mesmo quando está muito frio as pessoas que vivem na rua ficam na rua, porque a rua é um espaço público, e não podem ir dormir para os centros comerciais, embora precisassem, porque lá está quentinho, porque eles não são públicos. No fim fica sem saber como é que lhe vai continuar a dizer que os livros da escola são para levar a sério.
Antropóloga – FCSH-UNL