Crucificados: a longa história dos recibos verdes
Passos Coelho aproveitou o regresso dos Monty Python à actividade para, centenas de milhares de desempregados e exilados depois, dizer que pretende que o país se torne uma “sociedade de pleno emprego”
Os sucessivos governos quiseram que mais de um milhão de pessoas tivessem de atravessar o calvário de uma vida a recibos verdes: contrataram centenas de milhar de trabalhadores a falsos recibos verdes e fecharam olhos a centenas de milhar mais. Mas as situações criadas por esta ferramenta de saque são dignas dos maiores génios da ficção literária.
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Os sucessivos governos quiseram que mais de um milhão de pessoas tivessem de atravessar o calvário de uma vida a recibos verdes: contrataram centenas de milhar de trabalhadores a falsos recibos verdes e fecharam olhos a centenas de milhar mais. Mas as situações criadas por esta ferramenta de saque são dignas dos maiores génios da ficção literária.
Após décadas de invisibilidade, no final do governo Sócrates mudou-se o código contributivo penalizando ainda mais quem trabalhava a recibos verdes: as contribuições para a Segurança Social passaram a depender dos ganhos do ano anterior e não do rendimento real mês-a-mês, agravando-se ainda a taxação. Desde 2011 que todos os anos os trabalhadores são postos nos escalões errados de contribuição, com cobranças indevidas.
Maquilhagens como o subsídio de desemprego não passaram disso mesmo, para esconder que os recibos verdes eram e são na sua maioria falsos, isto é, trabalhadores por conta de outrem que passam recibo verde para que o seu patrão, Estado ou privado, não tenha de pagar as suas contribuições, não tenha de dar férias ou licenças, possa mudar os seus salários e despedi-los de um dia para o outro sem motivo. O sonho húmido da entidade patronal do século XIX.
Ainda no governo anterior, passou-se a exigir que os trabalhadores processassem os patrões em tribunal para se congelar a cobrança das suas dívidas, mas foi outro remendo que nunca aconteceu. O ministro Mota Soares, enquanto deputado, arvorava-se em defensor dos precários mas, uma vez no governo, revelou-se o seu carrasco. Sob sua ordem, cobraram-se coercivamente dívidas a centenas de milhares de recibos verdes, sem esclarecer se eram verdadeiros ou falsos, de forma e dimensão dramática. O ministério penhorou casas, salários e bens de centenas de milhares de pessoas, sempre sob a ameaça de prisão nas cartas do governo. Chegou-se ao cúmulo kafkiano de penhorar os bens das Amas da Segurança Social, que trabalhavam ilegalmente para a própria Segurança Social!
Mas ia piorar. Em 2013, os recibos verdes passaram a ser a categoria mais taxada do sistema contributivo. Lucros da banca, rendimentos especulativos ou bens de luxo pagam menos do que os recibos verdes! Quem trabalha assim leva para casa menos de metade do seu salário.
A Lei Contra os Recibos Verdes, iniciativa cidadã, está longe de conseguir responder a todos estes problemas, mas permitiu entre outros casos, que a luta dos enfermeiros da Saúde 24 expusesse 400 trabalhadores a falsos recibos verdes para a empresa LCS.
A recente decisão do governo de manter os cortes dos salários dos recibos verdes, inconstitucionais segundo o Tribunal Constitucional, mostrou uma vez mais como os recibos verdes são carne para canhão e fundo de maneio para as contas do Estado, com o governo a assaltar os precários.
Aparte: Passos Coelho aproveitou o regresso dos Monty Python à actividade, assim como a presença do grupo cómico Porta dos Fundos em Portugal para, centenas de milhares de desempregados e exilados depois, dizer que pretende que o país se torne uma “sociedade de pleno emprego”.