O livro onde cabem “os últimos artesãos do vale do Paiva”
Helena Caetano e João Rodrigues percorreram milhares de quilómetros em busca de artes e ofícios que estão em risco de desaparecer. A "viagem" deu origem a um livro, apresentado esta sexta-feira na livraria Lello, no Porto
Cabem cesteiros, funileiros, latoeiros, oleiros, alfaiates, moleiros, um tamanqueiro, um fazedor de molhelhas e outro de capuchas, escultores e carpinteiros. Cabe quase meia centena de homens e mulheres, diferentes artes e ofícios (se algum nome acima escrito soa estranho não é caso para preocupação — já lá vamos) e uma mão-cheia da história de um país com pedaços a caírem no esquecimento. Helena Caetano e João Rodrigues partiram para o terreno há quase dois anos: percorreram cerca de oito mil quilómetros, ziguezagueando em volta dos 108 do Rio Paiva, e resgataram em fotografia e texto “os últimos artesãos do Vale do Paiva”, frase que dá título ao livro que agora editam.
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Cabem cesteiros, funileiros, latoeiros, oleiros, alfaiates, moleiros, um tamanqueiro, um fazedor de molhelhas e outro de capuchas, escultores e carpinteiros. Cabe quase meia centena de homens e mulheres, diferentes artes e ofícios (se algum nome acima escrito soa estranho não é caso para preocupação — já lá vamos) e uma mão-cheia da história de um país com pedaços a caírem no esquecimento. Helena Caetano e João Rodrigues partiram para o terreno há quase dois anos: percorreram cerca de oito mil quilómetros, ziguezagueando em volta dos 108 do Rio Paiva, e resgataram em fotografia e texto “os últimos artesãos do Vale do Paiva”, frase que dá título ao livro que agora editam.
Helena, professora de Educação Musical, tinha ficado sem emprego e procurava um projecto ao qual se agarrar. João, formado em Cinema e mais do que habituado ao trabalho como freelancer, embarcou na aventura. “Faço parte de uma associação chamada SOS Rio Paiva, de defesa e preservação do vale do Rio Paiva, e por ser dessa zona tinha contacto com alguns artesãos e tinha percebido que muitos deles tinham uma certa idade e que não havia quem continuasse o trabalho”, contou ao P3 Helena Caetano, 38 anos. “Numa fase em que estava em busca de coisas para fazer surgiu a ideia de um livro sobre os artesãos desta zona específica do vale do Paiva.”
Entre a aldeia de Carapito, que pertence a Moimenta da Beira, e Castelo de Paiva, onde o rio desagua, o casal descobriu cerca de meia centena de artesãos. Pesquisa prévia? “Foi pouca, não há catálogos nem inventários sobre o assunto, portanto a melhor maneira de encontrar as pessoas é ir ao café de qualquer aldeia e perguntar”, responde João Rodrigues, 33 anos.
Os muitos dias (calculam que uns 80 no total, espaçados em cerca de um ano) que passaram no terreno deram para encontrar artes e ofícios de que nem sequer tinham ouvido falar. Um exemplo? “O fazedor de molhelhas.” Ora digam lá outra vez: “Fazedor de molhelhas, que é uma espécie de almofada em que assenta a canga, colocada no cachaço dos bois”, elucida João.
Há outros pouco comuns. O tamanqueiro (é isso mesmo: faz tamancos) João Silva, de Castro Daire, era o último da zona a fazer este trabalho, um homem “com uma atitude que não é deste século” e com um “modo de vida incrível”: “Ia às sete da manhã para a oficina e trabalhava todo o dia”, diz Helena. “Fazia uns tamancos lindos e tinha até um cliente japonês. Infelizmente não teve ninguém que aprendesse com ele”, conta, acrescentando que o quase nonagenário faleceu entretanto, no início do ano. O funileiro Arnaldo Cândido, com oficina montada há pelo menos 30 décadas e, por isso, já conhecido de Helena, é um resistente nesta arte praticamente extinta: “Houve muito mercado para isso até aos anos 60, a partir daí houve uma queda abrupta”, diz João.
Preservar memória
Foi pela vontade de “preservar” gente e artes como estas que iniciaram o livro Os Últimos Artesãos do Vale do Paiva: “A ideia era procurar ofícios que não tivessem continuidade e estivessem em risco de desaparecer e de alguma forma registá-los para que pelo menos a história deles e algumas imagens do trabalho ficassem registados”, diz Helena Caetano, que não contava encontrar tanta gente no caminho.
“Quase 100%” dos artesãos com os quais se cruzaram têm “ofícios que estão a morrer”. “Alguns porque não fazem sentido, como os funileiros, mas outros apenas porque são consideradas coisas anacrónicas — e muitas delas não são.” Os cesteiros, por exemplo. As senhoras que fazem mantas de lã, outro. “São produtos com muito valor, mas ninguém está disposto a pagar o preço deles, mais do que justo”, lamenta João Rodrigues.
Perante o eminente desaparecimento das artes às quais se dedicaram em muitos casos durante uma vida, o casal encontrou entre os artesãos uma mistura de sentimentos: “algum conformismo próprio da idade” (a média de idades anda nos 80 anos) e “uma certa tristeza”. Muitos dos artesãos eram auto-didactas, mas muitos outros tinham aprendido desde miúdos com mestres ou com família — e a tristeza virá sobretudo daí, de não ter quem siga os passos deles, como eles seguiram os de alguém.
Esta sexta-feira (dia 4 de Julho), na Livraria Lello, no Porto, o casal apresenta o livro "Os Últimos Artesãos do Vale do Paiva", editado pela Planeta Vivo, com textos feitos pelos dois e fotografias de João Rodrigues. O documentário pode ser o próximo passo? “Já estivemos mais motivados para o fazer do que aquilo que estamos. Morreram dois dos [homens] que seriam as personagens principais do documentário, o tamanqueiro e um dos moleiros. Mas temos muito material e não está completamente posto de parte”, diz João. E Helena acrescenta com um sorriso: “Depois de descansar podemos pensar nessa hipótese.”