Festivais: ano zero mais dois

Num país onde é unânime que a cultura está em crise e o cinema é apenas uma das suas vítimas mais visíveis, a multiplicação de festivais de cinema canibalizando as suas programações pode ser um problema? No arranque do Curtas Vila do Conde, falámos com as direcções dos três certames “de referência” e a resposta é também ela unânime: a crise existe, mas é importante não baixar os braços

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Mas estamos em 2014, dois anos depois do “ano zero”. Este sábado, o Curtas abre portas para o ano 22 num cenário que continua a ser de crise - e já não apenas na produção. Os problemas da exibição agravaram-se ao ponto de 2013 ter sido o pior ano da última década nas bilheteiras (12,5 milhões de espectadores, dois terços dos 18,7 milhões de 2003 segundo o Instituto do Cinema e Audiovisual), resultando no encerramento de salas um pouco por todo o país. E os festivais começaram a sentir a crise na pele, pelo meio de uma proliferação de eventos e mostras temáticas resultante da viabilidade comprovada pelos “pontas-de-lança” IndieLisboa (primeira edição em 2003) e o DocLisboa (iniciado em 2002).

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O Doc teve em 2013 25 mil espectadores contra o pico de 37 mil da edição de 2010, o Indie chegou a ter 44 mil espectadores em 2010 - “ano mágico” para o circuito dos festivais nas palavras de um dos seus directores de sempre, Nuno Sena - mas ficou-se pelos 27 mil em 2014. Pragmático, Sena aponta que era utópico esperar que tudo fosse sempre a subir: “Haverá eventos que ainda estão a crescer, mas as taxas de crescimento [ao longo dos anos] não se podiam manter indefinidamente. E estamos todos a sentir uma retracção que, se calhar, começou há mais tempo nas salas.”

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As questões centrais desta quebra de espectadores são, para todos os responsáveis com quem o Ipsilon falou, muito mais conjunturais do momento que Portugal vive. Cíntia Gil, à frente do DocLisboa com Augusto M. Seabra, explica-a em parte pelo redimensionamento do certame, após uma edição “gigante” em número de sessões e filmes em 2010. “Mas a crise afecta, indubitavelmente. Há mais oferta e aquilo que antes acontecia duas ou três vezes por ano hoje acontece muito mais regularmente, e as pessoas estão menos disponíveis para tudo. O que me parece mais preocupante é a redução do público nas salas de cinema. Que um festival [com as características do] DocLisboa ainda [consiga ter] 25 mil espectadores em Portugal parece-me extraordinário.”

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Nuno Sena alerta que o público regular destes eventos já não precisa de ficar à espera de um festival para descobrir os filmes “de que se está a falar”. “A ‘pirataria’ que começou por ser uma ameaça em relação à exibição comercial também afecta, mesmo que com menor impacto, a exibição não-comercial. Alguns dos filmes que mostramos no Indie são muito badalados três, quatro, cinco meses antes e as pessoas já não esperam para os ver: quem quer descarrega-os [da internet].” Mesmo que, como diz, os festivais continuem a ser uma saída possível para as dificuldades que a distribuição comercial continua a ter para mostrar o que não vem de Hollywood. “E acredito também que o público escolarizado e universitário que tem saído do país nos últimos anos, e que é impossível de quantificar, era público destes festivais.”

Junte-se a isto a entrada no mercado de outros eventos, como o Lisbon & Estoril Film Festival de Paulo Branco (com primeira edição em 2007) ou as múltiplas mostras temáticas à imagem da Festa do Cinema Francês, todos eles competindo pelos mesmos filmes. Este ano, por exemplo, o Curtas propõe uma retrospectiva da cineasta americana Kelly Reichardt, revelada em Portugal pelo IndieLisboa, cuja selecção oficial de curtas-metragens tem vindo a tornar-se num sério concorrente de Vila do Conde... Nuno Sena: “O Indie e o Doc começaram num cenário muito mais fácil, em que eram os únicos que se queriam afirmar como festivais para um público alargado. E a concorrência pelos melhores filmes é inevitável, é mesmo natural e importante. Mas a grande diferença [nos últimos anos] é o número muito maior de eventos. Esta oferta permanente cria algum cansaço, uma certa indiferença. As pessoas não vão a dois eventos – vão a um e o evento a seguir não os vai recuperar.”

Nuno Rodrigues, um dos directores de sempre do Curtas, concorda. “Há um excesso de eventos também ligados a outras áreas, como a música, que dispersa as pessoas, obriga a fazer escolhas. E o público que gosta de ir a um festival de cinema também gosta de ir a festivais de música.” Mas, devido às especificidades geográficas e à transversalidade de uma programação que explora igualmente as artes plásticas e a música num grande Porto onde a exibição alternativa continua a ser insuficiente e os eventos são muito menos do que na capital, Vila do Conde tem conseguido uma invejável estabilidade de frequência, mantendo-se há cinco anos entre os 18 mil e os 19 mil espectadores (com a edição dos 20 anos a chegar aos 21,500).

Cíntia Gil concorda que a concentração geográfica em Lisboa é um problema - “seria interessante que se espalhassem mais”. Mas a competição pelos mesmos filmes está longe de ser a questão essencial, como explica. “Um festival não é apenas mostrar um filme, é também pensá-lo. E um mesmo filme apresentado no Doc ou no Indie permite uma relação diferente com o público ou uma leitura diferente, e isso pode permitir diálogos muito frutuosos.”

Onde essa competição acaba por ser mais visível é no cinema português, num momento em que a produção enfrenta as dificuldades de todos sabidas. Já era difícil para os certames nacionais trabalhar a partir de uma lista de produções pequena, onde os títulos mais proeminentes preferem fazer a sua estreia nos festivais internacionais, e a situação actual apenas complica mais. “A produção é muito reduzida e nos últimos anos foi quase nula em termos de produção financeiramente apoiada, pelo que a competição vai-se sentir mais”, diz Nuno Sena, apontando que é um estado de coisas irreversível. Nuno Rodrigues fala de “situação perigosa”, explicando que a produção não diminuiu em número de obras, mas passou a financiar-se de modos diferentes. “Não podemos pensar que, só porque continuam a existir filmes, [as coisas] estão bem assim, mesmo que com menos apoios. O batalhar sobre as questões do financiamento é fundamental.”

Mas ambos confirmam, no essencial, o olhar de Cíntia Gil sobre esta questão: o importante é que se continue a filmar e que se continue a mostrar o que se filma, mesmo que isso implique procurar outros modos de programar, mais radicais, mais atentos ao que de novo se vai fazendo. “Para muitos autores, o único espaço de visibilidade e aproximação ao público são os festivais. E isso permite aos filmes chegarem a diferentes públicos em festivais diferentes. É importante sabermos tirar partido disso.”