O túmulo de Sophia: não há pedra que se possa esculpir para ela
Sophia de Mello Breyner Andresen será esta quarta-feira trasladada para uma arca funerária construída para ser simples e igual às de todas as figuras que estão no Panteão Nacional.
O seu último trabalho foi, porém, o contrário disto: Adolfo Leal construiu a arca que vai receber os restos mortais de Sophia de Mello Breyner no Panteão Nacional, em Lisboa – um túmulo que é uma cópia de todos os outros túmulos do Panteão.
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O seu último trabalho foi, porém, o contrário disto: Adolfo Leal construiu a arca que vai receber os restos mortais de Sophia de Mello Breyner no Panteão Nacional, em Lisboa – um túmulo que é uma cópia de todos os outros túmulos do Panteão.
De uma das varandas do Panteão Nacional, aquela que fica mesmo ao centro – 30 metros para baixo, 30 metros para cima – tem-se um visão desimpedida sobre a sala monumental que estava, no início, destinada a ser igreja, mas que hoje não está aberta ao culto. É raro poder ver-se um espaço assim, sem os bancos corridos e os altares, e a sensação é a de um lugar aberto por onde se pode caminhar. O Panteão Nacional não é um lugar de oração, “não é um cemitério, um lugar de morte. É um monumento, um lugar de vida”, diz Isabel Melo, directora do Panteão Nacional desde 2007.
Desta sala maior abrem-se quatro pequenos corredores e cada um conduz a uma sala – as quatro de dimensões iguais onde estão as, por enquanto, dez figuras homenageadas. Em cada uma das salas cabem quatro arcas funerárias. Dois destes espaços já estão cheios, um outro está vazio e o último, onde estão Aquilino Ribeiro e Humberto Delgado, recebe esta quarta-feira ao final da tarde Sophia de Mello Breyner Andresen. A escritora tem à sua espera uma arca igual às de todos os outros: uma caixa em lioz bege, com um metro e oitenta de altura por dois metros e sessenta e com um peso de quatro toneladas.
“Os primeiros túmulos vêm em 1966 dos Jerónimos, da Sala com Capítulo, onde foram colocadas as primeiras personalidades a serem homenageadas, enquanto o actual Panteão, em Santa Engrácia, não estava acabado”, explica Isabel Melo. “As primeiras figuras – Teófilo de Braga, Sidónio Pais, Óscar Carmona, Almeida Garrett, João de Deus e Guerra Junqueiro – vêm de lá com as arcas e a partir daí segue-se o mesmo desenho e a mesma pedra”, conta.
“Esta uniformidade explica-se facilmente”, continua a directora, explicando os ideais da Revolução Francesa que no século XIX levaram à ideia de um panteão, não para a família real, que por nascimento tem direito a esse lugar, mas para qualquer cidadão, pelo seu mérito, pelos feitos que alcança em vida. “Todas estas figuras mereceram honras de panteão e à partida são todas iguais. Não temos de destacar nenhuma figura em detrimento de outra”, diz.
Para Adolfo Leal, “esta uniformidade é natural” e é o que permite às arcas estarem em harmonia com a arquitectura do edifício – um exemplar único do Barroco, “com as suas paredes onduladas, o trabalho depurado da pedra, e não as talhas douradas a que estamos habituados”, explica Isabel Melo.
“Não é um edifício mais elaborado, como os Jerónimos – também com função de panteão –, em que os túmulos assentam em patas de leão ou têm muitos floreados. O Panteão é todo em lioz, é simples e por isso as arcas também devem ser assim”, diz Adolfo Leal, que foi responsável pelas últimas arcas funerárias do Panteão: em 2001 e 2004 fez a gravação à mão dos nomes e datas nos túmulos de Amália Rodrigues e Manuel de Arriaga, que já existiam antes das trasladações e são “arcas centenárias”, diz o escultor. Em 2007, construiu de raiz a arca funerária de Aquilino Ribeiro, a partir de um desenho que ele próprio fez para copiar os outros túmulos. Este ano repetiu o trabalho para Sophia e finalizou-o na sexta-feira passada. Na arca que construiu gravou “Sophia de Mello Breyner Andresen, Poeta, 1919-2004”. Ao contrário do que aconteceu na arca de Amália Rodrigues, por exemplo, Sophia tem a inscrição de uma das suas ocupações, aquela por que gostava de ser reconhecida: poeta, não poetisa.
Para Adolfo Leal, a grande dificuldade é transportar e montar uma peça tão grande e pesada sem a partir ou danificar. “Há prazos muito rígidos que temos de cumprir e muita gente dependente de nós”, conta. E lembra outras exigências técnicas a que já está habituado: “Quando fiz o primeiro desenho das arcas, tive de ver logo quais eram as melhores ligações e encaixes interiores, que estão escondidas.”
As faces lisas dos túmulos não exigiram a reprodução que quaisquer baixos-relevos, por exemplo. “Não é o objecto em si que deve ser exaltado, mas sim o que representa”, diz Isabel Melo.
Os túmulos ou monumentos de eternização actuais são simples, diz o escultor João Cutileiro, lembrando que mesmo as inscrições são habitualmente curtas – apenas o nome, as datas de nascimento e morte, “às vezes uma flor, um pequeno elemento decorativo que se usa há séculos”.
“Só o facto de se fazer um túmulo é já eternizar-se aquela pessoa e por isso deve ser o mais simples possível”, diz o escultor, explicando que hoje, quando se faz uma obra para ficar para o futuro, não se pensa a longo prazo, ao contrário do que se fazia com os túmulos da Idade Média – fortemente ornamentados para garantir que séculos depois aquelas figuras continuariam a ser identificadas como importantes. Hoje o desafio é sobreviver ao dia-a-dia. “O futuro – o eterno – era dali a séculos. O nosso futuro é amanhã”, diz João Cutileiro.
Para o escultor José Pedro Croft, o Panteão e não é um lugar que tenha a ver com a ideia de belo, mas com o simbolismo. “A homenagem não é feita pela estética, mas pelo reconhecimento simbólico por parte do poder”, diz. “O que se está a homenagear é a Sophia monumental, não é a pessoa da Sophia, são os seus poemas, eles próprios um monumento”, acrescenta, preferindo por isso a simplicidade visual desta homenagem que, diz, “pode ser mais comovedora”.
“Os poemas dela são de tal maneira inspiradores. Lembro-me de um que são só dois versos: ‘Cortaram os trigos. Agora/ A minha solidão vê-se melhor.’ Que monumento é que se pode fazer, que pedra é que se pode esculpir para isto? É muito difícil”, diz José Pedro Croft.