As vozes do silêncio

Realizador francês Christophe Bisson prepara filme com sem-abrigo do Porto. A coordenadora do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo da Cidade do Porto aproveita para trabalhar regras, perspectivas sobre o mundo.

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O quadro burlesco fará parte do filme documentário que o realizador francês Christophe Bisson está a preparar sobre sem-abrigo no Porto. Decidiu cruzar depoimentos de pessoas que viveram na rua com pinturas que lhe vieram à mente ao ouvi-las falar sobre as suas vidas, sobre as suas vivências de rua. Quer introduzir uma dimensão fantástica, onírica, na realidade crua.

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O quadro burlesco fará parte do filme documentário que o realizador francês Christophe Bisson está a preparar sobre sem-abrigo no Porto. Decidiu cruzar depoimentos de pessoas que viveram na rua com pinturas que lhe vieram à mente ao ouvi-las falar sobre as suas vidas, sobre as suas vivências de rua. Quer introduzir uma dimensão fantástica, onírica, na realidade crua.

Veja o que La Salete lhe contou sobre o que era para ela despertar na rua: Tudo lhe parece irreal – o chão duro, o ar frio, o toque do cartão, o cheiro dela, o cheiro dos outros que dormem ao pé dela nas escadas do antigo Cinema Batalha – e, no entanto, é tudo tão real. Só lhe apetece fugir. Como? Para onde? Há que beber – um litro, dois litros, três litros, quatro litros de vinho. Beber até deixar de sentir aquele vazio imenso, infindo.

Não é que em França não haja sem-abrigo. É que foi em Portugal que a oportunidade surgiu a Bisson. No ano passado, Paula França, coordenadora do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA) da Cidade do Porto, começou a impulsionar uma série de encontros a que chamou “As Vozes do Silêncio” e convidou-o para projectar uma das suas obras – “Au Monde”, um documentário sobre um homem que, após ter sido operado à laringe, se esconde do mundo na cave da sua casa e reaprende a usar a voz, agora metálica, e a reconhecê-la como sua.

Bisson entusiasmou-se ao ouvir a velha amiga falar no trabalho da rede inter-institucional constituída pela Segurança Social e por 64 entidades formais e informais de apoio aos sem-abrigo. Propôs-lhe fazer um workshop com pessoas que já tivessem vivido na rua. Não queria gente que ainda dormisse ao relento. Acha que é necessário alguma distância para apreender uma situação tão limite,. Em Outubro de 2013, juntaram-se assistente social, realizador e cinco pessoas já com tecto.

La Salete, Celina, Christian, Alfredo e Jorge eram navios fantasmagóricos à deriva num mar revolto. Em cada um deles, havia tanto desassossego, tanta vontade de falar. Atropelavam-se como se tivessem pressa em contar-lhe cada detalhe das suas existências. Propôs-lhes ouvi-los um a um. Não queria narrativas intermináveis, vagas. Queria que escolhessem um momento concreto.

Veja o que Celina lhe contou sobre a sua saúde. Está na Praça da República. Aproxima-se de uma carrinha. Uma equipa faz despistagem de VIH. Ela aproveita a oportunidade. Espera confirmar que está saudável. Não era de partilhar as seringas que usava para injectar heroína. Tinha sexo protegido com quem lhe comprava serviços sexuais. O companheiro era portador do vírus, mas ela não facilitava com ele. Preservativo sempre. Positivo. Hein? Como? Não podia ser, não podia. O preservativo rompera pelo menos duas vezes, mas não podia ser, não podia. Repetiu o teste. Positivo outra vez. Deambulou a noite inteira. Parecia alucinada. Só pensava na morte. Na sua.

Trabalharam numa casa devoluta, particular. Cada um escolheu um sítio para falar sobre algo importante. Bisson sentiu-se esmagado. Tinham passado por coisas terríveis. Cada um sofrera grandes rupturas afectivas. Cada um atribuía culpas – ao pai, à mãe, a ambos, ao cônjuge ao juiz… Dir-se-ia que tinham sido meros espectadores das suas vidas. Como religar as palavras daquelas pessoas ao que lhes tinha acontecido?

O realizador voltou ao Porto em Dezembro. Havia um novo encontro “Vozes do Silêncio”, dessa vez organizado com pessoas com experiência de rua, unidas numa comissão a que chamaram “Uma vida como a arte”. Às primeiras cinco pessoas juntaram-se outras duas – um jovem casal, António e Ariana.

O projecto avançou na casa devoluta de dois andares. Experimentou fazer micro-narrativas sobre o que é a vida na rua. Como é que é passar uma noite numa cama de cartão? Como é que é passar o dia inteiro sem comer? Como é que é comer na rua?

Regressou no final de Maio. Nesta fase, já participam 15 pessoas com experiência de rua. Já não estão na pequena casa de dois andares. Passaram as primeiras duas semanas e meia de Junho a trabalhar numa mansão, decrépita, quase toda desocupada, onde funcionava o Instituto Araújo Porto, destinado a crianças surdas-mudas.

Grandes espaços. Pés direitos indicados para gigantes. “Podemos modelar as luzes exactamente naquilo que queremos”, dizia Bisson.

No último dia, dedicaram-se à cena que remete para a "Última Ceia" de Leonardo da Vinci, naquela sala rectangular, cor de salmão, com inúmeros colchões a abafar o eco. Nem imaginava que aquele edifício, contíguo ao Centro de Alojamento Social, há-de ser recuperado e pode vir a acolher a sede da Santa Casa da Misericórdia do Porto, mas a referência do realizador era já “Viridiana”, de Luis Buñuel (1961).

Conhece o filme? Antes de fazer os votos, a noviça Viridiana visita o que resta da família. Perturbado com a semelhança entre a sobrinha e a mulher morta, o tio tenta conquistá-la. Horrorizada, ela corre para o convento. Ele suicida-se. Perante a notícia, ela decide reunir os mais pobres da vila, levá-los para a propriedade, alojá-los na casa secundária e dedicar a sua vida a alimentá-los e a educá-los. Um dia, estão os ricos fora, os pobres aproveitam para ver a casa principal. Fascinados com a fartura, embebedam-se, fazem uma orgia. Viridiana e o primo surpreendem-nos. Um deles tenta violá-la…

O cenário é minimalista. É essa a linha estética de Bisson. Ele quis criar uma atmosfera de sonho. A imagem parece real, mas, ao mesmo tempo, não há comida na mesa. Em frente, Armindo, seminu, com um véu de noiva, a tentar dançar flamenco. “É um risco fazer este tipo de filme, mas sinto muita liberdade”, comentava o realizador. “Temos relações de confiança, entrega. Sem a Paula isto não era possível”.  

Paula França, a técnica da Segurança Social, está sempre presente. “O meu papel aqui é criar um espaço onde as pessoas sintam que estão a fazer qualquer coisa para a cidade. Fazemos encontros. As pessoas não ficam satisfeitas. Não temos influência! Surgiu esta oportunidade. As pessoas começaram a sentir-se úteis. Uns dizem: 'estou aqui por mim, faz-me bem, sinto-me apoiado'. Outros dizem: 'estou aqui pela causa, esta é uma forma de mostrar ao mundo o que é ficar sem-abrigo'”.

Nunca desliga o filme dos encontros. A Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto e a Associação Apuro ajudam a prepará-los. Há outros parceiros envolvidos – a Clínica do Outeiro patrocinou o primeiro encontro; a Universidade Católica, o segundo; a Misericórdia do Porto, o terceiro. Alguma verba é canalizada para o filme – serviço de táxi para transporte de material, pequeno-almoço para os sem-abrigo começarem o dia em força, cigarros, alguns adereços, enquanto outro financiamento não chega. A produtora portuguesa Periferia Filmes e a produtora francesa Triptyque Films procuram dinheiro. O projecto foi alvo de candidatura a financiamento do Centro Nacional de Cinema e de Imagens Animadas (França).

Paula França faz as vezes de intérprete de francês-português de modo menos literal do que La Salete Miranda, a outra assistente improvisada de Bisson, também “personagem”. “Traduzo para uma linguagem mais adequada e mais acessível às pessoas”, explicou ela. Ao mesmo tempo, não pára de trabalhar na sua área profissional. Está convencida que a arte é um meio privilegiado de trabalhar a inserção. “Este espaço permite trabalhar regras, perspectivas sobre o mundo.”

“As pessoas não estão habituadas a ter disciplina, paciência”, exemplificou. Têm “dificuldade em pôr o trabalho primeiro, têm tendência a dizer que estão doentes, que lhes dói qualquer coisa, que cansa, que têm qualquer coisa para fazer”. Tenta marcar algo para o dia seguinte e alguém responde algo como: “Não, amanhã não posso, amanhã vou mudar a minha morada.” Tem de ser amanhã?, contesta. “A pessoa tem de perceber que há coisas que a que tem de dar prioridade”. Não é por mal, percebe. Mesmo os que estão mais empenhados podem não aparecer à hora marcada ou desaparecer de repente. “É a lógica de desenrasque muito ligada à sobrevivência.”

Há entre os novos elementos do grupo um casal que se conheceu na rua. Vivem num permanente cuidado um com o outro. Dormiram dois meses na entrada de um prédio. “O que havia era o afecto, o toque, não havia capacidade para mais do que isso, nem privacidade”, comentou ele. Encostavam-se um ao outro para vencer o frio. Sempre que ouviam passos, um sobressalto.

Na rua, tudo é dificuldade. Fazer amor, fazer as necessidades fisiológicas, tomar banho, comer, dormir, acordar, lavar a roupa. Há detalhes que parecem nunca ter passado pela cabeça de quem dita as regras. Para tomar banho num balneário público sem pagar, há que pedir um atestado de pobreza na junta de freguesia. Três euros custa o documento. “A palavra pobre não lhe diz nada?”, terá perguntado ele à funcionária que o atendeu e à sua Luísa. “Tive de andar a pedir.”

Vem aí uma viagem pelo que Bisson chama “humanidade quebrada”. Aquelas pessoas têm percursos estranhamente semelhantes – “colapsam, perderam tudo, ficaram sem objectivos, sentem uma solidão enorme e tentam agora reconstruir-se, reconstruir novas ligações ao mundo”.

O processo é longo. “Falas com as pessoas. Ouves. Depois, precisas de tempo para pensar nelas, para sonhar com elas. Há um envolvimento. Não quero ficar com as primeiras impressões. Não quero construir falsas representações da vida delas, do que elas fazem, do que elas são. Dou-lhes oportunidade de se abrirem, de serem quem são, com a sua complexidade, com as suas contradições.” Lá para Setembro, o realizar deverá regressar ao Porto.