O polvo globe-trotter
Viajou muito, é certo. Mas não viu grande coisa, a não ser possivelmente a mão do seu carrasco a agarrar na sua cabeçorra para o retirar da armadilha e atirá-lo para os calabouços da embarcação. Um vez perecido, foi esventrado – termo que aqui se aplica mal, dada a ausência de barriga – e depois congelado, embalado e rotulado.
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Viajou muito, é certo. Mas não viu grande coisa, a não ser possivelmente a mão do seu carrasco a agarrar na sua cabeçorra para o retirar da armadilha e atirá-lo para os calabouços da embarcação. Um vez perecido, foi esventrado – termo que aqui se aplica mal, dada a ausência de barriga – e depois congelado, embalado e rotulado.
Encontrei-o assim, em glacial inércia, numa arca frigorífica no hipermercado. “É este”, deliberei. Era o escolhido para a missão de levar um toque de Portugal à família, que estava a dois mil quilómetros de distância, onde, imaginava eu, seria difícil encontrar polvo, ainda mais daquele calibre, com dois quilos.
Missão onerosa para o planeta, esta. Não só o animal teria de enfrentar uma viagem de avião, com eu tinha de garantir que permanecesse no seu estado máximo de enregelamento.
A embalagem saiu do supermercado na minha mochila, recipiente francamente desajustado à situação, dada a proximidade intrínseca da bolsa com o calor humano do dono. Percorreu a distância até à estação num automóvel, embarcou num comboio e enfrentou ainda um pequeno trajecto a pé até ao jornal, onde passaria o dia até à hora do embarque.
Tinha de o meter no frio e solução imediata foi a arca dos gelados da cantina, aproveitando uma aberta na secção dos cones. Se algum colega por acaso ficou intrigado com uma ligeira essência de salada de polvo no corneto de morango, eis a explicação.
Ao final do tarde, ocupou a sua posição mais difícil, a que determinaria o sucesso da empreitada. Instalei-o num saco térmico, com duas garrafinhas de gelo, meti o conjunto na mala e despachei a bagagem. Ao vê-la partir, lembrei-me do odorífero caso de uma amiga cuja mãe sempre trazia uma mala de alimentos quando a visitava. Um dia, a bagagem extraviou-se. E dentro dela lá se foram vários itens congelados – camarão, peixes vários, comidas prontas – além de couves, queijos e enchidos. Três dias depois, um cheiro devastador inundou a casa da filha momentos antes do funcionário da companhia aérea bater à porta, com o braço esticado e a mão no nariz: “Aqui está a sua mala”.
Desta vez, não houve enganos. Retirei a barragem da esteira nas chegadas, corri para o autocarro, a seguir apanhei um comboio, andei até à casa e o polvo finalmente uniu-se à família. Tinha as ventosas já meio moles, mas na essência permanecia hirto no seu frígido túmulo de plástico.
Foram as inscrições no rótulo que me despertaram para o disparate que fizera. O bicho vinha da zona FAO 34, uma das grandes áreas de pesca em que a burocracia das Nações Unidas repartiu os oceanos. Começa no estuário do rio Congo e vai até ao estreito de Gibraltar. Possivelmente o polvo foi capturado nas águas do Marrocos ou do Senegal, por uma embarcação com certeza espanhola. Ou seja, nem sequer era português.
Um bicho globe-trotter como aquele, ainda por cima congelado, não existe sem uma factura energética incomportável, para a qual eu contribuí com uma grande parcela.
Fraca compensação é dizer que a iguaria, uma vez assada, estava uma delícia. Todo o episódio foi um desastre em termos de sustentabilidade. Eu devia ter lido o rótulo antes.