O último jacarandá florido de Lisboa

Desta vez não procurámos o primeiro jacarandá a florir. Procurámos o último a ter ainda flores. Para não os esquecermos tão cedo

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Podia ter escrito esta crónica há um mês, um mês e meio. Andaria então, como tantos outros lisboetas, à procura do primeiro jacarandá a florir na cidade. Eles floriram, como todos os anos. Sabemos que as flores vêm sempre, estendendo pelas ruas tapetes entre o azul e o roxo. Há um jacarandá bem perto de minha casa, junto ao Museu Militar. E muitos outros pelo caminho que faço todas as manhãs. 

São árvores de outras paragens. Têm um nome de origem indígena — “jacarandá” é palavra da língua tupí-guarani. Chegaram a Lisboa pela mão de Félix de Avelar Brotero, director do Jardim Botânico da Ajuda no início do século XIX. Deram-se bem por aqui e, como noutras cidades do mundo, foram plantadas em muitos locais precisamente por causa dessa explosão de azul e roxo que todos os anos anuncia a chegada do Verão. 

Este ano pensei mais nos jacarandás porque fiz uma viagem ao Japão na Primavera, em plena época das cerejeiras em flor. Nos jardins de Tóquio, havia logo cedo toalhas a marcar lugar debaixo de cada cerejeira. Os japoneses acreditam que dá sorte estar por baixo de uma cerejeira quando a primeira flor abrir, e por isso organizam-se para guardar lugar nos jardins, onde fazem piqueniques — li mesmo que nas empresas um dos colegas de trabalho é destacado para essa tarefa. 

Nos templos de Quioto, raparigas vestidas com quimonos também floridos, e segurando delicados chapéus-de-sol, avançam em passos pequeninos para junto das cerejeiras e deixam-se fotografar pelas amigas com os rostos sorridentes encostados às florzinhas brancas. Percorremos o Caminho do Filósofo debaixo de uma chuva branca, uma neve que não faz frio, como a da lenda do rei mouro do Algarve que mandou plantar amendoeiras para curar a sua amada, uma bela e loira princesa do Norte, das saudades da neve. 

Casais de namorados, de traje tradicional japonês e mãos dadas, tiram também fotos debaixo dos ramos destas árvores. Há uma alegria infantil neles, como se nunca antes tivessem visto uma cerejeira em flor e cada vislumbre de uma delas fosse uma revelação. Talvez isso venha da sábia arte de viver cada momento como se fosse único e nunca igual. De saber que as flores deste ano não são as flores do ano passado e que temos de olhar para elas mais uma vez como se fosse a primeira vez. Porque, na verdade, é a primeira vez. 

Os portugueses não são japoneses e por isso a alegria de ver os jacarandás florir tem menos essa inocência infantil e mais uma espécie de doce melancolia — e talvez seja por isso que as flores deles são brancas e as nossas são roxas. 
Eugénio de Andrade dedicou-lhes um poema, Aos Jacarandás de Lisboa
 

São eles que anunciam o verão. 
Não sei doutra glória, doutro 
paraíso: à sua entrada os jacarandás 
estão em flor, um de cada lado. 
E um sorriso, tranquila morada, 
à minha espera. 
O espaço a toda a roda 
multiplica os seus espelhos, abre 
varandas para o mar. 
É como nos sonhos mais pueris: 
posso voar quase rente 
às nuvens altas – irmão dos pássaros –, 
perder-me no ar.

Mas parece injusto que, tirando algumas excepções, sejam tão pouco cantados. Mereciam mais: poemas, romarias, uma festa inteira dedicada a eles.  É verdade — temos de o reconhecer — que não pensamos nos jacarandás no resto do ano. As árvores, essas, estão sempre ali, nos mesmos locais da cidade, mas sem as flores roxas tendemos a esquecê-las, numa demonstração de indesculpável ingratidão. Talvez seja, no entanto, por essa capacidade de esquecimento que a cada ano nos surpreendemos ao vê-las florir e, se calhar, só por pudor não nos precipitamos para junto delas para nos deixarmos fotografar nos seus tapetes roxos.

Pensando bem, que mal faria se um dos nossos colegas de trabalho fosse encarregue de estar atento ao primeiro jacarandá que florisse e nos chamasse a todos para fazermos um piquenique debaixo desse chapéu azul e roxo? 
Podia ter feito esta crónica há um mês. Mas acabei por a fazer agora, numa altura em que, como escreveu o João Catarino quando enviou o seu desenho, os jacarandás, fustigados pela inesperada chuva de início de Verão, perderam já muitas flores e estão “em jeito de despedida”. 

Agora, resta apenas despedirmo-nos deles. Não é tempo de procurar o primeiro jacarandá a florir na cidade. É tempo de encontrar o último que ainda tem flores, de descobrir um já muito tímido tapete roxo nalguma rua e de ficarmos a olhar para ele — em jeito de despedida, mas sabendo que no próximo ano voltaremos a encontrar-nos quando o Verão estiver para chegar. E que será mais uma vez a primeira vez.