O soberano e os lacaios
É o capital financeiro que hoje encarna, mudando apenas de roupagem, o modo de governação do antigo regime: l’état c’est moi.
Dir-se-ia que as declarações delirantes de uma auto-intitulada “professora de direito” sobre a nomeação de juízes do tribunal constitucional, ou de um ex-empresário sobre a necessidade de calibrar o escrutínio dos mesmos, ou ainda a de um eminente economista sobre a sua deles mentalidade de funcionários públicos radicam na conceção de l’état c’est moi, segundo a qual o chefe do executivo personificaria ou deveria personificar todos os poderes do Estado: o legislativo, o executivo e o judicial. Não responderia apenas por um órgão de soberania, antes seria “o” órgão de soberania. Não se encontraria vinculado a uma Constituição, antes a ditaria. Não seria um mero chefe do executivo. Seria o Soberano.
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Dir-se-ia que as declarações delirantes de uma auto-intitulada “professora de direito” sobre a nomeação de juízes do tribunal constitucional, ou de um ex-empresário sobre a necessidade de calibrar o escrutínio dos mesmos, ou ainda a de um eminente economista sobre a sua deles mentalidade de funcionários públicos radicam na conceção de l’état c’est moi, segundo a qual o chefe do executivo personificaria ou deveria personificar todos os poderes do Estado: o legislativo, o executivo e o judicial. Não responderia apenas por um órgão de soberania, antes seria “o” órgão de soberania. Não se encontraria vinculado a uma Constituição, antes a ditaria. Não seria um mero chefe do executivo. Seria o Soberano.
Se, porém, mudarmos de ponto de vista – para uma observação de segunda ordem –, então percebemos que, neste Portugal do século XXI, por via de uma das mais extraordinárias piruetas da história, o soberano não passa, afinal, de um lacaio. Arroga-se uma autoridade absoluta, mas enverga a libré. “Decreta”, “proclama”, “declara” e “calibra”. Mas sempre de libré. Preside. De libré. Discursa. De libré. Participa nos órgãos da União Europeia. De libré. Representa o país. De libré.
Dá-se ares de soberano, mas a libré assenta-lhe na perfeição. Cai-lhe bem nos gestos, no registo grave da voz, no aprumo lento do passo, que fazem da aparente arrogância a mais refinada escola de subserviência. Cai-lhe bem na elegância com que se verga, arremedando poder de decisão. Na diligência com que sabe estender a passadeira, parecendo caminhar sobre ela. Na persuasão a falar e na determinação a agir – em nome de quem verdadeiramente manda. É a libré de chefe de governo: o último grito do pronto a vestir, na União Europeia.
O modelo até parece ter sido talhado em Lisboa, pois não há chefe de governo em que ela assente tão bem. Outros a usam, é certo, mas fica-lhes curta nas mangas. Talvez porque ainda não compreenderam o pleno sentido da “revolução” neoconservadora em curso: a restauração duma ordem feudal, o retorno ao Ancien Régime – a um regime anterior às noções de “soberania popular”, “constituição”, “separação de poderes”, “democracia” e “direitos humanos”.
Não se trata, evidentemente, de restaurar monarquias, embora as existentes não estorvem. Nem de alterar a estrutura formal da governação. Nem, portanto, de privar os povos de eleições, parlamentos, governos e constituições. Trata-se, sim, apenas, de subordinar tudo isso à vontade do soberano. Eis o que se pretende com as tão badaladas “reformas estruturais” e “austeridade”.
E quem é ele – esse soberano a quem chefes de Estado e de governo devem vergar-se como lacaios? Esse novo senhor absoluto que se apodera do Estado e com ele se confunde? Que legisla, governa, interpreta a seu bel-prazer a constituição e as leis, acaba com a independência dos tribunais, põe e dispõe de todo e qualquer direito, suspende o próprio “Estado de Direito”, e degrada os cidadãos à condição de meros súbditos?
É, obviamente, o capital financeiro. É ele que hoje encarna, mudando apenas de roupagem, o modo de governação do antigo regime: l’état c’est moi.
Professor catedrático jubilado (FCSH-UNL)