O que vale uma bandeira?

Será líquido pensar-se que a lei deve ser rigidamente aplicada em qualquer caso?

Actualmente corre um processo em tribunal, que pode terminar com a prisão do artista, o qual é acusado de, com a sua obra, ter feito uma suposta ofensa à bandeira nacional, prevista no n.º 1 do artigo 332 do Código Penal, que determina: “Quem publicamente, por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por outro meio de comunicação com o público, ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.” (PÚBLICO, 24/06/2014)

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Actualmente corre um processo em tribunal, que pode terminar com a prisão do artista, o qual é acusado de, com a sua obra, ter feito uma suposta ofensa à bandeira nacional, prevista no n.º 1 do artigo 332 do Código Penal, que determina: “Quem publicamente, por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por outro meio de comunicação com o público, ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.” (PÚBLICO, 24/06/2014)

As questões colocadas por esta notícia do PÚBLICO são múltiplas e complexas. Antes de tudo o mais está aqui em causa um conflito basilar das sociedades democráticas: deverá uma lei prevalecer sobre a liberdade ou pelo contrário a liberdade legalmente regulada é um princípio inviolável em democracia?

Esta questão maior das sociedades de hoje não tem uma resposta única, nem é um problema que possa ser reduzido apenas a uma visão do mundo. É evidente que, de acordo com os pressupostos filosóficos, ideológicos, éticos e até morais de cada um, o problema será abordado de modo diverso.

Há, no entanto, algumas perguntas que podem ser feitas sobre este caso e sobre como a sua apreciação, decompondo os vários pontos de vista envolvidos, relativiza as certezas que aparentemente cada lado do conflito em causa garante.

Assim será líquido pensar-se que a lei deve ser rigidamente aplicada em qualquer caso? Será que a lei que prevê o suposto crime em causa não poderá ser apreciada abrindo excepções e matizes na sua interpretação e aplicação?

Em causa está um caso de importância maior e que atinge até uma dimensão institucional de primeiro plano. A peça artística usou uma bandeira portuguesa, algo que é um símbolo nacional, logo é o equivalente simbólico do próprio Estado português, tal como é estipulado pela Constituição no seu artigo 11º. E por muito que não se seja nacionalista, nem se queira ter um discurso pseudo-patrioteiro, a realidade da vida em sociedade e em comunidade com a mesma língua e com um espaço territorial comum impõe o reconhecimento de símbolos identitários de grupo, de nação e de país – assim como obriga ao respeito por esses símbolos de identidade nacional.

Mas não é apenas a questão – que só por si não é menor – de estarmos perante um símbolo nacional. Num Estado de direito, o respeito pela legalidade tem de ser defendido e cumprido por todos – sob pena de se entrar em regime de excepções e de imunidades, que acabarão por subverter o próprio Estado de direito e quebrar o seu ponto de partida, que é o princípio de que todos são iguais perante a lei.

Há, porém, como sempre, o outro lado do problema. E este é também ele uma questão de importância maior em sociedades democráticas, já que passa pela certeza de que a liberdade é um princípio fundacional da vida democrática, pelo que a liberdade de expressão e a liberdade de criação artística têm de ser garantidas. E é a própria Constituição que garante no seu artigo 42.º que “é livre a criação intelectual, artística e científica”.

Como se lê na notícia do PÚBLICO, Fernando Cabrita, o advogado de defesa de Élsio Menau, não deixa de considerar que “está em causa a liberdade de expressão” e de admitir que a arte, “por natureza, transcende alguns limites”. Por sua vez, o artista plástico Xana, um dos membros do júri que classificou a obra de arte, considera que se trata “de uma metáfora, num país com a corda na garganta”. E advoga que “a bandeira foi tratada com respeito”, já foi anteriormente usada por este criador e “é um objectivo positivo no contexto da obra de Menau”.

A aplicação da lei não é um mecanismo determinístico, da responsabilidade de autómatos e sujeito a regras matemáticas. Há na intervenção da Justiça e dos seus agentes margem subjectiva, que passa pela própria autonomia intelectual de interpretação jurídica dos juízes, quando elaboram uma sentença. E nesse processo de avaliação autónoma é evidente que cabe aos juízes a percepção de cada caso no seu contexto.

Neste caso da obra de Élsio Menau a compreensão de que a intenção do artista não era “ultrajar a bandeira”, mas usá-la para divulgar a sua mensagem, precisamente respeitando o seu carácter de símbolo e em representação de Portugal, que considera enforcado.