Iraque, um país ameaçado com um exército em cacos
Derrotas, deserções, falta de liderança e falta de meios deixaram as forças armadas iraquianas numa situação de “colapso psicológico”
Depois de milhares de deserções, o exército iraquiano está em estado de “colapso psicológico” perante a ofensiva dos militantes do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS), descreve um responsável norte-americano. O desespero chegou a tais níveis que o Presidente Nouri al-Maliki conta com voluntários que, em alguns casos, estão a receber apenas uma semana de treino militar, para proteger a sua cada vez mais menor órbita de controlo.
“O exército iraquiano não tem capacidade para se defender”, disse Rick Brennan, um analista da Rand e antigo conselheiro das forças norte-americanas no Iraque. “Se não encontramos uma forma eficaz para fazer a diferença junto do Exército iraquiano, estamos a assistir ao início da desintegração do Estado do Iraque.”
Os Estados Unidos aceleraram o fornecimento de equipamento de reconhecimento desde a derrota dos militares iraquianos em Mossul, a estratégica cidade do Norte do país. Mas o Governo de Bagdad expressou a sua frustração com a rimo e o alcance desta assistência.
A situação desesperada de Maliki é evidente no Comando de Operação em Bagdad, o centro nevrálgico das operações de segurança da capital, liderado conjuntamente pelos ministérios da Defesa e do Interior. Frente a um mapa iluminado do país, o general Sada Mann aponta para vastas porções de território fora dos limites da cidade que agora são consideradas território hostil.
“Consideramos todas estas áreas que nos rodeiam zonas quentes”, explicou. Embora Mann assegurasse que as forças de segurança estavam na ofensiva em algumas áreas, os avanços dos jihadistas na província ocidental de Anbar nos últimos dias suscitou a preocupação de que as forças armadas vão definhar ainda mais.
Mesmo antes de dezenas de milhares de tropas terem desaparecido durante a noite há três semanas, os generais iraquianos já se queixavam que estavam mal preparados e mal armados para enfrentar um inimigo endurecido por anos de combates na Síria e em posse de armas mais sofisticadas.
Nas últimas semanas, o ISIS apreendeu equipamento militar do exército iraquiano no valor de centenas de milhões de dólares, muito do qual já foi levado para a Síria onde os jihadistas têm a sua base, em Raqqa, referem oficiais iraquianos. A fronteira entre os dois países está controlada pelo ISIS, que quer criar um califado islâmico abrangendo a Síria e o Iraque.
O general Rasheed Fleih, que chefia o Comando Operacional de Anbar, a província que faz fronteira com a Síria, assumiu uma postura estóica no passado domingo, fazendo uma declaração televisiva onde garantia que “as forças de segurança estão a reagir” e que estavam ser enviados voluntários para a região.
Uma semana de treino
Mas a chegada de dezenas de milhares de voluntários às forças de segurança tem sido caótica. Muito chegam integrados em grupos de milícias, embora Maan garanta que não vão poder funcionar como tal. Quando se alistaram, vão receber “uma semana ou menos” de treino e depois serão chamados a combater onde for necessário.
“O problema básico com o exército iraquiano é que se trata duma força sectária”, explicou James Jeffrey, antigo embaixador dos EUA no Iraque. “A isto junta-se o facto de ter generais bajuladores, uma moral em níveis mínimos e uma força de voluntários xiitas. Eles não têm muito treino. E não têm o equipamento ou as aptidões dos tipos do ISIS.”
A crise nas forças armadas é o resultado de corrupção, liderança fraca, maus serviços secretos e uma profunda desatenção ao treino militar, diz um antigo conselheiro americano dos militares iraquianos, que preferiu falar sob anonimato. Esses problemas transformaram o que era uma estrutura militar que funcionava quando as tropas dos EUA se retiraram em 2011 “numa estrutura vazia que está a chamar para as armas homens e rapazes das ruas”, disse a mesma fonte. A escala dos reveses deste mês, acrescentou, é “catastrófica”.
Membros das forças de segurança colocados em Mossul quando a 2ª divisão do exército iraquiano se desintegrou queixaram-se que as chefias militares desapareceram perante a ofensiva do ISIS. A velocidade do colapso levou alguns soldados a acusarem os seus líderes de estarem de algum modo a ser cúmplices da ofensiva dos jihadistas. Maliki vai enviar para tribunal 59 oficiais por terem abandonado os seus postos.
“A culpa é das chefias. Deviam ter feito alguma coisa”, disse um polícia iraquiano que fugiu de Mossul para os territórios curdos quando o ISIS atacou a cidade. Disse apenas que se chamava Taha. Polícia há oito anos, Taha explicou que as lideranças militares tinham ignorado um aumento da violência extremista em Mossul nos meses que antecederam a queda da cidade.
A preocupante situação do aparelho militar iraquiano não se deverá alterar tão cedo. Os conselheiros militares dos EUA vão interferir gradualmente, trabalhando primeiro com umas poucas unidades em Bagdad. Alguns poderão ser enviados para batalhões no terreno. Inicialmente, vão recolher informação, reportando para Washington o estado das forças armada iraquianas e quais as suas necessidades.
Uma coisa é certa, concordam os analistas: com as forças iraquianas em cacos, só com uma assistência substancial externa é que Bagdad vai conseguir virar a maré desta guerra.
Acabaram-se os mísseis
Os oficiais iraquianos dizem que as suas necessidades são muitas, e pedem antes de mais ataques aéreos da aviação norte-americana. Alguns dos mais eficazes instrumentos do arsenal iraquiano são aviões e helicópteros equipados com mísseis Hellfire fornecidos pelos EUA. Mas dois militares iraquianos, que falaram sob anonimato, disseram que o exército já não tem mais mísseis, embora aguardem nova remessa.
Hamid al-Maliki, um comandante da força aérea, diz que a partilha de informação melhorou desde que o Governo dos EUA aumentou as suas actividades de recolha de informação e reconhecimento. Dez drones de vigilância ScanEagle foram encaminhados para o Iraque.
O exército está a tentar reorganizar-se, embora esse seja um processo para vários anos. Soldados e polícias, que já se disponibilizaram para regressar às forças de segurança, estão a ser discretamente organizados na fronteira do Curdistão iraquiano, disseram Maan e Maliki.
“Estamos a abrir novas bases e a reconstruir unidades que colapsaram em zonas ocupadas”, explica Maliki. Maan acrescenta que as novas forças incluem soldados, polícias e voluntários locais. “Agora não é altura para distinguir entre exército e polícia, quem estiver disposto a trabalhar, vai trabalhar.”
No entanto, Jabar Yawar, porta-voz das forças de segurança curdas (os peshmerga) que controlam a linha da frente entre o Curdistão e a região de Mossul controlada pelo ISIS, negou que as forças iraquianas se estejam a reconstruir naquela área. “Nas províncias de Mossul e Salaheddin não há exército iraquiano, nem polícia, nem nada”, disse Yawar.
E a cada dia que passa, o ISIS vai ganhando cada vez mais terreno, expandindo o seu controlo nas localidades junto à fronteira com este semi-Estado, e ao longo da fronteira com a Síria. “Não há resistência por parte do exército iraquiano porque não tem nenhum nacionalismo, nenhuma liderança”, remata o curdo Yawar. “Não há nenhum sentimento de proteger a nação.”
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Depois de milhares de deserções, o exército iraquiano está em estado de “colapso psicológico” perante a ofensiva dos militantes do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS), descreve um responsável norte-americano. O desespero chegou a tais níveis que o Presidente Nouri al-Maliki conta com voluntários que, em alguns casos, estão a receber apenas uma semana de treino militar, para proteger a sua cada vez mais menor órbita de controlo.
“O exército iraquiano não tem capacidade para se defender”, disse Rick Brennan, um analista da Rand e antigo conselheiro das forças norte-americanas no Iraque. “Se não encontramos uma forma eficaz para fazer a diferença junto do Exército iraquiano, estamos a assistir ao início da desintegração do Estado do Iraque.”
Os Estados Unidos aceleraram o fornecimento de equipamento de reconhecimento desde a derrota dos militares iraquianos em Mossul, a estratégica cidade do Norte do país. Mas o Governo de Bagdad expressou a sua frustração com a rimo e o alcance desta assistência.
A situação desesperada de Maliki é evidente no Comando de Operação em Bagdad, o centro nevrálgico das operações de segurança da capital, liderado conjuntamente pelos ministérios da Defesa e do Interior. Frente a um mapa iluminado do país, o general Sada Mann aponta para vastas porções de território fora dos limites da cidade que agora são consideradas território hostil.
“Consideramos todas estas áreas que nos rodeiam zonas quentes”, explicou. Embora Mann assegurasse que as forças de segurança estavam na ofensiva em algumas áreas, os avanços dos jihadistas na província ocidental de Anbar nos últimos dias suscitou a preocupação de que as forças armadas vão definhar ainda mais.
Mesmo antes de dezenas de milhares de tropas terem desaparecido durante a noite há três semanas, os generais iraquianos já se queixavam que estavam mal preparados e mal armados para enfrentar um inimigo endurecido por anos de combates na Síria e em posse de armas mais sofisticadas.
Nas últimas semanas, o ISIS apreendeu equipamento militar do exército iraquiano no valor de centenas de milhões de dólares, muito do qual já foi levado para a Síria onde os jihadistas têm a sua base, em Raqqa, referem oficiais iraquianos. A fronteira entre os dois países está controlada pelo ISIS, que quer criar um califado islâmico abrangendo a Síria e o Iraque.
O general Rasheed Fleih, que chefia o Comando Operacional de Anbar, a província que faz fronteira com a Síria, assumiu uma postura estóica no passado domingo, fazendo uma declaração televisiva onde garantia que “as forças de segurança estão a reagir” e que estavam ser enviados voluntários para a região.
Uma semana de treino
Mas a chegada de dezenas de milhares de voluntários às forças de segurança tem sido caótica. Muito chegam integrados em grupos de milícias, embora Maan garanta que não vão poder funcionar como tal. Quando se alistaram, vão receber “uma semana ou menos” de treino e depois serão chamados a combater onde for necessário.
“O problema básico com o exército iraquiano é que se trata duma força sectária”, explicou James Jeffrey, antigo embaixador dos EUA no Iraque. “A isto junta-se o facto de ter generais bajuladores, uma moral em níveis mínimos e uma força de voluntários xiitas. Eles não têm muito treino. E não têm o equipamento ou as aptidões dos tipos do ISIS.”
A crise nas forças armadas é o resultado de corrupção, liderança fraca, maus serviços secretos e uma profunda desatenção ao treino militar, diz um antigo conselheiro americano dos militares iraquianos, que preferiu falar sob anonimato. Esses problemas transformaram o que era uma estrutura militar que funcionava quando as tropas dos EUA se retiraram em 2011 “numa estrutura vazia que está a chamar para as armas homens e rapazes das ruas”, disse a mesma fonte. A escala dos reveses deste mês, acrescentou, é “catastrófica”.
Membros das forças de segurança colocados em Mossul quando a 2ª divisão do exército iraquiano se desintegrou queixaram-se que as chefias militares desapareceram perante a ofensiva do ISIS. A velocidade do colapso levou alguns soldados a acusarem os seus líderes de estarem de algum modo a ser cúmplices da ofensiva dos jihadistas. Maliki vai enviar para tribunal 59 oficiais por terem abandonado os seus postos.
“A culpa é das chefias. Deviam ter feito alguma coisa”, disse um polícia iraquiano que fugiu de Mossul para os territórios curdos quando o ISIS atacou a cidade. Disse apenas que se chamava Taha. Polícia há oito anos, Taha explicou que as lideranças militares tinham ignorado um aumento da violência extremista em Mossul nos meses que antecederam a queda da cidade.
A preocupante situação do aparelho militar iraquiano não se deverá alterar tão cedo. Os conselheiros militares dos EUA vão interferir gradualmente, trabalhando primeiro com umas poucas unidades em Bagdad. Alguns poderão ser enviados para batalhões no terreno. Inicialmente, vão recolher informação, reportando para Washington o estado das forças armada iraquianas e quais as suas necessidades.
Uma coisa é certa, concordam os analistas: com as forças iraquianas em cacos, só com uma assistência substancial externa é que Bagdad vai conseguir virar a maré desta guerra.
Acabaram-se os mísseis
Os oficiais iraquianos dizem que as suas necessidades são muitas, e pedem antes de mais ataques aéreos da aviação norte-americana. Alguns dos mais eficazes instrumentos do arsenal iraquiano são aviões e helicópteros equipados com mísseis Hellfire fornecidos pelos EUA. Mas dois militares iraquianos, que falaram sob anonimato, disseram que o exército já não tem mais mísseis, embora aguardem nova remessa.
Hamid al-Maliki, um comandante da força aérea, diz que a partilha de informação melhorou desde que o Governo dos EUA aumentou as suas actividades de recolha de informação e reconhecimento. Dez drones de vigilância ScanEagle foram encaminhados para o Iraque.
O exército está a tentar reorganizar-se, embora esse seja um processo para vários anos. Soldados e polícias, que já se disponibilizaram para regressar às forças de segurança, estão a ser discretamente organizados na fronteira do Curdistão iraquiano, disseram Maan e Maliki.
“Estamos a abrir novas bases e a reconstruir unidades que colapsaram em zonas ocupadas”, explica Maliki. Maan acrescenta que as novas forças incluem soldados, polícias e voluntários locais. “Agora não é altura para distinguir entre exército e polícia, quem estiver disposto a trabalhar, vai trabalhar.”
No entanto, Jabar Yawar, porta-voz das forças de segurança curdas (os peshmerga) que controlam a linha da frente entre o Curdistão e a região de Mossul controlada pelo ISIS, negou que as forças iraquianas se estejam a reconstruir naquela área. “Nas províncias de Mossul e Salaheddin não há exército iraquiano, nem polícia, nem nada”, disse Yawar.
E a cada dia que passa, o ISIS vai ganhando cada vez mais terreno, expandindo o seu controlo nas localidades junto à fronteira com este semi-Estado, e ao longo da fronteira com a Síria. “Não há resistência por parte do exército iraquiano porque não tem nenhum nacionalismo, nenhuma liderança”, remata o curdo Yawar. “Não há nenhum sentimento de proteger a nação.”