Há 100 anos em Sarajevo: o dia em que começaram a apagar-se as luzes na Europa
A história da I Guerra não começa em Sarajevo mas muito antes. Deriva da crise dos impérios multinacionais sob pressão dos nacionalismos e da disputa pela hegemonia do continente.
Na mesma manhã, seis jovens nacionalistas sérvios da Bósnia espalham-se ao longo do cais. Apenas um tem mais de 20 anos. Estão armados com bombas e pistolas. O primeiro a entrar em acção é Muhamed Mehmedbasic, o único muçulmano do grupo, que entra em pânico supondo-se vigiado por um polícia e desaparece na multidão.
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Na mesma manhã, seis jovens nacionalistas sérvios da Bósnia espalham-se ao longo do cais. Apenas um tem mais de 20 anos. Estão armados com bombas e pistolas. O primeiro a entrar em acção é Muhamed Mehmedbasic, o único muçulmano do grupo, que entra em pânico supondo-se vigiado por um polícia e desaparece na multidão.
Um pouco mais longe, o segundo terrorista, Nedeljko Cabrinovic, tira a bomba do invólucro e lança-a sobre o carro de Francisco-Fernando. Não o atinge e explode sobre o terceiro carro, ferindo alguns oficiais da comitiva. O mais jovem, Vaso Cubrilovic, fica perturbado ao ver a duquesa, cuja vinda não estava prevista. “Não puxei do revólver porque a duquesa estava lá e tive piedade dela”, dirá no julgamento. Outro, Cvijetko Popovic, era míope e não conseguiu distinguir o alvo. O principal conjurado, Gavrilo Princip, ouviu a explosão, acreditou no sucesso. Depois viu Cabrinovic detido pela polícia e percebeu que era tarde para agir.
Neste preciso instante o atentado falhara e com ele evaporava-se a causa mítica da I Guerra Mundial. A fortuna não quis assim. O arquiduque chega à câmara, colérico pelo risco que a mulher correu, abrevia a cerimónia e decide ir ao hospital visitar os feridos. Sofia cancela uma reunião com mulheres bósnias e decide acompanhá-lo.
Desta vez vão a alta velocidade, mas o motorista engana-se no caminho, mete-se num beco, pára o carro (sem marcha atrás) e este tem de ser empurrado para a estrada. Está lá, no passeio, Gavrilo Princip, que vê subitamente Francisco-Fernando à sua mercê. Aperta o gatilho – não saberá dizer quantas vezes – e atinge ao mesmo tempo o arquiduque e a mulher. Morrerão em minutos.
Princip tentou disparar contra si mesmo, mas é agarrado pela multidão e pela polícia. Antes, Cabrinovic saltara para o rio e terá vomitado a pastilha de cianeto com que deveria suicidar-se. O rio estava quase seco e foi detido por um barbeiro e dois polícias.
Às 11 da manhã está tudo consumado. Raros perceberam que em breve se iriam “apagar as luzes na Europa”.
“Sou um herói sérvio”
“Gavrilo Princip e os seus camaradas não queriam matar em especial Francisco-Fernando, qualquer Habsburgo teria servido para o efeito, ou mesmo o governador da província, o general Potoriek, odiado pela brutalidade com que reprimia os movimentos de contestação”, escreveu o historiador Jean-Jacques Becker. Os conjurados não imaginavam provocar uma crise internacional. Queriam atentar contra os Habsburgo. Eram nacionalistas românticos que cultivavam a filosofia do atentado individual. Um deles, ao ser preso dias depois, gritou: “Eu sou um herói sérvio.”
Princip nasceu numa família camponesa da Bósnia e estudou num liceu. Era bom aluno, mas não conseguiu entrar no exército sérvio. Devorador apaixonado da literatura nacionalista, adere aos 17 anos à sociedade secreta Jovens Bósnios, dominada por sérvios mas também com croatas e muçulmanos. Continuará os estudos em Belgrado e viajará permanentemente entre as duas cidades. Torna-se um conspirador profissional.
Antes do atentado, foi recolher-se junto do túmulo de outro “herói sérvio”, Bogdan Zerajic, que em 1910 preparara um atentado contra o imperador em Mostar, desistindo no último momento. Zerajic falhou a seguir um atentado contra o governador da Bósnia e suicidou-se. Princip tê-lo-á tomado como modelo. Tinha 19 anos quando assassinou Francisco-Fernando. Por ser menor, não podia ser condenado à morte. Morrerá tuberculoso, em 1918, na prisão de Theresienstadt.
A Mão Negra
Por trás do atentado está uma organização nacionalista sérvia, a Mão Negra. É manipulada pelo coronel Dimitrievic, mais conhecido por "Ápis", chefe dos serviços secretos militares e uma das figuras mais poderosas do Estado. É inimigo do primeiro-ministro Nikola Pasic. Todos estão intoxicados pelo desígnio de unir todos os sérvios, expandir as fronteiras e ganhar um acesso ao Adriático – uns sob a forma de Grande Sérvia, outros de Jugoslávia. O que os separa não é o objectivo mas “como” o alcançar.
As guerras balcânicas de 1912-13, efeito da desagregação do Império Otomano, fizeram da Sérvia o mais forte Estado balcânico. Mas os austríacos tinham anexado a Bósnia-Herzegovina em 1908 e facilitado a independência da Albânia (1912), fechando à Sérvia o acesso ao mar.
O historiador Christopher Clark, no livro The Sleepwalkers (Os Sonâmbulos), faz a melhor reconstituição do vespeiro sérvio com base em documentação inédita. O ultranacionalismo da Mão Negra, que não hesita em dar apoio a acções terroristas, encobre a intensa disputa pelo poder na Sérvia.
Será o número dois de Ápis, o major Tankosic, quem autoriza o fornecimento das armas a Princip e amigos e quem lhes facilita a passagem das armas pela fronteira. A conspiração terá chegado ao conhecimento de Pasic, que não tem controlo sobre a Mão Negra. Segundo Clark, Pasic terá advertido Viena do projecto de atentado mas de forma sibilina, para se cobrir e talvez para não ser levado a sério. Não há documentos.
Em Sarajevo depressa começa a haver provas. Um dos conjurados, Danilo Ilic, que tinha relações directas com a Mão Negra e tentara cancelar o atentado, é preso numa operação de rotina no dia 1 de Julho. Conta ao juiz todos os meandros da operação. Se a Áustria não precisava de muitas provas para retaliar, tinha agora uma pista que ligava directamente Sarajevo a Belgrado.
Há aqui uma ironia trágica. Em Viena, Francisco-Fernando opunha-se aos belicistas que queriam “a pele dos sérvios” e a reacções que pudessem ser consideradas como provocação à Rússia. Na realidade, era mais hostil aos húngaros e teria o desígnio de reequilibrar a Monarquia Dual, subindo o estatuto dos eslavos do Sul (jugoslavos). Não era apreciado em Budapeste.
O detonador
O atentado de Sarajevo começou por ser lido como um mero episódio. O diário francês Le Temps, jornal de referência, não lhe deu sequer a primeira página, ocupada com o “caso” de Mme Caillaux, que em Março assassinara a tiro o director do Figaro em nome da sua honra e da do marido, o ex-primeiro-ministro Joseph Caillaux, e cujo julgamento começaria em breve.
Os dirigentes políticos e militares foram apanhados de surpresa. Muitos estavam em férias. O Presidente francês, Raymond Poincaré, recebeu a notícia no hipódromo de Longchamp. Passou o telegrama da agência Havas ao embaixador da Áustria-Hungria que estava no seu camarote e se dirigiu imediatamente à embaixada. Dos seus convidados, apenas o embaixador romeno se mostrou preocupado: os austríacos teriam agora um pretexto para ajustar as contas com os sérvios. Poincaré continuou a ver as corridas. Guilherme II, o imperador alemão, estava a participar numa regata no Báltico. Decidiu regressar a Berlim. O seu chefe do estado-maior, general Von Moltke, estava nas termas. Berchtold, o chanceler austríaco, estava a caçar patos na Morávia. Edward Grey, ministro dos Negócios Estrangeiros britânico e ornitologista amador, estava no campo a observar pássaros. O que, aliás, preocupava os britânicos era a questão irlandesa.
“À medida que a notícia dos homicídios se espalhou rapidamente pela Europa, foi recebida com a mesma mistura de indiferença e de apreensão como no camarote de Poincaré”, sublinha a historiadora Margaret MacMillan (A Guerra Que Acabou com a Paz, Termas e Debates, 2014). Mesmo em Viena, os carrocéis e divertimentos do Parque Prater continuaram abertos. Os europeus não sabiam que viviam as últimas semanas antes do horror de Agosto. Acrescenta MacMillan: “Em 1914, os governos europeus acreditavam que uma guerra mundial era impossível. A sensação dominante era que se assistia a mais uma crise balcânica (…) e dava-se por adquirido que seria resolvida.”
Houve raras excepções. O historiador alemão Friedrich Meinecke anotou no seu diário o que sentiu ao olhar os jornais expostos na rua: “De repente, tudo escureceu diante dos meus olhos. Isto significa guerra, disse a mim próprio.”
Sarajevo não é a “causa da guerra” mas o seu detonador. Avisara Bismarck no Congresso de Berlim (1878) que uma “qualquer asneira nos Balcãs” poderia incendiar a Europa. Como? Para os sérvios, tal como para os checos, a realização dos seus desígnios nacionais exigia a destruição da “prisão dos povos", como os nacionalistas chamam ao Império Austro-Húngaro. Para este, a sobrevivência passa pela neutralização daquelas pulsões irredentistas, sobretudo na região da futura Jugoslávia. É “uma questão vital” para Viena.
A engrenagem
A História da Grande Guerra não começa em Sarajevo mas muito antes: a transformação da ordem política europeia, a disputa da hegemonia sobre o continente, a crise dos impérios multinacionais, multilinguísticos e multirreligiosos colocados sob crescente pressão pelos nacionalismos emergentes desde 1848 ou ainda pela ascensão de novas potências, como o Japão e os Estados Unidos. Há uma disputa pela hegemonia política na Europa Central e Ocidental entre a França e a Alemanha. Há uma outra disputa entre a Grã-Bretanha e a Alemanha, quando esta começa a tornar-se numa potência naval e Londres teme que tal ameace a sua supremacia marítima. E há uma velha ordem social a desfazer-se.
Os historiadores dão uma importância singular ao sistema de alianças vigente em 1914: a Tríplice Entente (França, Grã-Bretanha, Rússia) e a Tripla Aliança (Alemanha, Áustria-Hungria, Itália). Em 1911, a “questão de Agadir”, uma disputa entre a França e a Alemanha sobre a hegemonia em Marrocos, transformou-se numa crise grave, mas foi contida pelo inequívoco apoio britânico a Paris, que fez recuar Berlim. As guerras balcânicas de 1912-13 criaram uma alta tensão entre o Império Austro-Húngaro e o Império Russo, mas foram diluídas pelos respectivos aliados.
Já a crise de Sarajevo vai tomar um rumo completamente distinto, em que se combinam os efeitos perversos do sistema de alianças e os múltiplos equívocos e erros de avaliação entre os dirigentes europeus.
Sarajevo abre um “gigantesco jogo de póquer diplomático”, resume o historiador o Gerd Krumeich. A Áustria quer ajustar contas com a Sérvia, o que é inaceitável para a Rússia, que perderia a influência nos Balcãs. A França desconfia de que os alemães a querem enfraquecer, separando-a dos indispensáveis aliados russos, e empurra Moscovo para a guerra. Por sua vez, Berlim está obcecada pela “síndrome do cerco”, o temor de se ver encurralada entre a Rússia e a França e de ver travada a sua ascensão internacional.
Berlim decide fazer um teste à solidez das alianças. No dia 5 de Julho passa o célebre “cheque em branco” a Viena, prometendo-lhe solidariedade no confronto com a Sérvia mesmo que a Rússia reaja. Os alemães querem obrigar a Europa a deixar a Áustria ajustar contas com a Sérvia. Apostam num conflito localizado que, indirectamente, provocaria fissuras na aliança franco-russa e na entente anglo-francesa. Crêem que a Rússia não está preparada e faz bluff no apoio à Sérvia e que Londres não tem interesse em se envolver neste conflito – cálculos lógicos mas errados. O erro de cálculo mais grave e por todos partilhado foi a ilusão de uma guerra curta.
A historiografia recente põe menos ênfase na procura dos “culpados” e privilegia o estudo da engrenagem. “Nenhuma das grandes potências queria uma guerra geral em 1914”, escreveu William Mulligan (The Origins of the First War, 2005). “A guerra resulta de uma acumulação de decisões, que individualmente não eram susceptíveis de provocar a guerra, mas cuja interacção com outras decisões teve como efeito destruir as fundações da paz.”
No dia 23 de Julho, Viena dá um passo fatídico ao apresentar um ultimato à Sérvia. Foi redigido de modo a que Belgrado não o pudesse aceitar – como a participação de funcionários austro-húngaros nos inquéritos em território sérvio sobre o atentado de Sarajevo. Belgrado recusou esta cláusula e, no dia 28, Viena declara a guerra e bombardeia Belgrado. As chancelarias são incapazes de circunscrever o conflito. No dia 30, a Rússia inicia a mobilização geral nas duas frentes, a da Áustria e a da Alemanha. Daqui em diante, já não se trata de Sarajevo mas de outro assunto: a guerra.