Professores fazem exame ao novo programa de Matemática: passa, mas com críticas
No último ano estrearam-se a ensinar alunos dos 1.º, 3.º, 5.º e 7.º anos do básico com o novo programa de Matemática. Inquérito do PÚBLICO a 19 professores mostra, sobretudo, que a classe continua dividida.
“Este ano, com este programa, foi muito mais difícil ensinar e considero que tive menos alunos a aprender com qualidade”, diz Ana Cristina Tudella, professora em S. Domingos de Rana (Cascais). Deu aulas a turmas de 5.º e 6.º ano e considera que foram introduzidos “conteúdos demasiado abstractos para alunos desta idade”.
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“Este ano, com este programa, foi muito mais difícil ensinar e considero que tive menos alunos a aprender com qualidade”, diz Ana Cristina Tudella, professora em S. Domingos de Rana (Cascais). Deu aulas a turmas de 5.º e 6.º ano e considera que foram introduzidos “conteúdos demasiado abstractos para alunos desta idade”.
“A avaliação é muito positiva”, contrapõe Alcides Canelas, de Lisboa, que ensinou alunos do 1.º e do 3.º ano. “Os temas novos revelaram-se muito adequados para as idades programadas. Por exemplo, os conceitos que o programa ‘introduziu’ para o 1.º ano, que antes me pareciam um pouco estranhos como a noção de segmento de recta, a noção de rectângulo ou a noção de que o quadrado também é um losango, revelaram-se perfeitamente adaptadas para este nível”, diz este professor.
As perguntas colocadas pelo PÚBLICO aos docentes foram essencialmente estas: as abordagens e conteúdos do novo programa revelaram-se adequados às faixas etárias aos quais eram dirigidos? O que correu melhor e pior na aplicação? Os manuais estavam de acordo com o programa? Houve formação e foi útil?
Pretendíamos ouvir, sobretudo, docentes que tivessem dado aulas aos 1.º, 3.º, 5.º e 7.º anos do ensino básico — aqueles que estrearam a reforma. Com a ajuda da Associação de Professores de Matemática (APM) e da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM) fizemos chegar o inquérito a vários associados das duas organizações. Das 20 respostas recebidas, considerámos 19 (ver resultados nas páginas seguintes), porque um dos que responderam não tinha dado aulas a anos abrangidos pelo novo programa, ainda que tivesse aplicado as novas metas às suas turmas.
Assim, dos 19 considerados, nove dizem que o programa se adequa, seguramente, às idades dos alunos — “Gostei da forma mais abrangente como alguns dos temas são abordados (tais como as funções e as equações)”, diz Ana Celeste Vila, de Cabeceiras de Basto.
Outros sete professores dizem que as mudanças não se coadunam de todo com a faixa etária daqueles a quem se destina. É o caso de Irene Segurado, de Montelavar (Sintra). Começa por dizer que o programa é demasiado formal para as idades com que trabalhou — 9, 10 anos. E acaba a falar na filosofia do mesmo: “É desmotivador, com bastantes conteúdos de aprendizagem de memorização pura. Assenta na filosofia de que primeiro se apreendem um conjunto de regras e só mais tarde (quando se tem os alunos completamente desmotivados) se aprende a sua aplicação.”
“A extensão das definições, a exigência das demonstrações e a utilização de termos e linguagem pouco adequada à faixa etária, bem como a extensão do programa, foram os factores que mais penalizaram o trabalho do professor e a aprendizagem dos alunos” diz também Lurdes Ribeiro, de Vila Nova de Gaia (7.º ano).
Por fim, três docentes parecem achar o programa adequado, mas duvidar de que ele sirva todos. Ana Lavos, professora do 3.º ano em Almargem do Bispo, por exemplo, escreve: “Esta é uma abordagem seguramente mais exigente e a forma como os conteúdos são trabalhados fazem todo o sentido.” Contudo, o novo programa “não parece adequado aos alunos que, por motivos vários, possam precisar de mais tempo para compreender e exercitar os vários conteúdos e que exijam uma proximidade e atenção maiores do professor”. Lembra que a sua turma tinha 25 alunos e uma grande diversidade cultural.
Ou seja, feitas as contas, com este grupo de “avaliadores” o programa novo passa, mas com dúvidas. E algumas não têm a ver com o programa em si, mas com a forma como se decidiu aplicá-lo: “É complicado mudar metodologias de trabalho com os alunos do 7.º ano, quando eles têm seis anos de ensino sob outro paradigma”, afirma Luís Bernardino (7.º ano), do Seixal.
A discussão durou meses. Face à proposta apresentada no ano passado pelo Governo, a APM, presidida por Lurdes Figueiral, assegurava que se iria assistir a um retrocesso no ensino e a SPM, presidida por Miguel Abreu, antevia a elevação para “um patamar de exigência mais elevado”. A partir de Setembro os professores começaram a aplicar a reforma. E agora? SPM e APM continuam a fazer apreciações distintas, em resposta, por escrito, ao PÚBLICO.
Para a primeira, as novas orientações vão no sentido de dar “uma maior coerência científica a todo o percurso de aprendizagem”. Para a segunda, o novo programa é “profundamente inoportuno e desadequado”.
Para a SPM, é certo que “a reforma impõe às escolas, aos professores, aos alunos e a toda a comunidade educativa em geral um esforço mais importante do que aquele que possa ter sido exigido aquando de outras alterações”. Contudo, vários factores ajudaram: “Em várias escolas o processo de implementação já se tinha iniciado no ano lectivo 2012/13”, o que veio facilitar em muito o trabalho; “as editoras adaptaram os manuais às novas exigências e houve formação de professores promovida pela Direcção-Geral de Educação” embora esta não fosse “tão abrangente quanto seria desejável”.
Já a APM lembra que o programa de 2007 passou por um período alargado de discussão e “de leccionação em turmas piloto” e que “só em 2012/2013 terminou a sua generalização” — precisamente no ano em que foi substituído, “sem avaliação, sem debate, sem suporte da investigação nacional e internacional”.
Por tudo isto, prossegue a APM, o programa de 2013 gerou perturbação: “Os alunos dos 5.º e 7.º anos passaram pelo 3.º programa diferente de Matemática no seu percurso escolar; os professores viram-se confrontados com um programa com o qual não tiveram qualquer envolvimento formativo, ou tiveram uma formação diminuta que não teve em conta a prática lectiva”. E foi visível “a confusão dos manuais escolares”.
As respostas do grupo de professores que responderam ao inquérito do PÚBLICO espelham, no fundo, estas duas visões (APM e SPM) antagónicas.
E no secundário? Em 2015/16 inicia-se a aplicação, também gradual, de um novo programa. E a polémica já está aí. Afinal, diz a APM, é mais um que surge sem “qualquer avaliação” do trabalho que tem sido desenvolvido.
O que dizem 19 professores questionados pelo PÚBLICO
— 9 dizem que os conteúdos e abordagens do novo programa são adequados às faixas etárias dos alunos
“Tanto os conteúdos como as Metas Curriculares são adequados à idade dos alunos. A mesma percepção é partilhada pelos meus colegas de 1.º e 2.º ciclos. O novo currículo tem em consideração as boas práticas internacionais, com resultados comprovados, e funda-se numa aprendizagem estruturada e progressiva. Aquilo que os alunos devem compreender e fazer encontra-se expresso de um modo claro e é passível de avaliação. Nesse sentido, as Metas Curriculares suportam adequadamente a tarefa do professor. Por outro lado, a ordenação dos temas é mais coerente com uma aquisição e compreensão sólida dos conceitos e com a fluência no uso das ferramentas matemáticas fundamentais. Assim, o que parece correr melhor é a aprendizagem consistente da Matemática.”
Fernando Pena
(3.º ciclo)
— 7 dizem que o novo programa não está adequado às idades dos alunos
“Considero a maioria dos conteúdos desadequados à maturidade do pensamento abstracto dos alunos do 7.º ano.”
Mercedes Pinto
(deu aulas a alunos do 7.º ano)
“No 5.º ano, foram introduzidos alguns conteúdos que são bastante complexos, sobretudo nesta faixa etária, como algumas das metas do tema Números e Operações e muitas metas do tema Geometria, que criaram enormes dificuldades. Outros, mais interessantes para os alunos — caso dos sólidos geométricos — passaram para o 6.º ano, tornando, de certa forma, o 5º ano, mais difícil e menos motivante. Um conteúdo como as fracções, que envolve não só a compreensão do significado de fracção, como também saber realizar as quatro operações básicas, surge como algo que se consegue trabalhar em pouco tempo. Não é assim. Os alunos que acabaram, aparentemente, por aprender, decoraram os conteúdos/metas sem os compreender e algum tempo depois já não os sabiam. ”
Ana Cristina Tudella
(deu aulas a alunos do 5.º e 6.º anos)
— 3 dizem que os conteúdos e abordagens do novo programa são adequados às idades, mas não a todos os alunos
“Estes alunos não foram submetidos, no 1.º ciclo, a este novo programa. A aprendizagem de alguns conteúdos custou, especialmente porque muitos dos alunos revelaram falta de hábitos de trabalho e alguma falta de empenho. O anterior programa era menos exigente. Os novos conteúdos precisam de um trabalho diário para a sua compreensão e posterior aplicação. Mas com trabalho, tudo é alcançável. A principal dificuldade são o ‘tipo’ de enunciados/e a ‘maneira’ de fazer as perguntas, que obriga os alunos a interpretar o que lhes é pedido, capacidade que muitos ainda não têm. Foi um processo lento que aos poucos foi melhorando. A nível dos conteúdos, o trabalho com ângulos é o mais difícil para os alunos. O que correu melhor foi a forma como as Metas Curriculares facilitaram e promoveram o raciocínio e não a mecanização dos conteúdos.”
Ana Isabel Coelho Fernandes
(deu aulas a alunos do 5.º e 6.º anos)
— 6 referem-se explicitamente à extensão excessiva do programa
“Por vezes senti que os alunos tinham alguma dificuldade em entender certas demonstrações. No entanto, penso que foi porque não estão habituados. Com o decorrer dos anos, provavelmente, vão adaptar-se. Penso que se trata de um programa ambicioso, nomeadamente no que concerne à Geometria. O que correu melhor foi o facto de ter proporcionado aos alunos um maior rigor em certos conceitos/termos matemáticos. No entanto, a principal dificuldade que senti, foi a falta de tempo para consolidar certos conteúdos, a nível de exercícios, dado que o programa é muito extenso. Deveriam ser dados mais tempos à disciplina de Matemática.”
Maria Manuela Subtil Brito Pedro
(deu aulas a alunos do 7.º e 8.º anos)
— 6 professores fazem uma avaliação globalmente negativa da aplicação do programa
“O ano correu-me muito mal. Foi necessário consolidar aprendizagens não adquiridas no 1.º ciclo ou entretanto esquecidas, e que são pré-requisitos do 2.º. Esse tempo levou a um atraso relativamente à calendarização prevista. A complexidade de alguns conteúdos e o tempo de maturação para as aprendizagens acontecerem, levaram a mais atrasos. Apesar de muitas horas a planificar, simplificando processos e procedimentos, desenvolvendo materiais para ganhar tempo, nunca mais consegui recuperar. A tensão foi constante até ao fim, para o professor e para os alunos. O manual adoptado foi adaptado à pressa. Não ajudou o professor nem os alunos. Em alguns temas, resolvi abandoná-lo e construí os meus próprios materiais. Passei quase todos os meus fins-de-semana a trabalhar neles. Dei-os aos alunos, em tamanho A5, para colar no caderno diário.”
Manuel Francisco Alves Pereira
(deu aulas a alunos do 5.º e 6.º anos)
— 7 professores fazem avaliação sobretudo positiva da aplicação do novo programa
“Há muito rigor na linguagem. Há clareza nas propostas e muita liberdade para o professor poder aplicar o programa. E há também um Caderno de Apoio muito útil quer do ponto de vista pedagógico, quer do ponto de vista científico. Infelizmente alguns manuais escolares não estão de acordo com o programa.”
Alcides Azevedo Canelas
(deu aulas a alunos do 1.º e 3.º anos)
“As Metas Curriculares assentam num princípio de aprendizagem progressiva, estando cada etapa bem adaptada à idade dos alunos. Faço uma avaliação positiva deste ano. O novo programa é cientificamente mais rigoroso e, em termos pedagógicos, apresenta uma estrutura mais organizada e cuidada. A maior dificuldade encontrada foi a gestão do tempo. Na nossa escola tivemos formação durante o 2.º período que se revelou muito profícua. Os professores implementarem o novo programa sem angústias.”
Rosa Monteiro
(deu aulas a alunos do 7.º ano)
— 5 professores destacam dificuldades em aplicar o programa, apesar dos aspectos positivos do mesmo
“Esta é uma abordagem seguramente mais exigente e a forma como os conteúdos são trabalhados fazem todo o sentido, embora considere que não consegue chegar a todos os alunos. Os alunos que conseguem chegar ao cumprimento desta metas têm, sem dúvida, uma preparação e uma dimensão dos conteúdos muito além daquilo que anteriormente era exigido e que lhes vai facilitar o sucesso nos próximos ciclos. Contudo, este novo programa não parece adequado aos alunos que, por motivos vários, possam precisar de mais tempo para compreender e exercitar os vários conteúdos e que exijam uma proximidade e atenção maiores do professor. Para que a maioria dos alunos conseguisse fazer estas aprendizagens e para que as mesmas fossem devidamente consolidadas e trabalhadas nas várias vertentes as turmas deveriam ter um número de alunos mais reduzido e o primeiro ciclo deveria ser de cinco anos.”
Ana Lavos
(deu aulas a alunos do 3.º ano)
— 10 professores dizem que trabalharam com manuais que não eram adequados
“A gestão dos manuais foi a maior dificuldade. Cada vez mais existe uma prática salutar que consiste no reaproveitamento de manuais dos alunos que acabaram o nível no ano lectivo anterior, tal prática fez com que cerca de metade dos alunos não tivesse a versão actualizada..”
Luís Bernardino
(deu aulas a alunos do 7.º ano)
“Os manuais foram adaptados pelos autores em cerca de um mês. Na prática o manual com que trabalhei era em tudo igual ao que já existia mas maior... isto porque não foi retirado quase nada do que estava mas foram acrescentados ‘rectângulos com definições’ e propostos exercícios — tudo retirado, praticamente na íntegra, dos Cadernos de Apoio [ao professor], utilizando inclusivamente o tipo de linguagem que se pretende ser dirigida ao professor. O manual passou a ser um documento ‘estranho’ que não está de acordo com o anterior programa nem com o novo.”
Teresa Moreira
(deu aulas a alunos do 7.º ano)
— 9 professores não tiveram formação para o novo programa
“Não tive formação, mas esse facto foi contornado com a coesão do subdepartamento e o trabalho desenvolvido neste âmbito sempre que surgiam dúvidas.”
Ana Celeste de Moura Santos Vila
(deu aulas a alunos do 7.º e 8.º ano)
“Não houve formação e não senti necessidade da mesma.”
José Luís Ferreira
(deu aulas a alunos do 3.º ciclo)
“Não tive formação para leccionar o novo programa. Com certeza que essa formação teria ajudado a clarificar algumas dúvidas sentidas e que se prenderam essencialmente com a forma de abordar alguns conteúdos.”
Maria de Lurdes Alves
(deu aulas a alunos do 7.º ano)
— 10 professores tiveram formação
“Sendo o professor do 1.º ciclo um ‘professor generalista’, há quem tenha vindo da formação inicial com uma componente Matemática praticamente inexistente. Em Setembro, data de início do ano lectivo, pouca ou nenhuma orientação ou formação foi colocada à disposição. Nos Centros de Formação caíram inúmeros pedidos para formação. A primeira formação colocada à disposição de um grupo de professores, representantes de escolas ou agrupamentos de escolas, surgiu já com as aulas a decorrer.”
Ernesto Ferreira de Carvalho
(Coordena escola de 1.º ciclo, deu apoio educativo)
“A formação assentou essencialmente em aspectos científicos. Já acompanhei várias mudanças curriculares e posso afirmar que a implementação desta foi a que menos teve em conta (se é que teve) a prática lectiva, aspecto fundamental na transmissão de conhecimentos. Posso saber muita matemática mas se não a souber transmitir aos aluno esse meu conhecimento de pouco servirá à educação.”
Irene Segurado
(deu aulas a alunos do 5.º ano)