Pendurar o país numa forca

Um ultraje, digo eu, é fazer de um artista o bode expiatório de uma verdade inegável. Se os números o confirmam, porque não o pode documentar um artista?

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Gosto mesmo muito deste pedaço de terra. Não costumo chamar-lhe “país”. Não sinto especial afinidade pelos “símbolos da Nação”, seja lá o que isso for, embora os respeite e compreenda que encerram em si uma carga emotiva e simbólica demolidora. Ainda assim, acredito que os símbolos não sejam dogmas. E os seus profetas, não raras vezes, embaraçam-me. Envergonham-me. Hoje é um desses dias.

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Gosto mesmo muito deste pedaço de terra. Não costumo chamar-lhe “país”. Não sinto especial afinidade pelos “símbolos da Nação”, seja lá o que isso for, embora os respeite e compreenda que encerram em si uma carga emotiva e simbólica demolidora. Ainda assim, acredito que os símbolos não sejam dogmas. E os seus profetas, não raras vezes, embaraçam-me. Envergonham-me. Hoje é um desses dias.

Esta manhã, fui surpreendido pela notícia segundo a qual o artista Élsio Menau, com obra no desenho, na instalação e na street art, vai ser sujeito a julgamento após ter “enforcado” a bandeira nacional, como forma de simbolizar o estado social, político e económico português. Um “ultraje”, dizem. Um ultraje, digo eu, é fazer de um artista o bode expiatório de uma verdade inegável. Se os números o confirmam, porque não o pode documentar um artista?

A bandeira enforcada de Élsio Menau não está a profanar o glorioso pedaço de pano. Está, isso sim, a apelar a uma urgência. Aquela bandeira está a implorar que a salvem, porque está viva, porque tem cor. Mas não: vêm os senhores polícias, arrombam uma obra de arte, porque é um perigo, e põe-se um miúdo na barra do tribunal. Ao mesmo tempo, os desempregados continuam, sem sucesso, a tentar desapertar o nó da garganta e as classes políticas continuam a brincar aos chefes, agora mandas tu, agora mando eu. E depois vem um artista mostrar a sua própria verdade, a sua própria interpretação da realidade, e é um ai-Jesus, que ninguém pode dizer mal do nosso tão perfeito cantinho da Europa. É fogo de artifício a estoirar sobre um bairro de lata.

Como diz, e bem, esta cronista do P3, a arte ofende em Portugal. Ofende, e não é pouco. E, acrescento eu, ainda bem que ofende. A arte não deve ser indiferente, não deve nascer para fazer adormecer. Quando a arte assume a constância de fazer dormir um povo, deixando-o dormente, o mais provável é que esse aglomerado de gente não conheça a beleza de ser livre. E eu gostava de não acreditar nessa balela de sermos uma ditadura encapotada.

É curioso que, no mesmo dia em que O Jogo e o Diário de Notícias publica uma reportagem ao belo estilo “copy paste” digno da escola preparatória, num maravilhoso exemplo de indecência e desrespeito pelo leitor, também venha a público esta demonstração obtusa de poder, de quem não sabe lidar com a crítica. Estamos a perder a massa crítica, a deixar-nos ficar quadrados, cedendo às forças de quem não quer que pensemos mais nem melhor.

A marcação deste julgamento torna o país numa maior anedota do que se todos os portugueses decidissem “enforcar” uma bandeira no parapeito da janela. No dia em que soubermos rir e reflectir sobre as nossas falhas, seremos um povo mais saudável rodeado por um ar bem mais respirável. E, já agora, deixem os artistas em paz.

Parabéns pelos 17 valores, Élsio. Comigo, terias tido um 20.