Última chamada
A bordo do airbus da TAP, a caminho de Milão, cansado de muitas madrugadas em claro - dois concertos inesquecíveis: o quarto regresso ao Sonar Barcelona e a primeira visita a Paredes no concelho de Espinho. Sento-me, descalço os sapatos, aconchego-me na esperança de desligar e entregar-me ao sono assim que o piloto descolar este gigante de metal do chão.
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A bordo do airbus da TAP, a caminho de Milão, cansado de muitas madrugadas em claro - dois concertos inesquecíveis: o quarto regresso ao Sonar Barcelona e a primeira visita a Paredes no concelho de Espinho. Sento-me, descalço os sapatos, aconchego-me na esperança de desligar e entregar-me ao sono assim que o piloto descolar este gigante de metal do chão.
Mas de repente uma sensação estranha me desperta.
Ponho a mão no bolso e nada. Olho para ponta do avião e ao fundo vejo a assistente a descer o corredor verificando se os passageiros têm os respectivos cintos de segurança apertados. Demasiado tarde, vasculho novamente todos os bolsos de forma instintiva, sabendo que não hei-de encontrar nada em nenhum daqueles compartimentos. Na mente, desfiliam em câmara lenta os meus últimos passos, o táxi da Baixa à Portela via estrada de Chelas, o raio X, os líquidos, moedas, computador e demais objectos electrónicos no tabuleiro, e lá estava ele, o telemóvel agora desaparecido. Continuo na reconstrução, estou no lounge da TAP, o telemóvel na mesa a cronometrar os minutos antes do embarque, repousando ao lado do croissant trincado, o sumo de laranja, tomado num trago, o anúncio no altifalante - última chamada, passageiros com destino a Milão, favor embarcarem na porta... a corrida que se seguiu e o telemóvel abandonado ao lado do croissant trincado em cima da mesa.
Levantamos vôo e por cima das nuvens, um céu limpo e um sol que grita radiante. Um espetáculo a que nenhum dos passageiros se nega a assistir, excepto eu, que tenho agora os olhos postos na dor de cabeça que será passar os próximos dois dias sem telefone. Algo que todos os sensatos que conheço diriam para aproveitar e libertar-me do vício que é estar 24 horas ligado com o mundo através daquele infame objecto de comunicação. Penso no pior, nunca irei recuperar o dito. De repente tudo se torna distante, as duas horas e uns trocados que separam Lisboa de Milão, que o comandante anuncia na sua voz serena, quase divina, soam-me a uma eternidade. Busco no horizonte alguma espécie de alento, um sinal, sei lá qualquer coisa me tire dessa angústia e me faça parar com as especulações sobre o deteriorar das relações sociais, a falta de bondade humana. Valores existiram, num tempo que não foi o meu, mas que meus pais se orgulham de dizer que foi o deles. Ninguém se apropriava de objectos alheios, poderias perder uma carteira e numa questão de dia ou horas apareceria intacta. Bons tempos estes que nunca conheci.
Já perdi tantos objectos electrónicos em aeroportos e aviões que me envergonha contá-los. Entendo que estes sejam apetecíveis embora me custe aceitar que alguém se aproprie de coisas que não suas sem o mínimo de pudor. Em tom de consolo, digo para mim, que é apenas uma máquina. Guardava nelas entre assuntos importantes, memórias que não irei recuperar tão cedo, algumas irremediavelmente perdidas para sempre. Mas acabo de ganhar uma nova história para contar. Deixei o meu telemóvel, companheiro de muitas viagens ao lado de croissant tricando, no business loungue da TAP e nunca mais o recuperei.