Lana Del Rey: agora é a sério
A primeira vitória de uma voz tão apelativa quanto furtiva
Lana Del Rey, cantora revelada por uma canção,Video games, e pelo vídeo que a acompanhava (balada “Twin Peaksiana”, caso Twin Peaks tivesse por cenário a escola de Virgens Suicidas), passou entre a revelação desse vídeo e a edição do álbum de estreia, Born to Die, de cantora celebrada a embuste criado pela editora e pelo dinheiro do papá para enganar não se sabe quantos tolos (ou melhor sabe-se: sete milhões, número dos que lhe compraram o disco).
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Lana Del Rey, cantora revelada por uma canção,Video games, e pelo vídeo que a acompanhava (balada “Twin Peaksiana”, caso Twin Peaks tivesse por cenário a escola de Virgens Suicidas), passou entre a revelação desse vídeo e a edição do álbum de estreia, Born to Die, de cantora celebrada a embuste criado pela editora e pelo dinheiro do papá para enganar não se sabe quantos tolos (ou melhor sabe-se: sete milhões, número dos que lhe compraram o disco).
Ora, pondo de lado a absurda conversa sobre autenticidade (Johnny Rotten era todo ele artifício, tal como antes dele David Bowie e Marc Bolan, tal como Scott Walker, tal como Serge Gainsbourg, e a passagem das suas máscaras pela terra só tornou o mundo melhor), sobrava o que interessa, a música. E essa, em Born to Die, mostrava-se distante da fantasia deliciosamente orquestrada e pintada a cores saturadas de Video games — arranhava o hip-hop e a produção r&b sem se comprometer demasiado, acrescentava o tremolo das guitarras para dar um ar vintage à produção e tornava-se uma salgalhada sensaborona. Nada nele justificava a histeria acusatória e laudatória em volta da personagem.
Entretanto, dois anos passaram. Enquanto passavam, Lana Del Rey afirmou que não gravaria um segundo álbum porque já dissera no primeiro tudo o que tinha a dizer, Lana Del Rey filmou uma curta-metragem que serviria para encerrar um capítulo na sua vida, Lana Del Rey foi tentando apresentar-se como figura misteriosa e depressiva que, por intangível, teria algo de trágico. Tudo pormenores pouco relevantes até ao momento em que chegasse o segundo álbum (claro que chegaria), produzido por Dan Auerbach, o guitarrista e vocalista dos Black Keys.
Os singles foram aparecendo (West Coast, Shades of cool), acrescentou-se à mitologia pessoal de Lana Del Rey a conexão Lou Reed (que terá morrido no exacto dia em que ela aterrou em Nova Iorque para gravar com ele Brooklyn baby) e agora, por fim, temos Ultraviolence. E o que Ultraviolence nos diz é que Lana Del Rey encontrou a sua voz. Onze canções a preto e branco, revolvendo obsessivamente sobre os mesmos temas (amor total, amaldiçoado, protagonizado por mulheres ora frágeis ora cruéis e por homens sombrios, invariavelmente habitantes do wild side mitificado pelo rock’n’roll). Onze canções em ritmo lento, enubladas de secção de cordas e repletas de eco, com a voz frágil de Lana Del Rey a surgir como sussurro na escuridão. O travo clássico, retro, é evidente (ou não fosse Auerbach o produtor) e, eliminada a banalidade das tentações modernaças da estreia, bastante convincente.
“I’m your jazz singer and you’re my cult leader”, canta ela sobre essa figura “blessed with beauty and rage” que habita Ultraviolence. É a segunda canção do álbum e já nos envolvemos neste universo paralelo ao criado por Lee Hazelwood para Nancy Sinatra (Some velvet morning terá sido um dos modelos). Entre a tentação da biografia (real ou imaginada, é indiferente) e a profusão das citações pop (Poison Ivy, um Chevy Malibu ou o namorado que toca guitarra enquanto ela canta Lou Reed — ouvimo-lo na Brooklyn baby que lhe seria dedicada), Ultraviolence cativa pela consistência monocromática que o atravessa. Os títulos são indicadores disso mesmo (Cruel world, Sad girl, Pretty when you cry) e a música acompanha de forma certeira e inspirada as fantasmagorias e a triste e resignada melancolia da voz e das palavras cantadas.
É certo que o último terço do álbum não consegue prolongar o feitiço até final e é certo igualmente que em alguns momentos, felizmente raros, o pendor clássico de Auerbach é levado longe demais (há por ali um par de linhas de guitarra que mancham com exibicionismo estéril a abordagem discreta da banda, sempre ao serviço das canções), mas isso é insuficiente para macular o momento em que Lana Del Rey surge perante nós como personagem de uma voz misteriosa e cativante, tão apelativa e tão furtiva quanto pode ser uma estrela pop do nosso tempo. Ultraviolence é a sua primeira vitória. Um belíssimo disco.