Pouco pão e muito circo, morte e bocejo

É tudo cómico na FIFA, porque todos os dias a FIFA nos espeta com uma tarte de creme na cara.

Também eu sinto que há um Portugal que morre, enquanto o resto de Portugal boceja. Ou cachecoleja com o Mundial. Ou se mobiliza para o duelo no PS, trocando dichotes. Ou faz contas aos votos das próximas eleições e aos lugares que ficarão sujeitos a licitação. Ou esfrega as mãos de satisfação ao ver como se conseguiu “reduzir os custos unitários do trabalho”, “flexibilizar a legislação laboral e agilizar os licenciamentos” e “promover a requalificação e mobilidade na função pública”.

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Também eu sinto que há um Portugal que morre, enquanto o resto de Portugal boceja. Ou cachecoleja com o Mundial. Ou se mobiliza para o duelo no PS, trocando dichotes. Ou faz contas aos votos das próximas eleições e aos lugares que ficarão sujeitos a licitação. Ou esfrega as mãos de satisfação ao ver como se conseguiu “reduzir os custos unitários do trabalho”, “flexibilizar a legislação laboral e agilizar os licenciamentos” e “promover a requalificação e mobilidade na função pública”.

O bocejo não é um desinteresse de tudo. É apenas um desinteresse por quem morre, pela outra Espanha, pelo outro Portugal, pelos outros, um enorme tédio e desinteresse por quem não aparece na televisão e nas revistas e por quem não contribui para o seu embrutecimento. Por quem é pobre e doente e velho e ignorante e desempregado e por quem quer que seja que pertença às minorias que toleramos.

Há no discurso político uma tal preocupação com a peleja partidária para a mera conquista de terreno e uma tal indiferença pelas coisas verdadeiramente importantes que “o Portugal que morre” morre anónimo e esquecido, calado e cansado. Se retirássemos a retórica e a dissimulação, o que restaria ao discurso político que ouvimos? E quem sobraria no panorama político? Dez pessoas? Três?

Encontrei ontem no Facebook um link para um sketch do humorista britânico John Oliver, que muitos conhecem da sua participação no Daily Show de Jon Stewart. O sketch é sobre o Mundial do Brasil e a FIFA, a corrupção na FIFA, o Mundial de 2022 no Qatar, o egotismo e a boçalidade do seu presidente, Sepp Blatter, a imensíssimamente descomunal lata do seu secretário-geral, Jérôme Valcke, os estádios monstruosos e inúteis no Brasil, o estatuto de “Estado dentro do estádio” que a FIFA possui, ditando as suas leis, criando os seus tribunais especiais, fugindo a todos os impostos, absorvendo fundos que os países podiam e deviam dedicar ao desenvolvimento e ao combate à pobreza, acumulando uma fortuna colossal que foge a todos os escrutínios, como organização internacional e “sem fins lucrativos” que finge ser.

Curiosamente, no link que encontrei no Facebook, John Oliver era apresentado como “jornalista” e os comentários cumprimentavam a qualidade do seu “jornalismo”. O facto não é apenas fruto da ignorância: de facto, havia no seu humor mais jornalismo (mais investigação, mais preocupação em aprofundar e contextualizar a história, mais isenção no relato, mais preocupação social, mais urgência de denunciar) do que em muitas peças realmente jornalísticas. O que é espantoso é que a peça era singularmente objectiva. O grosso do “humor” era apenas uma colagem inteligente de notícias sobre a FIFA. O humor nascia do absurdo da prática da FIFA, do gigantesco sem-sentido da sua actuação, do despropósito das declarações dos seus dirigentes, da insensatez da sua existência, da arrogância da sua relação com os Estados. É tudo cómico na FIFA porque o que todos nós permitimos que esta organização faça é totalmente absurdo e sem sentido. The joke is on us! É tudo cómico na FIFA porque todos os dias a FIFA nos espeta com uma tarte de creme na cara e, como sabemos, isso é sempre cómico.

Oliver é humorista e não jornalista, mas é interessante verificar como é cada vez mais frequente que as verdades surjam nos programas de humor e a propaganda nos programas jornalísticos. Sim, eu sei que já foram publicados trabalhos jornalísticos sobre o lado negro da FIFA. O problema é que são infinitamente minoritários e, depois disso, toda a comunidade jornalística continua a tratar a FIFA como uma organização idónea e os seus campeonatos como os mais benignos eventos do mundo e todos os poderosos do mundo continuam a apertar a mão a Sepp Blatter e a Jérôme Valcke.

O que torna a informação sobre a FIFA imensamente divertida é a colagem que Oliver fez e que os media em geral não fazem, apesar da disponibilidade da informação que a Web permite. Porque é que os jornalistas não fazem a mesma coisa? Porque é não nos fazem rir à custa dos poderosos? Porque alguém os convenceu de que devem ter como critério o interesse do público e não o interesse público. E, para metade da população (mundial, portuguesa, brasileira), as preocupações com a corrupção e com as isenções fiscais da FIFA fazem-nos bocejar. E talvez seja mais do que metade. Há brasileiros que pedem menos bola e mais escola? Educação padrão FIFA? Transportes gratuitos? Os adeptos bocejam, enquanto esperam a hora do desafio.

jvmalheiros@gmail.com