No Mundial, a geopolítica também entra em campo
O Mundial junta uma amostra daquilo que é o mundo em 2014. Países democráticos e autoritários, ricos e pobres, amigos e inimigos jogam entre si e tentam quebrar as barreiras erguidas pela política.
Entre si, os 32 participantes correspondem a quase metade do território mundial, mas contêm apenas 26% da população. As ausências da China e da Índia, os países mais populosos, retiram cerca de 36% da população representada no Mundial.
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Entre si, os 32 participantes correspondem a quase metade do território mundial, mas contêm apenas 26% da população. As ausências da China e da Índia, os países mais populosos, retiram cerca de 36% da população representada no Mundial.
Com 318 milhões de habitantes, os EUA não se podem queixar de falta de apoio à sua selecção, apesar da reduzida expressão que o soccer tem no país, comparado com os desportos mais populares, como o basebol ou o futebol americano. O Uruguai perde no campeonato da população, com apenas 3,3 milhões de habitantes, o que não os impediu de vencer o último Mundial disputado no Brasil, em 1950.
A esperança média de vida nos países qualificados para o Mundial é de 75,64 anos, acima do valor médio mundial de 70 anos, de acordo com os dados referentes a 2012 da Organização Mundial de Saúde. É no Japão que mais tempo se vive em média (84,46 anos), mas, em contraste, na Nigéria a esperança média é de apenas 52,62 anos, uma das mais baixas em todo o planeta.
Se lhes faltam pessoas, aos 32 países participantes não falta actividade económica. Representam 55% do PIB mundial e são também responsáveis por 55% das exportações de bens e serviços. Mas também aqui há diferenças assinaláveis. Na Costa do Marfim, o PIB per capita é de 1800 dólares (1322 euros), 30 vezes menos do que na Suíça.
O Mundial é também uma boa amostra do mundo geopolítico actual. Boa qualidade futebolística não é necessariamente sinónimo de boas práticas de governação. Bastaria recordar-nos de Mundiais como o de 1934, organizado e ganho pela Itália de Mussolini, prestes a aliar-se à Alemanha nazi e em vésperas da II Guerra Mundial.
Muito tempo se passou desde então e a democracia ganhou terreno em muitas partes do globo. Ainda assim, quase um terço dos 32 países representados no Mundial 2014 não é considerado totalmente livre, de acordo com a classificação da Freedom House, uma organização não-governamental que estuda o fenómeno democrático e os direitos humanos.
São dez os países que restringem, de alguma forma, as liberdades dos seus cidadãos para além do que é aceitável em democracia. Entre eles, quatro são casos extremos (Argélia, Camarões, Irão e Rússia), segundo a mesma organização.
Da mesma forma, são várias as diferenças noutras áreas da governação, como, por exemplo, a corrupção. A Suíça vence nesse campeonato, com o sétimo lugar no ranking anual da Transparência Internacional. Por outro lado, a Nigéria, os Camarões e o Irão empatam na pouco honrosa 144.ª posição, de um total de 175 países.
Diplomacia das chuteiras
Durante as próximas semanas a competição vai ser nos relvados brasileiros, mas há também várias contas a ajustar fora dos estádios. Nos últimos meses, a crise na Ucrânia operou um retrocesso nas relações internacionais, com um regresso à retórica da Guerra Fria entre os EUA e os aliados ocidentais, de um lado, e a Rússia, do outro.
O Ocidente acusa a Rússia de estar a orquestrar sublevações no Leste da Ucrânia e têm-se sucedido as levas de sanções diplomáticas e económicas dirigidas a responsáveis russos. Moscovo nega as acusações e critica o apoio dado pela União Europeia e pelos EUA à revolta em Kiev, que levou à queda do ex-presidente ucraniano, Viktor Ianukovich, em Fevereiro.
A Ucrânia falhou a qualificação para o Mundial, depois de ter sido derrotada pela França nos play-off. No entanto, o conflito tem-se prolongado para além dos corredores diplomáticos, como aconteceu durante o Festival da Eurovisão, em que os intérpretes russos foram apupados. Poderá a selecção russa escapar a algo do género nos estádios brasileiros?
Significado político tem também a presença do Irão, orientado por Carlos Queiroz, no Mundial. Desde a revolução de 1979 que os EUA e o Irão são inimigos de estimação e essa rivalidade chegou mesmo a protagonizar um episódio que ficou para a história dos Mundiais.
Em 1998, as duas selecções foram sorteadas no mesmo grupo e o jogo entre ambas foi logo considerado de alto risco. Segundo o protocolo da FIFA, deveriam ser os jogadores iranianos a dirigirem-se aos rivais para os cumprimentar no início do jogo, algo que foi expressamente proibido pelo Líder Supremo do Irão, o ayatollah Khameini.
O responsável de comunicação da FIFA para esse encontro, Mehrdad Masoudi, de origem iraniana, conseguiu “furar” as regras e foram os norte-americanos a dirigirem-se aos adversários. O jogo em Lyon acabou por correr sem qualquer incidente, o Irão venceu e ainda houve oportunidade para uma foto com os jogadores de ambas as equipas. No final, e apesar da derrota, o jogador dos EUA, Jeff Agoos, resumiu o encontro: “Fizemos mais em 90 minutos do que os políticos em 20 anos.”
Actualmente, as relações entre os dois países estão ainda longe da pacificação, mas os avanços recentes, tais como o telefonema entre Obama e o Presidente iraniano, Hassan Rohani, dão alguma esperança. Os EUA, em conjunto com outros cinco países, têm negociado a neutralização do desenvolvimento de armas nucleares pelo Irão.
Apesar de alguns avanços, ainda ninguém arrisca antever um entendimento. Com cinco dos seis países das negociações presentes no Mundial, quem sabe se não poderá haver outros 90 minutos de progressos?
Avançando para outras latitudes, a América do Sul é também terreno fértil para alianças e inimizades. Na última década, vislumbram-se dois pólos distintos, entre um grupo de regimes considerados populistas (Venezuela, Bolívia, Equador e Argentina) e de países mais próximos da esfera de Washington (Colômbia e Chile). O Brasil, conhecido por uma certa independência em termos de política externa, age como fiel da balança perseguindo o objectivo de se assumir como potência regional. Recentemente, as relações entre Brasília e Washington sofreram um revés com as denúncias de espionagem pela NSA, que a Presidente Dilma Rousseff criticou publicamente.
Relações complicadas têm também a Argentina e a Espanha, duas candidatas ao título, cujo ponto alto aconteceu em Abril de 2012, quando o Governo de Cristina Kirchner nacionalizou a YPF, a maior petrolífera do país, que era detida pela espanhola Repsol.
A Europa também entra no jogo diplomático do Mundial. A rivalidade entre a Inglaterra e a Alemanha vem de longe, assumiu um auge com a II Guerra Mundial e, com a paz, passou a resumir-se a piadas baseadas em estereótipos, como exige qualquer saudável vizinhança. No entanto, as duas capitais estão envoltas num confronto institucional em torno dos destinos da União Europeia. O Governo britânico, assumindo um cada vez maior distanciamento de Bruxelas, recusa-se a aceitar que Jean-Claude Juncker, candidato à Comissão Europeia pelo Partido Popular Europeu, mais votado nas últimas eleições europeias, assuma a presidência. Cabe a Angela Merkel gerir mais esta crise e pode ser que um encontro informal antes de uma partida no Mundial ajude a desanuviar a tensão.