Jihadistão: uma “tragédia sem fim" que ameaça chegar à Europa”
Exército Islâmico do Iraque e do Levante é só um dos nomes, foi o que ficou. Apareceu na Síria e poucos lhe deram importância. Nos últimos dois dias, ocuparam províncias inteiras do Iraque.
Mossul, a segunda maior e mais importante cidade do Iraque, é diferente. Mesmo. Nínive, a província de que é capital, também. Não são só as 500 mil pessoas que em menos de 48 horas fugiram de Mossul. Não são apenas as instalações petrolíferas de Baji, a estrada até ao Curdistão (iraquiano e turco), a localização estratégica, a meio caminho entre a Síria e o Irão e com a Turquia logo ali acima. Não é só Mossul: Tikrit, capital da província de Salahedin, a meio caminho entre Mossul e Bagdad, também já caiu.
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Mossul, a segunda maior e mais importante cidade do Iraque, é diferente. Mesmo. Nínive, a província de que é capital, também. Não são só as 500 mil pessoas que em menos de 48 horas fugiram de Mossul. Não são apenas as instalações petrolíferas de Baji, a estrada até ao Curdistão (iraquiano e turco), a localização estratégica, a meio caminho entre a Síria e o Irão e com a Turquia logo ali acima. Não é só Mossul: Tikrit, capital da província de Salahedin, a meio caminho entre Mossul e Bagdad, também já caiu.
É a Europa, também. Os refugiados a tentar chegar e tanto mais. Como o atentado do fim de Maio ao Museu Judaico da Bélgica, cometido por Medhi Nemmouche, um francês de 29 anos que esteve na Síria, a combater nas fileiras do ISIS (Estado Islâmico do Iraque e do Levante), qualificado esta quarta-feira pelo embaixador americano em Bagdad como "um dos grupos terroristas mais perigosos do mundo".
“A queda de uma grande cidade como Mossul e a fuga das forças de segurança é algo de verdadeiramente dramático”, afirmou esta quarta-feira o ministro dos Negócios Estrangeiros iraquiano, Hoshyar Zebari. Ban Ki-moon, secretário-geral da ONU, diz-se “muito inquieto”, enquanto a Casa Branca descreve o ISIS e o seu crescimento imparável como “ameaça à estabilidade de toda a região”. Na Síria, o ditador Bashar al-Assad oferece ajuda ao Governo iraquiano de Nouri al-Maliki. Parece uma piada, mas não é.
Como habitualmente, o ISIS fez as suas apresentações executando membros das forças de segurança iraquianas, alguns na província de Kirkuk, a sudeste de Mossul e de Nínive.
Os jihadistas que ocuparam o lugar da Al-Qaeda na ameaça que constituem para esta região e para o resto mundo, aproveitando o vazio e as poucas armas em poder de quem os quis combater na Síria – os rebeldes anti-Assad –, já controlam vastas zonas de três províncias iraquianas e patrulham Mossul, uma cidade gigantesca e imponente, ao mesmo tempo que apelam com os seus megafones à população, explicando-lhes que chegou a hora de se unirem aos novos senhores. Entretanto, raptaram 47 turcos no consulado da cidade. Tudo isto em menos de dois dias.
Meio milhão em fuga
Os civis que fugiram foram para onde puderam: em direcção a norte, para a província autónoma do Curdistão iraquiano (as forças de Maliki e os exércitos curdos já decidiram que terão de enfrentar o ISIS em conjunto, resta saber se serão capazes); atravessaram da margem ocidental para a oriental do rio Tigre, à procura de refúgio em cidades de Nínive que os jihadistas ainda não alcançaram.
Os sírios estão a viver este filme há meses – principalmente no Norte, de Alepo até à fronteira com a Turquia, de Alepo até ao Curdistão sírio. Até que o ISIS alcança a aldeia para onde fugiram e depois a cidade a seguir e ainda instala barreiras em todas as estradas e ninguém sabe se passará como se nada fosse ou se acabará raptado e escravizado, executado ou decapitado. Mas poucos, para além dos sírios, quiseram ver e antecipar o que viria necessariamente a seguir.
Há “um número significativo de vítimas entre a população civil”, mas “o centro de cuidados principal, formado por quatro hospitais no centro da cidade, está inacessível, fica em pleno coração de uma zona de combates e as mesquitas foram convertidas em clínicas para tratar os feridos”, explica a Organização Internacional para as Migrações. Os homens do ISIS proíbem a utilização de carros, toda a gente sai de Mossul a pé.
Os sírios já viram este filme. Assad fez a sua parte, mas depois o ISIS apareceu e começou a crescer e os sírios já fogem de tudo e de todos e é de há muito. A pé, com o que conseguem levar. Já fugiram 9 milhões e quase nem se acredita. A não ser em dias como esta quarta-feira, em que se percebe que meio milhão de iraquianos fugiu de casa.
O ISIS e a Al-Qaeda partilham ideias e métodos, nascem dos mesmos muçulmanos sunitas radicais (árabes, europeus, asiáticos) prontos a levantar armas em nome de um califado no meio de terras lideradas por xiitas (que consideram hereges), "jihadistão", chamemos-lhe assim, como faz o jornal Le Monde em editorial. O ISIS está perto, muito perto, de controlar províncias inteiras do Iraque e de amputar a Síria – em parte, estas áreas concentram petróleo, para além de localizações absolutamente estratégicas.
A Europa, escreve o Le Monde, “não pode ficar indiferente: o ISIS seduz centenas, talvez milhares, de jovens muçulmanos europeus regressados de combater nas suas fileiras, essencialmente na Síria”. Maliki e a ausência de um Estado funcional no Iraque contribuíram de forma decisiva para os últimos acontecimentos. Mas a responsabilidade é partilhada.
Escreve Simon Tisdall no diário britânico The Guardian que Barack Obama prometeu que ajudaria Bagdad a construir “um exército nacional eficiente e bem equipado”. Entretanto, fez pouco mais do que “tornar o Iraque num mercado lucrativo para vender armas”. Ao mesmo tempo, deixou o Irão oferecer ajuda a Bagdad, como já fizera na Síria – aqui contra civis desarmados, antes de ser contra rebeldes dispostos a tudo, antes de os sírios conheceram o poder de sangue do ISIS.
Obama não enviará tropas para o Médio Oriente; já era óbvio, o Presidente norte-americano repetiu-o na semana passada, no seu discurso em West Point. A Rússia, lembra e bem o Le Monde, continua fiel à sua aliança com a Síria e com o Irão e “a Europa olha para o lado.” Onze anos depois de uma invasão que George W. Bush e Tony Blair justificaram em nome da “guerra ao terrorismo”, o jihadismo triunfa no Iraque, concluiu o diário francês. “Tragédia sem fim para os iraquianos e para os sírios. Ameaça a chegar para os europeus.”