“Maracanaço”, a história de uma derrota eterna
Nenhuma derrota foi tão comentada e intelectualizada como a do Brasil no Mundial de 1950. O “Maracanaço” faz parte do imaginário brasileiro. Muitos até a vêem como a grande tragédia da história contemporânea do país. E no regresso do Mundial ao Brasil, 64 anos depois, o fantasma volta a ser lembrado.
João Máximo, jornalista brasileiro, era um menino de 15 anos, que morava perto do Maracanã. Assistiu ao vivo a todos os jogos do Mundial de 1950 naquele estádio. Viu a selecção vencer o México (4-0) e a Jugoslávia (2-0). Na fase final, com um formato diferente do habitual porque havia menos equipas, viu a “canarinha” vencer a Suécia (7-1) e a Espanha (6-1). O jogo final contra o Uruguai era para ser a consagração do Brasil, selecção e país. “Em 1950, não havia uma separação entre nação e selecção. Todo o mundo sabia, dos intelectuais aos torcedores fanáticos, que ali era o Brasil que estava em campo”, diz ao PÚBLICO este cronista, para explicar a dimensão do trauma que se seguiu. É que 20 anos depois do início dos Mundiais, o Brasil iria finalmente ser campeão, comprovando com um título o que muita gente pensava: o melhor futebol do mundo era brasileiro. Mais, segundo o historiador Carlos Molinari, esfumou-se em minutos “a maior vitória do Brasil desde a sua independência, em 1822”.
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João Máximo, jornalista brasileiro, era um menino de 15 anos, que morava perto do Maracanã. Assistiu ao vivo a todos os jogos do Mundial de 1950 naquele estádio. Viu a selecção vencer o México (4-0) e a Jugoslávia (2-0). Na fase final, com um formato diferente do habitual porque havia menos equipas, viu a “canarinha” vencer a Suécia (7-1) e a Espanha (6-1). O jogo final contra o Uruguai era para ser a consagração do Brasil, selecção e país. “Em 1950, não havia uma separação entre nação e selecção. Todo o mundo sabia, dos intelectuais aos torcedores fanáticos, que ali era o Brasil que estava em campo”, diz ao PÚBLICO este cronista, para explicar a dimensão do trauma que se seguiu. É que 20 anos depois do início dos Mundiais, o Brasil iria finalmente ser campeão, comprovando com um título o que muita gente pensava: o melhor futebol do mundo era brasileiro. Mais, segundo o historiador Carlos Molinari, esfumou-se em minutos “a maior vitória do Brasil desde a sua independência, em 1822”.
O jogo final foi seguido até nos mais recônditos lugares do país. Arnaldo Santos estava em Manaus, às portas da Amazónia. “Eu tinha 12 anos. Não passava pela nossa cabeça perder aquela Copa do Mundo. Ouvi tudo na rádio. Imagina o ruído da transmissão aqui na Amazónia, mas dava para perceber o essencial”, contou ao PÚBLICO este radialista. “Em 1950, comecei a amar o futebol, porque não entendia como o meu pai e os meus tios, que estavam ouvindo o rádio, e festejando, de repente começaram a chorar.” Quando Alcides Ghiggia marcou o 2-1, a 11m28s do final da partida, começou a desabar o sonho. Aqueles minutos passaram depressa de mais. “Era o fim. O Brasil perdeu a Copa do Mundo. Toda aquela alegria se transformou em lágrimas”, diz Arnaldo Santos.
Lágrimas e silêncio são as palavras mais frequentes para descrever o “Maracanaço”. “Apenas três pessoas, com um único gesto, silenciaram o Maracanã com 200 mil pessoas: Frank Sinatra, o Papa João Paulo II e eu”, costuma lembrar o uruguaio Ghiggia. Actualmente com 87 anos, é o único jogador ainda vivo de todos os que disputaram aquela partida. Entusiasma-se ao recordar os festejos com os seus companheiros e a recepção apoteótica à chegada ao seu país, mas ainda fica com a voz embargada ao lembrar o silêncio empedernido de 200 mil brasileiros. “Era um silêncio enorme. Parecia que não havia ninguém. Quando terminou a partida, estávamos contentes, abraçámo-nos e, se olhávamos para a arquibancada, víamos as pessoas a chorar. Dava tristeza”, lembrou, em 2010, numa entrevista à Sport TV brasileira, por ocasião do 60.º aniversário do “Maracanaço”.
Este silêncio insondável ficou também gravado na memória do escritor e jornalista carioca Carlos Heytor Cony, que, com 24 anos, assistiu a tudo nas bancadas do Maracanã: “Dizem que o silêncio não tem voz. Que silêncio é silêncio… Foi talvez o barulho pior que ouvi na minha vida. Foi um silêncio que vem de dentro, apocalíptico, de ‘amargedão’. Parecia que o mundo todo tinha parado. Foi a primeira vez que como adulto eu chorei. Chorei com a impressão de que não tinha mais nada para fazer na vida. Que os meus dias na terra não contavam mais. Isso foi um sentimento geral e custou muito a digerir.”
João Máximo destaca o contraste entre a euforia de boa parte daquela tarde e os minutos finais do jogo. “O estádio era uma coisa incrível. Era foguetório quando a selecção entrava, um barulho ensurdecedor, a torcida cantava o tempo todo. Quando o Friaça faz o primeiro golo, a gritaria aumentou ainda mais. Quando o Ghiggia marca o golo, fica um silêncio impressionante no estádio. O estádio fica mudo”, conta o jornalista, que mais tarde falou com vários dos protagonistas daquela tarde. “Quando saí do estádio, e voltei para casa a pé, sozinho, disse que nunca mais ia ao futebol. ‘Para mim o futebol acabou’”, conta João Máximo, lembrando que a saída dos espectadores parecia um cortejo fúnebre. No dia seguinte, o então menino de 15 anos resolveu que o basquetebol seria a sua nova paixão e foi ver a final do campeonato carioca — esta decisão haveria, no entanto, de durar pouco: no fim-de-semana, o Maracanã recebeu um jogo entre o Flamengo e o Bangú, que ia estrear o craque Zizinho. Máximo não resistiu e voltou ao local da desilusão.
Na enorme construção de betão estava também o escritor José Lins do Rego (falecido em 1957), que testemunhou a debandada triste e derrotada dos 200 mil adeptos (o número oficial anunciado pela FIFA seria de 173.850 espectadores pagantes).
Dois dias depois escreveria uma crónica marcante no Jornal dos Sports intitulada “A Derrota”. “Vi um povo de cabeça baixa, de lágrimas nos olhos, sem fala, abandonar o Estádio Municipal como se voltasse do enterro de um pai muito amado. Vi um povo derrotado e, mais que derrotado, sem esperança. Aquilo me doeu no coração. Toda a vibração dos minutos iniciais da partida, reduzidos a uma pobre cinza de fogo apagado. E, de repente, chegou-me a decepção maior, a ideia fixa que se grudou na minha cabeça, a ideia de que éramos mesmo um povo sem sorte, um povo sem as grandes alegrias das vitórias, sempre perseguido pelo azar, pela mesquinharia do destino. A vil tristeza de Camões, a vil tristeza dos que nada têm que esperar seria assim o alimento podre dos nossos corações. Não dormi, senti-me, alta noite, como se mergulhado num pesadelo. E não era pesadelo, era a terrível realidade da derrota.”
Hiroxima, Waterloo ou o exagero
O trauma de 1950 já foi evocado dezenas de vezes, especialmente nas ocasiões em que Brasil e Uruguai se defrontaram. O regresso do Mundial ao Brasil, 64 anos depois, proporciona uma nova reflexão sobre o papel do “Maracanaço” na memória colectiva brasileira e aparentemente as opiniões dividem-se. Há quem defenda que, apesar de todos os êxitos, o “país do futebol” nunca esqueceu a humilhação do Maracanã. Ela persistiu como uma ferida perene na psique nacional, continuando a ser um dos momentos mais intelectualizados da história moderna do país. “As pessoas fazem questão de não esquecer. Mesmo pessoas que nasceram há dez anos sabem de 1950, como se tivessem estado lá”, diz ao PÚBLICO Sérgio Rodrigues, escritor brasileiro, autor do romance O Drible. “É um trauma de fundação, ele nos construiu.”
A derrota foi interpretada como a metáfora de uma nação eternamente adiada. Bem longe do “país do futuro” anunciado pelo autor austríaco Stefan Zweig, que, num ensaio publicado em 1941, profetizava o Brasil como “um dos mais importantes factores do desenvolvimento futuro do mundo”.
Em Julho de 1966, com “a derrota” a maturar há 16 anos, Nélson Rodrigues reenquadrou o acontecimento, em conversa com a revista Realidade. “Cada povo tem a sua irremediável catástrofe nacional, algo assim como uma Hiroxima. A nossa catástrofe, a nossa Hiroxima, foi a derrota frente ao Uruguai, em 1950”, sintetizou.
Na mesma sintonia, o antropólogo Roberto DaMatta qualificou a “final” de 16 de Julho como “a maior tragédia da história contemporânea do Brasil”. No ensaio Esporte na sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro, publicado em 1982, analisa os impactos de um trauma que testemunhou, ainda em criança, nas arquibancadas do Maracanã: “A derrota trouxe uma visão solidária da perda de uma oportunidade histórica (…) Ocorreu no início de uma década na qual o Brasil buscava marcar o seu lugar como nação que tinha um grande destino a cumprir. O resultado foi uma busca incansável de explicações e responsabilidades para essa vergonhosa derrota.” Paulo Perdigão — que, ainda menino, presenciou o jogo e viria depois a ser crítico de cinema — escreveu Anatomia de uma Derrota. São 500 páginas, que incluem a transcrição do relato radiofónico daquele jogo, um dos últimos antes do advento da televisão no Brasil, que surgiu dois meses depois. Perdigão mergulhou em todos os aspectos daquele jogo, cronometrou os acontecimentos e definiu a hora da tragédia: 16h33, a hora do golo de Ghiggia. Para ele, foi a perda da inocência, aos 11 anos. Para o país, foi a “Waterloo dos Trópicos”.
João Máximo vê estas visões catastróficas como algo “exagerado” e encontra uma explicação: “O Brasil é um país sem grandes tragédias colectivas. Portugal teve um grande terramoto e isso marca gerações. O Brasil nunca teve esse tipo de tragédias, tem de vez em quando coisas localizadas. E aí vivemos essa coisa do futebol”, diz o jornalista, para quem a memória do “Maracanaço” se tem esbatido: “Só os velhinhos como eu se lembram. A garotada nem sabe. Ou sabe porque o avô conta, mas não querem saber disso”, argumenta, acrescentando que já passou o tempo em que as balizas do Maracanã eram identificadas como o gol [baliza] de Gigghia e o gol de Friaça.”
A caça aos culpados?
A comoção nacional foi sentida particularmente pelos jogadores, que naquela tarde vestiram a camisola branca e calção azul (no Mundial seguinte, o Brasil mudou para camisola amarela e calção azul, ainda hoje imagem de marca da selecção). Barbosa, Augusto, Juvenal, Bauer, Danilo, Bigode, Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e Chico ficaram eternamente ligados à “tragédia”. O guarda-redes Barbosa foi particularmente visado. Muitos culparam-no pelo golo de Ghiggia, cujo remate entrou entre o poste e o guarda-redes. O cronista Nelson Rodrigues falou de um “frango eterno” e Barbosa, fosse onde fosse, era apontado como o guarda-redes que esteve naquela derrota. João Máximo lembra uma frase do jornalista José Paulo Kupfer: “Às vezes, o que passa entre as pernas do goleiro, não é a bola, mas a tragédia”. No caso, a bola passou entre ele e o poste e foi mesmo uma tragédia. Ficou marcado para o resto da vida.
Em 1993, nas vésperas de um Brasil-Uruguai de qualificação para o Mundial 1994, alguém se lembrou de levar o ex-guarda-redes ao estágio da selecção, mas ele foi impedido de entrar. Podia dar azar, justificaram. “No Brasil, a maior pena é de 30 anos, por homicídio. Eu já cumpri mais de 40 anos de punição por um erro que não cometi", costumava dizer nas entrevistas que dava.
O defesa-esquerdo Bigode foi outro dos alvos preferenciais, por ter sido ultrapassado por Ghiggia no lance do 2-1. “O trauma de 1950, pelo menos para mim, não foi totalmente superado. Ainda escuto na rua sobre o que aconteceu. Quando sou apresentado a alguém, dizem: ‘É Bigode, um dos que perderam a Copa do Mundo de 1950'”, contou a Geneton Moraes, em 1986.
Quando aquele jogo terminou, a vida dos jogadores mudou. Como escreveu Geneton de Moraes Neto, em Dossiê 50, “o Brasil ia ganhar 11 deuses na tarde de domingo 16 de Julho de 1950. E ganhou 11 anti-heróis.” Ademir, avançado daquela selecção, sintetizou bem esse pensamento: “Nas vésperas do jogo, eu tinha fortuna nas mãos. Seria nome de bola, de marca de chocolates e cigarros, até vereador. Quando a partida acabou, eu era um homem morto”, contou Ademir, que ficou 20 dias escondido na casa de um português a duas horas do Rio. Juvenal, outro dos defesas a quem apontaram o dedo por falha no golo de Ghiggia, passou 14 dias fechado em casa.
E todos passaram o resto da vida a procurar e a dar explicações para o que aconteceu naquela tarde inexplicável. Aquela derrota (a mãe de todas as derrotas, como já lhe chamaram) foi escalpelizada ao milímetro. Distribuíram-se culpas pelo ocorrido naqueles seis segundos entre o passe de Julio Pérez para Ghiggia e a entrada da bola na baliza de Barbosa. Alguns, como Juvenal, disseram que os jogadores brasileiros foram pouco agressivos, porque o treinador tinha dito que não admitiria entradas duras. Outros defendem que os futebolistas não tiveram descanso suficiente, porque mudaram de lugar de estágio e passaram a ser incomodados pelos políticos que já estavam em campanha para as eleições. Discutiu-se até à exaustão o efeito de um alegado estalo do capitão do Uruguai, Obdulio Varela, no defesa Bigode, que sempre negou ter sido agredido — Obdulio, aliás, é uma personagem marcante na história daquele jogo, atribuindo-se-lhe a fama de ter motivado os seus companheiros com gritos de guerra e uma atitude corajosa.
O seleccionador Flávio Costa haveria de contar que o silêncio do público no golo do empate, que ainda dava o título ao Brasil pelas regras daquela época, teve grande impacto nos jogadores. Paulo Perdigão, que no seu Anatomia da Derrota transcreve o relato da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, desmente a tese do silêncio após o golo do empate. A gravação mostra que o público voltou a apoiar a selecção brasileira, mas o autor do livro concede que o silêncio do 1-1 deve constar desta história, citando uma personagem do filme de John Ford, O Homem Que Matou Liberty Valance: “Quando a lenda se torna mais forte do que a realidade, publica-se a lenda.”
Se há algo em que todos convergem é que houve excesso de confiança. Os jogadores brasileiros eram dados como vencedores. Na véspera do jogo, o jornal O Mundo distribuiu uma edição com as fotos dos jogadores e a frase “Estes são os campeões do mundo”. Pensava-se que era impossível o Brasil não ser campeão. “De repente aquela selecção endeusada, perfeita, invencível, tinha sido responsável por um grande vexame, um grande fracasso”, diz João Máximo, para quem a selecção brasileira “tinha jogadores brilhantes”. “Mas o Uruguai também tinha.”
Os jogadores de 1950 também defendem que começaram ali as grandes vitórias do futebol brasileiro. É certo que foi a primeira vez que o Brasil foi vice-campeão e oito anos depois ganharia o primeiro de cinco títulos. Mas a selecção de 1950 — todos os jogadores já morreram — carregou sempre o peso da derrota. “O som do Maracanã da Copa de 50 estará um dia amortecido”, mas algo não mudará, mesmo que a lenda deixe de passar de geração em geração, escreve Paulo Perdigão, em Anatomia de uma Derrota. “Continuará assim até ao final dos tempos: naquela tarde, aqueles jogadores brasileiros, diante daquela multidão, perderam a Copa do Mundo para sempre. Nunca mais o Brasil ganhará a Copa de 50”.