Uma experiência do mundo
Importante retrospectiva de Helen Mirra com a qual o espectador descobre laços inesperados
, de Helen Mirra (Rochester, Nova Iorque 1970), é exposição tomada pela escrita. Pede, por isso, ao espectador que se aproxime das obras, que saia do centro da sala, que coloque os olhos a um palmo das paredes e leia, em silêncio, ou num tom discreto, palavras (como
On deck, sailors sailors deck sailors across the water) ou frases (como
Slippy on rocky descent; Dirt road through open woods, moody green understory of Kumasaza). O repto à leitura não é um gesto inusitado na história da arte e das exposições, mas a frugalidade dos materiais, a aparência artesanal e a escala quase miniatural das peças surge na Culturgest como um choque. Num mundo que anseia, mais ou menos aborrecido, por
gadgets, por inovações, por crescimento,
Habitat de Transiçãosurge como estorvo, uma resistência. Não tanto porque a artista proclame explicitamente qualquer tipo de posição política, mas porque a obra se abre ao espectador enquanto experiência solitária do mundo, da natureza e da arte.
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, de Helen Mirra (Rochester, Nova Iorque 1970), é exposição tomada pela escrita. Pede, por isso, ao espectador que se aproxime das obras, que saia do centro da sala, que coloque os olhos a um palmo das paredes e leia, em silêncio, ou num tom discreto, palavras (como
On deck, sailors sailors deck sailors across the water) ou frases (como
Slippy on rocky descent; Dirt road through open woods, moody green understory of Kumasaza). O repto à leitura não é um gesto inusitado na história da arte e das exposições, mas a frugalidade dos materiais, a aparência artesanal e a escala quase miniatural das peças surge na Culturgest como um choque. Num mundo que anseia, mais ou menos aborrecido, por
gadgets, por inovações, por crescimento,
Habitat de Transiçãosurge como estorvo, uma resistência. Não tanto porque a artista proclame explicitamente qualquer tipo de posição política, mas porque a obra se abre ao espectador enquanto experiência solitária do mundo, da natureza e da arte.
A exposição, comissariada por Miguel Wandschneider, constrói-se como uma retrospectiva dos trabalhos feitos entre 1997 e 2005, com faixas de tecido de algodão (o suporte dos textos) e inclui, também, pinturas, desenhos, esculturas, uma peça de som e um livro. Entre os trabalhos, pesem embora as diferenças dos suportes, estabelecem-se sempre relações, conversas. Há um constante vai-e-vem, um reconhecimento de processos, de materiais e de soluções que se dá, e isto é importante sublinhar, depois de o espectador conhecer a exposição.
As faixas de tecido, expostas nas paredes, são um bom sítio para iniciar esse conhecimento. Estendem-se como finíssimas linhas irregulares, ora tingidas, ora dactilografadas, e “representam” mapas, experiências, paisagens ou filmes. Não há quaisquer esoterismos ou significados ocultos, sublinhe-se. As frases, os nomes das obras, as cores das faixas fazem alusões claras. Note-se, por exemplo, Guarda Florestal ou Curva de Rio. Na primeira, a linha de tecido alonga-se em tons de verde, a segunda em tons de azul. E há uma ideia de seriação, de movimento. As faixas aludem a pautas musicais de uma composição minimalista ou a um rolo estendido de película.
A série Hourly Field Notes (2010) é um dos trabalhos mais bonitos de Habitat de Transição. Como o nome indica, consiste em notas de campo, realizadas de hora a hora, também sobre faixas de algodão. Uma parte da fita foi coberta com aguarela azul, a outra metade descreve as acções, as situações ou os lugares que a artista registou durante os seus passeios no Japão. A presença da cor não é inocente: oferece sentido às palavras. Lendo-as, repetindo-as, o espectador é como que “transportado” para o nevoeiro, para os rios, para barco da viagem de Helen Mirra. A artista não procura, no entanto, representar ou mimetizar as suas experiências. Interessa-lhe mostrar a textura, o movimento, as cores, a materialidade dessas experiências, mas transfiguradas em obras de arte. Repare-se a propósito nas telas cujos títulos remetem para o índice de um livro de Robert Walser, construído pela própria artista. Não há qualquer ilustração, mas uma estranha imponderabilidade. Entre as frases e os monocromos surgem associações evidentes, mas algo se mantém misterioso, irredutível: a experiência individual do mundo e de uma obra de arte.
É ao constatar, com alegria, essa impossibilidade que o espectador descobre o seu laço mais forte com a exposição. Não será o único laço. Também o são a presença nobre e pobre dos materiais, a clareza dos objectos, o modo como os textos falam com o espectador (e põem o espectador a ler) ou a relação com o cinema, transformando em poesia (sobre as fitas de tecido) as acções visuais de The Navigator, de Buster Keaton, e de O Couraçado Potemkine, de Sergei Eisenstein.