O trabalho da morte
Neste novo livro de Herberto Helder, a poesia está do lado da exigência de tudo dizer. De dizer, antes de mais, o que faz estremecer os homens: a morte. Chamemos-lhe uma exigência inumana, também sobre-humana, para afastarmos do horizonte qualquer hipótese de, em qualquer momento do livro, haver uma porta de entrada para o humanismo — muito poético e muito tagarela — da morte amestrada. A morte sem mestre é outra coisa, é uma “porcaria obscena”, como dizia Bataille, autor que, juntamente com Sade, muito facilmente podemos fazer comparecer na leitura destes poemas. “Sade e Bataille, meus próximos”, seria uma epígrafe plausível para este livro, onde Herberto Helder parece ter radicalizado e gritado em voz alta uma prescrição que já tinha sido sussurada em Servidões, e que consiste em baixar a metafísica. Baixar a metafísica significa, neste caso, seguir as vias de um baixo materialismo e permanecer nesse nível de baixeza. Se pensarmos na elevadíssima entoação órfica a que acedeu desde o início a poesia de Herberto Helder, à altura de conceitos cheios de sublimidade como o de “poesia absoluta”, se pensarmos que ela permitia uma equiparação entre a metáfora e a metafísica, então é obrigatório reconhecer que estamos agora num mundo completamente diferente — um mundo que, inaugurando-se com uma invocação obscena, “Oh Anjo Príapo, oh Nossa Senhora Côna!”, tem no seu centro a dimensão burlesca da carne e do corpo. Até ao limite de um poema que fala da soberania de um “rei terrífico com voz política”: “tragam-me as putas todas, religiosas, profanas ou outras,/ o meu pénis tem o tamanho de um ceptro/ (e ergue o ceptro que tem cerca de metro e meio,/ e na verdade o sexo dele é até maior um pouco),/ traspasso-as da côna ao coração/ (e que mulher não tremeria de pânico e oculto gozo?),/ e assim passa ele o tempo e o medo e o mundo”. E, a seguir, este curto poema: “e eu que me esqueci de cultivar: família, inocência, delicadeza,/ vou morrer como um cão deitado à fossa!”.
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Neste novo livro de Herberto Helder, a poesia está do lado da exigência de tudo dizer. De dizer, antes de mais, o que faz estremecer os homens: a morte. Chamemos-lhe uma exigência inumana, também sobre-humana, para afastarmos do horizonte qualquer hipótese de, em qualquer momento do livro, haver uma porta de entrada para o humanismo — muito poético e muito tagarela — da morte amestrada. A morte sem mestre é outra coisa, é uma “porcaria obscena”, como dizia Bataille, autor que, juntamente com Sade, muito facilmente podemos fazer comparecer na leitura destes poemas. “Sade e Bataille, meus próximos”, seria uma epígrafe plausível para este livro, onde Herberto Helder parece ter radicalizado e gritado em voz alta uma prescrição que já tinha sido sussurada em Servidões, e que consiste em baixar a metafísica. Baixar a metafísica significa, neste caso, seguir as vias de um baixo materialismo e permanecer nesse nível de baixeza. Se pensarmos na elevadíssima entoação órfica a que acedeu desde o início a poesia de Herberto Helder, à altura de conceitos cheios de sublimidade como o de “poesia absoluta”, se pensarmos que ela permitia uma equiparação entre a metáfora e a metafísica, então é obrigatório reconhecer que estamos agora num mundo completamente diferente — um mundo que, inaugurando-se com uma invocação obscena, “Oh Anjo Príapo, oh Nossa Senhora Côna!”, tem no seu centro a dimensão burlesca da carne e do corpo. Até ao limite de um poema que fala da soberania de um “rei terrífico com voz política”: “tragam-me as putas todas, religiosas, profanas ou outras,/ o meu pénis tem o tamanho de um ceptro/ (e ergue o ceptro que tem cerca de metro e meio,/ e na verdade o sexo dele é até maior um pouco),/ traspasso-as da côna ao coração/ (e que mulher não tremeria de pânico e oculto gozo?),/ e assim passa ele o tempo e o medo e o mundo”. E, a seguir, este curto poema: “e eu que me esqueci de cultivar: família, inocência, delicadeza,/ vou morrer como um cão deitado à fossa!”.
A morte sem mestre, que se manifesta cruamente sem mediações nem idealizações, suscita o tema obsceno e jocoso, como nalguma poesia trovadoresca. E faz emergir a questão de uma “eloquência vulgar”, própria da comédia — e não da tragédia — da vida e da morte (De Vulgari Eloquentia, recordemos, é um título de Dante, quase um tratado sobre a commedia). E, retomando a alusão à poesia trovadoresca, talvez seja pertinente recordar que o “poema contínuo” herbertiano pode muito bem referir-se à oda continua da poesia occitana, que designava a estrutura métrica e musical de um canto, onde era impossível encontrar um ponto onde quebrar ou dividir a stanza. A Morte sem Mestre, apesar das divisões, pode ser lido como um poema único. Digamos assim: como o corpo das “fêmeas ininterruptas” (também esta assimilação do poema a um corpo se encontra na poesia trovadoresca). Há uma regra biopoética aqui formulada que está não do lado da vida, mas do lado do “trabalho artesanal da morte”: “filhos não te são nada, carne da tua carne são os poemas/ que escreveste contra tudo, pais e filhos,/ lugar e tempo,/ filha é aquela que despes dos pés à cabeça,/ perdendo os dedos nos nós que tem pelo cabelo abaixo,/ e só pelo desejo que te traz de viver ou morrer dela,/ desejo de ser o mesmo punho de cinza/ deitado à espuma nos extremos da terra,/ filha é a palavra carregada que arrancas aos dicionários quando dormem (…)”.
Os poemas são escritos “contra” todas as regras da bienséance e as disposições humanistas. Chegado a este livro, Herberto Helder mostra, com toda a clareza que o abaixamento da metafísica permite, o seu lado de poeta-energúmeno (não, isto não é um insulto), solitário, singular e sem família poética, tendo como únicos ascendentes os poemas escritos numa língua morta. O genial poeta-energúmeno concebe a poesia como uma forma aguda do Mal. E o Mal tem para ele um valor soberano. O Mal é o que dia-boliza o sím-bolo. Devemos, pois, levar muito a sério estes dois versos: “o poema agora por exemplo não tem simbolismo nenhum,/ morro dentro dele sem força para respirar”. E, perante este livro, muito desorientados se deverão sentir os leitores que não passam sem os bons ofícios simbólicos da poesia. O Mal é a força informe que trabalha a língua e lhe dá a sua violência; o Mal é o inumano que habita, como um fundo inapagável, o humano, é a sua miséria “natural”, a sua perversão polimorfa de criança mal-educada que resulta em poeta-energúmeno entregue à tarefa prostitucional da poesia. Este poeta do Mal, demoníaco, entrega-se ao trabalho da morte, com uma ira errante dirigida à sua época, e escreve o seu próprio epitáfio, em tom jocoso, no final de uma elegia: “e aqui jaz, acomodado, oitenta e três, parece que pelo/ menos sem grandes achaques físicos, o todo vosso/ burro com palha pouca e fora de uso, quer dizer:/ uma reforma de pilha-galinhas e poeticamente/ enterrado vivo (….)”.
Nota: Este livro é incomensurável, no modo como se expõe. No mais alto grau, não lhe servem nenhumas estrelas, mesmo que o critério seja o da comparação com livros anteriores do autor.