“Pelada”, “peladão”, “altinho”, "futevólei": a paixão do Brasil pela bola
O futebol é servido de várias maneiras no Brasil. Gente de todas as idades joga a qualquer hora. O que interessa é a bola rolar.
Na areia, na terra ou na relva, em qualquer hora e em qualquer lugar, o futebol tem um lugar especial no coração dos brasileiros. Juntar-se com os amigos à volta de uma bola é uma espécie de regresso semanal à infância, para usarmos a expressão do escritor espanhol Javier Marías. Homens de todas as idades, e também mulheres, fazem da "pelada" semanal um momento de pausa no stress. “A pelada não tem idade, sexo, tamanho. Joga o gordinho, o baixinho, o careca, o altão”, resume Sérgio Pugliese, autor de um blogue e de uma coluna no jornal O Globo sobre “peladas” e “peladeiros”.
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Na areia, na terra ou na relva, em qualquer hora e em qualquer lugar, o futebol tem um lugar especial no coração dos brasileiros. Juntar-se com os amigos à volta de uma bola é uma espécie de regresso semanal à infância, para usarmos a expressão do escritor espanhol Javier Marías. Homens de todas as idades, e também mulheres, fazem da "pelada" semanal um momento de pausa no stress. “A pelada não tem idade, sexo, tamanho. Joga o gordinho, o baixinho, o careca, o altão”, resume Sérgio Pugliese, autor de um blogue e de uma coluna no jornal O Globo sobre “peladas” e “peladeiros”.
O jogo semanal entre amigos é também muito comum em Portugal. A diferença, à vista desarmada, é que no Brasil esta tradição está mais disseminada. “Há ‘peladas’ a toda a hora. Há quem jogue antes do trabalho, outros usam a hora do almoço, outros jogam quando saem do emprego”, diz Pugliese. E há mesmo quem falte ao trabalho para dar uns toques na bola. “Conheci um cara que faltava a reuniões para ir jogar à bola. Quando publiquei a foto dele, quase perdeu o emprego”, conta o autor do blogue “A pelada como ela é”.
O PÚBLICO foi espreitar a “pelada” Lá Vai Álcool, organizada por Tatá e amigos. Este empresário, de 48 anos, arrenda uma casa com campo de futebol às quintas-feiras. A animação começa às cinco da tarde e acaba às cinco da manhã. É que o jogo é só uma parte do programa, que inclui muita bebida e uma roda de samba.
Bruno, de 35 anos, confessa que já saiu mais cedo do trabalho para jogar “pelada”. "Preguiça", um antigo jogador do União da Madeira, já saiu de casa ao meio-dia para atravessar a cidade e jogar uma “pelada” às sete da tarde. “A ‘pelada’ é tudo”, diz Maneco, de 58 anos, que já passou sábados a jogar das nove da manhã às seis da tarde.
Sérgio Pugliese já se cruzou com várias histórias de “loucuras”. Gente que foi jogar no dia do funeral do pai, no dia do casamento, na lua de mel, no dia do nascimento do primeiro filho. “Há outra história curiosa. Um policial estava no meio de um tiroteio, atrás de um muro de cimento, quando tocou o celular [telemóvel] dele. Viu que era o organizador da pelada em que ele costumava participar e atendeu, dizendo: ‘pode pôr o meu nome. Estou indo’”, conta Pugliese.
Para organizar uma “pelada” como a do Tatá é preciso gastar bom dinheiro. Mas na maioria dos jogos os custos são baixos ou nulos. No Aterro do Flamengo, há vários campos de relva sintética gratuitos. Normalmente, só nas horas de maior calor estão desocupados. Mesmo à noite, sucedem-se os jogos. “A ‘pelada’ é o nosso divertimento”, diz Nazareno, de 39 anos, quando questionado se no Rio de Janeiro não há melhor programa para uma sexta-feira à noite. Para eles não há e o jogo vale o sacrifício de voltar para casa de autocarro, bem depois da meia-noite. No aterro, costuma dizer-se que até há campeonatos de "garçons" de madrugada.
A paixão dos brasileiros pela bola não se limita aos campos de futebol tradicionais. A praia é outro dos locais de eleição. E aí até sobra espaço para inventar novos jogos. O “altinho” é uma dessas invenções brasileiras. Um grupo de amigos junta-se numa roda e tenta trocar a bola, sem a deixar cair. É isso que Matteo, estudante e “garçon” de 20 anos, faz com os amigos num fim de tarde em Copacabana. Jogam, pelo menos, uma vez por semana. Só é permitido jogar “altinho” perto da água antes das oito da manhã ou depois da cinco da tarde, para não incomodar os banhistas.
Uma proibição que nem sempre é cumprida e que, diz a lenda, resultou noutra invenção: o “futevólei”. “O ‘futevólei’ nasce porque o ‘altinho’ era proibido. Então, quando a polícia chegava, o pessoal pegava na bola e ia para a quadra [campo] de vólei e dizia que estava jogando vólei com o pé”, conta Paulo Cypa, treinador de uma escola de futebol e “peladeiro” que não dispensa o seu jogo semanal.
“O que importa é que haja ‘pelada’. Uma vez um amigo meu perguntou: o que é pior? Não ter quórum para jogar ‘pelada’ ou falhar na hora H na cama com uma mulher? E toda a gente foi unânime em responder que o pior é não ter pelada. É que depois só na semana que vem”, brinca Pugliese, para descrever o espírito do “peladeiro”.
“Peladão”, o "grito de liberdade"
A paixão pela bola não se limita obviamente ao Rio de Janeiro. Sábado à tarde, bairro do Peñarol, em Manaus, capital do estado do Amazonas. Algumas dezenas de espectadores estão sentados nas modestas bancadas do campo de futebol do bairro. O piso é de terra batida. Lá dentro, equipas de veteranos (mínimo 40 anos) disputam cada lance como se de uma final do Mundial se tratasse. O público grita com os treinadores, os treinadores gritam com os jogadores, os jogadores gritam com outros jogadores, todos gritam com o árbitro.
“É normal ter discussão. Dentro do campo há rivalidade, ninguém quer perder”, haverá de dizer no final Marcelo, jogador do bairro Madeira, confessando que lá dentro volta aos tempos de criança. “A gente se sente como se fosse novo, tendo a disponibilidade de estar aqui brincando, de estar bem com a vida.”
Este jogo é apenas parte de um campeonato de bairro. Mas a certo ponto parece algo em que se joga a vida e a morte. “É uma loucura. Fui operado há um ano ao coração e estou à beira do campo... Isso aqui é a minha vida”, diz Donga, de 57 anos, motorista de profissão, mas treinador por paixão. Esteve um ano afastado, mas não resistiu ao apelo do futebol.
E se neste jogo a intensidade é tão alta, como será no “Peladão” de Manaus, considerado o maior campeonato amador do mundo? Dizem que é o campeonato que todos querem jogar na Amazónia. Como os futebolistas profissionais estão proibidos de participar, há jogadores que abdicam de ser profissionais para jogarem os seis meses de “Peladão”, entre Junho e Dezembro. Até ganham mais, conta-se nos bastidores.
O “Peladão” é disputado por mais de 600 equipas, em seis escalões: masculino, feminino, veteranos masculinos, menores masculinos, e povos indígenas masculinos e femininos. “Não existe exclusão social, nem classe social. É do rico ao mais pobre. Do que anda de paletó e gravata até ao que pisa no chão”, diz Arnaldo Santos, jornalista e organizador deste campeonato que tem mais de 40 anos. Em paralelo, há também o concurso de beleza, a rainha do “Peladão”: cada equipa tem de apresentar uma candidata, cujo desempenho pode ajudar a repescar uma equipa já eliminada.
É um fenómeno este “Peladão”. Os jogos das equipas profissionais de Manaus não atraem, em média, mais do que 2000 ou 3000 pessoas. As fases decisivas deste campeonato amador são vistas por milhares. Em 2009, pouco antes de o Estádio Vivaldo Lima ser demolido para dar lugar a um novo recinto para o Mundial de futebol deste ano, mais de 40 mil pessoas encheram as bancadas para ver a final do Peladão.
Este campeonato é feito de histórias mirabolantes. Cobras dentro de campo, árbitros que recorrem a pistolas para se defenderem de agressões, equipas pagas por traficantes, ameaças de morte e até rumores de homicídios Será verdade? Arnaldo Santos encolhe os ombros e responde na sua voz forte de radialista: “Qual é o encontro de culturas em que não tem confusão? Há infiltração de todos os segmentos da sociedade e vamos tentando convencê-los da necessidade de cidadania.”
Arnaldo Santos fala ao PÚBLICO na sede do “Peladão”, um pequeno edifício no centro de Manaus. Primeiro, mostra-nos os arquivos com os milhares de fichas dos jogadores que participaram no último campeonato. Oferece-nos um livro de 300 páginas, com dados de um dos últimos campeonatos. Lá estão os nomes de todas as equipas (Amigos do Tinga, Cometão, Estalo FC, Redenção, Sorriso e Turma do Pagode são alguns deles), o regulamento, os resultados, as classificações. E também uma longa lista de atletas e equipas que constam do livro negro e estão excluídos do campeonato, quase todos pelo mesmo motivo: agressão ao árbitro.
Depois, Arnaldo Santos continua a conversa numa sala cheia de bolas coloridas — é que neste campeonato, os cartões não são penalizados com multas, mas sim com o pagamento em bolas, que depois são dadas a crianças necessitadas. “Se você encontrar uma criança na rua, e fizer um afago, ela vai olhar para você e dificilmente sorri; se der um bombom, ela vai sorrir um pouco, mas se der uma bola ela vai sorrir muito mais, vai correr atrás da bola, é o mundo da felicidade para ela.”
Os olhos de Arnaldo brilham ao falar deste seu projecto e da paixão pelo futebol, esse jogo que nunca soube jogar e que, por isso, prefere relatar, porque “cada transmissão pela rádio é uma história que a gente conta”. Aos 75 anos, o dom da palavra permite-lhe dar uma definição de “pelada” que nenhum dos que jogam foi capaz de verbalizar: “O ‘Peladão’ é um grito de liberdade. No fim-de-semana, alguns que não sabem o que vão comer na segunda-feira, entram em campo e vivem. Ficam felizes porque participam numa competição em que são valorizados, onde existem, onde são mais gente do que muita gente que existe por aí.”