Wayne Shorter Quartet e as pegadas de um titã
A temporada do Verão na Casa ainda agora começou mas já recebeu a fúria gentil de uma lenda viva. Numa sala Suggia repleta, o compositor lendário juntou compostura e devaneio
Nada na noite de 8 de Junho evocava o nome da temporada — o ar estava fresco, levantava-se uma brisa desconfortável e a audiência que se abrigava na Casa da Música compareceu com várias camadas de roupa. A única coisa que nos lembrava que era Verão na Casa era a (pouca) luz natural que entrava pelas janelas da sala Suggia quando Wayne Shorter deu os primeiros passos no palco.
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Nada na noite de 8 de Junho evocava o nome da temporada — o ar estava fresco, levantava-se uma brisa desconfortável e a audiência que se abrigava na Casa da Música compareceu com várias camadas de roupa. A única coisa que nos lembrava que era Verão na Casa era a (pouca) luz natural que entrava pelas janelas da sala Suggia quando Wayne Shorter deu os primeiros passos no palco.
Com o andar confiante mas cauteloso de um gato de grande porte, Wayne Shorter tomou o seu lugar ao centro de uma composição completada pelo piano de Danilo Perez, o contrabaixo de John Patittuci e a bateria de Brian Blade. Entre o quarteto e o público estava estendido um tapete persa que não só compunha o palco, mas garantia alguma margem de segurança dentro das experiências em instabilidade a que a audiência ia ser submetida.
Wayne Shorter, já octagenário, estaria na idade para conduzir concertos de antologia — tour compostas de hinos e de recolha de carinho. Mas isso não é de todo o fito de uma lenda construída na composição — ainda em 2013 Shorter regressou à venerável editora Blue Note com "Without a Net", um tento na inspiração mais do que na entronização.
O “set” abriu com ponderação e gestos delicados, cabendo ao piano de Perez desenhar um fio narrativo à volta do qual Pattituci gesticulava linhas de baixo deambulantes. Já aqui a bateria de Blade parecia arreganhar dentes, mesmo quando as estruturas pareciam não lhe dar espaço para isso. Com a precisão de um mestre, Wayne Shorter lançava trejeitos pontuais brevíssimos que guiavam o seu séquito numa ou noutra direcção. Nesta altura ainda tocava o sax tenor, o instrumento de parto da carreira.
Finda esta primeira parte, e as personagens em palco apresentadas, foi com deleite que a audiência viu Wayne Shorter pousar o reluzente saxofone tenor e pegar no pálido soprano sax. Aqui toda a linha do concerto adensa: o que antes era uma coreografia de respeito mútuo entre quatro vozes dá lugar a arcos de agressão organizada. O improviso imperou, algures entre os mergulhos do piano de Perez e a — agora completamente desancorada — fúria da bateria de Blade. O baterista, por vezes com a cumplicidade do contrabaixista — teimava em incendiar frases a meio, em impedir que a poeira soprada por Shorter assentasse.
Tudo isto transpirava cumplicidade. Por mais fugas de órbita que houvesse, o centro nunca era perdido e a aterragem era partilhada por quatro vozes que soavam a uma. Apenas um encore, como é próprio de um músico com a humildade descabida de Shorter. E o Verão na Casa, contando com apenas uma semana, já assegurou um dos seus pontos mais altos.