Escola de futebol, escola da vida

O futebol faz parte da vida das favelas brasileiras, onde os meninos sonham ser jogadores. O professor Cypa incentiva os seus alunos a sonhar enquanto os prepara para a realidade. Sempre com a bola como aliado

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O professor está sentado num banco de cimento. À sua volta, no chão, quase duas dezenas de rapazes ouvem atentamente aquele homem de camisola amarela e calção verde.

— “O segredo para evoluir na vida é ler”, diz o professor, perguntando de seguida aos alunos: “Vocês já leram alguma coisa este mês?”

— “Eu li gibi [banda desenhada]”, responde um.

— “Eu li um livro sobre Mandela”, diz outro.

Os restantes ficam em silêncio, deixando ouvir os pássaros pousados nas árvores que rodeiam o campo de futebol, no topo do morro Dois Irmãos, um espaço paradisíaco no meio de duas favelas.

— “É isso aí”, continua o professor. “No livro você viaja, é um filme em que você pode voltar atrás. É muito importante ler.”

Os rapazes estão cansados após duas horas de treino. Alguns já tiraram as camisolas, outros as chuteiras. Entretêm-se a mexer nas meias ou no chão. Mas ainda sobra um pouco de concentração para ouvir a palestra de Paulo Cezar Bento, conhecido como Cypa. “Se vocês forem jogadores de futebol, o que vão fazer depois dos 30? Vão morrer de fome?”, pergunta o professor, que há 26 anos criou esta escola de futebol nas favelas do Vidigal e Chácara do Céu, na zona Sul do Rio de Janeiro. Os rapazes respondem com sorrisos à pergunta provocatória.

Antes da palestra, estes miúdos entre os cinco e os 19 anos estiveram duas horas a fazer o que mais gostam: jogar futebol. Correram e saltaram. Fizeram fintas, agarraram-se uns aos outros e marcaram golos. Abraçaram-se, gritaram e discutiram. O facto de o campo ser de terra não os incomodou. Muito menos trocam a bola pela praia, apesar da manhã de sol e de o mar estar ali tão perto, ao fundo do morro.

Nessas duas horas dentro do campo, foram expansivos e guerreiros, como se lutassem pela vida. Depois, à frente da câmara e do jornalista, foram mais introvertidos, embora a timidez não os impedisse de confessar a paixão pelo futebol. O que fazem aqui? O que querem ser? Bryan, cinco anos: “Gosto muito de jogar à bola.” Wallace, 14: “Estou aqui há dois anos. Gosto de jogar à bola. O meu sonho é jogar futebol.” Pietro, 16: “Estou desde os dez anos nesta escola. Quero ser jogador ou fazer algo relacionado com esporte.” Yuri, 17: “Estou aqui desde os sete ou oito anos. Quero ser jogador. Se não for jogador, ainda não sei o que quero ser.”

O gosto pelo futebol e o sonho de ser futebolista (rico e famoso) é o que os atrai para estas aulas, duas ou três vezes por semana. Mas o professor Cypa quer dar-lhes mais do que isso. “O futebol é só a armadilha. Eles acham que vêm aqui só para jogar futebol. Aí, a gente fala de educação, saúde, sexo, droga. Na verdade, é uma escola da vida e o futebol é só mais uma matéria”, diz Paulo Cypa, de 46 anos, que recebeu a Revista 2 no campo da Chácara do Céu, um dos dois em que dá aulas — o outro fica ali perto, no Vidigal, a comunidade onde vive desde criança.

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A escola de futebol fica nas favelas do Vidigal e Chácara do Céu, na zona Sul do Rio de Janeiro

Paulo Cypa criou a escola por causa do que passou quando era miúdo. A mãe usava drogas e morreu quando ele tinha dois anos. O pai foi embora. Foi criado pela avó, juntamente com o irmão, que foi assassinado aos 17 anos, envolvido no tráfico de droga. Em 1988, achou que era preciso fazer alguma coisa. “As crianças estavam-se envolvendo com muita coisa errada, vendo coisas que não deviam e então resolvemos criar um espaço para essas crianças se juntarem e aprenderem coisas boas”, explica Cypa, que aos 25 anos ficou sozinho, quando a avó morreu: “O que mais me motivou a fazer isso aqui foi ver que podia ajudar as crianças a não passarem o que eu passei. Quis criar um porto seguro onde essas crianças possam ser recebidas, ouvir uma mensagem legal e praticar um esporte legal.”

Num país desigual, numa cidade violenta, num bairro complicado, Cypa teve de sobreviver fazendo um pouco de tudo: “Quem nasce na comunidade tem de se virar.” Ajudou a carregar materiais e foi servente nas obras, até conseguir um lugar como auxiliar administrativo na Universidade Católica do Rio de Janeiro. E nesta “vida difícil” o futebol foi a “válvula de escape”, algo sempre presente: “A minha vida é bola o tempo todo”, garante. Paulo chegou a jogar nas camadas jovens do Flamengo, o maior clube brasileiro, e foi profissional nas divisões secundárias, mas percebeu que era uma “ilusão”. Preferiu estudar e há três anos formou-se em Educação Física. Agora ganha a vida como professor, nesta escola integrada no projecto social de Zico, ex-futebolista brasileiro.

O Vidigal é uma das favelas pacificadas do Rio de Janeiro. O táxi não se recusou a levar-nos ao campo da Chácara do Céu, paredes meias com o Vidigal, e a manhã foi tranquila. Apesar de a situação ter melhorado, os perigos não desapareceram. E, por isso, o professor destaca a importância de “ocupar a cabeça” dos jovens. “Normalmente, eles vão para as coisas erradas quando não têm nada que fazer. Se você não tem nada para fazer, faz besteira”, argumenta Cypa no final de mais uma aula, enquanto alguns dos seus alunos folheiam o jornal, sentados em bancos de cimento. O professor sorri, orgulhoso, e lembra que é obrigatório os seus alunos estudarem. “Se ainda não estiverem na escola, eu pessoalmente consigo vaga. E eles trazem as notas para eu conferir mensalmente”, explica. “Quem não for bem na escola, não participa na competição” — o campeonato de favelas, onde eles querem mostrar que podem ser o próximo grande craque do Brasil, qual Neymar ou Ronaldinho.

Enquanto alguns dos alunos preferem brincar com a bola em vez de ir almoçar, Cypa vai explicando o seu projecto. Fala com a naturalidade de quem está habituado a câmaras. Foi um dos protagonistas do documentário Copa Vidigal (2010), de Luciano Vidigal, um dos colaboradores de Fernando Meirelles no filme A Cidade de Deus.

Copa Vidigal é sobre o tempo em que o bairro tentava curar as feridas de uma guerra entre traficantes da Rocinha e do Vidigal. Em 2005 e 2006, aquela favela, como outras, parecia o Iraque. Quase todas as noites havia tiroteios. Essa, aliás, é a cena inicial do documentário de Luciano Vidigal, realizador que nasceu na comunidade que tem o seu apelido.

No final de 2007, a situação acalmou e Cypa organizou a “Copa Vidigal — Jogando pela paz”, com equipas (de adultos) de várias favelas. O campeonato foi um sucesso e deu origem ao documentário, centrado naquela competição e em duas personagens: Nélio, um ex-futebolista do Flamengo, dono de um negócio de cadeiras na praia, e Thiago Beição, um jovem guarda-redes que em 2007, quando o documentário começou a ser filmado, ambicionava ter uma carreira como profissional, e que em 2010, quando o filme foi finalizado e lançado, já estava resignado com a impossibilidade de o ser.

Já perto do final do torneio, Cypa apanhou um grande susto: um homem ligado ao tráfico apostou cinco mil reais (1600 euros) num dos jogos e perdeu a aposta. Como o professor tinha sido o árbitro, ameaçou-o de morte. “O cara queria me matar. Foi complicado”, conta Cypa, que durante uma semana ficou fechado em casa, com medo do que poderia acontecer. “Na semana seguinte, o cara converteu-se [a Deus]. Não sei o que se passou, mas algo tocou naquela cabeça e a minha vida melhorou”, conta o professor, que só voltou a sair de casa depois de saber do pedido de desculpas do homem.

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Paulo Cezar Bento, conhecido como Cypa, criou há 26 anos uma escola que é frequentada por meninos entre os cinco e os 19 anos

O documentário Copa Vidigal não foi a única experiência cinematográfica de Cypa. Também foi entrevistado para o documentário Pelada — Futebol na Favela, de Alex Miranda, lançado no final de 2013. Este é um filme mais global, sobre o papel do futebol nas comunidades mais pobres do Rio e de São Paulo, embora muitas ideias coincidam com aquilo que Cypa faz no Vidigal.

“O futebol tem um papel agregador dentro da periferia. Os comandantes dos times [equipas] tiram as crianças do tráfico e levam elas para treinar nos campos de terra. Daí saem os grandes craques como Romário, Neymar e Ronaldo”, diz à Revista 2 o realizador Alex Miranda, que teve a ideia de fazer esse documentário depois de uma conversa com o ex-internacional brasileiro Ronaldo “Fenómeno”, que manifestou o desejo de contar algumas histórias da sua infância — uma delas era como em pequeno costumava pagar pastilhas elásticas com um papel assinado “Ronaldo 9”: “Um dia isso vai valer muito dinheiro”, dizia ao vendedor.

Ronaldo e Neymar, actual jogador do Barcelona e da selecção brasileira, são dois dos protagonistas do documentário. Contam como também já foram meninos a jogar em campos de terra e a sonhar com um futuro como futebolista, tal como os alunos de Cypa e milhares de outros meninos nas favelas brasileiras. “Muitos dos grandes jogadores vieram desse universo”, resume o português Victor Lemos, produtor executivo do Pelada — Futebol na Favela, fazendo uma comparação curiosa: “Em Portugal, diz-se que se não foste à tropa, não és homem. Aqui, é se não jogas 'pelada', não és homem. A 'pelada' é uma máquina de formar indivíduos e os treinadores são uma espécie de guias.”

Cypa sabe que esses meninos vão dar tudo para ser futebolistas. Em mais de 20 anos, alguns dos seus alunos conseguiram ser profissionais, como Rafael (Avaí) ou o guarda-redes Pais, que já passou por Portugal (jogou no Beira-Mar). “Mas o nosso objectivo não é formar futebolistas”, garante o professor. “É formar o cidadão. Se ele sai daqui sendo um bom chefe de família, um bom pai, um cara responsável, a gente já fica satisfeita”, acrescenta, revelando que é frequente dar o exemplo do Maradona para mostrar que “não basta ser grande jogador”: “Tem de ser grande homem.”

A favela do Vidigal está na moda. A UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) trouxe mais alguma tranquilidade, diz Cypa. “Melhorou bastante. Ainda não é o que a gente queria. Mas não se vê armamento pesado, as pessoas sobem na comunidade, montaram negócios como restaurantes. No Vidigal, até já tem um hotel cinco estrelas”, conta o professor. O rapper Kanye West e o futebolista David Beckham terão mesmo comprado casa na comunidade.

A moeda da pacificação, no entanto, tem duas faces. Os tiros acabaram (ou passaram a ser menos frequentes), o tráfico de droga diminuiu, a economia da favela floresceu. Por outro lado, o campeonato de "pelada" (como a Copa Vidigal) deixou de existir (“o tráfico sempre foi muito ruim, mas ajudou a gente, dando bola e pagando o juiz [árbitro]”, admite Cypa) e a “chegada da UPP fez subir muito o custo de vida na comunidade”. As rendas das casas são mais altas, porque há mais procura dos estrangeiros; o preço da comida subiu; as famílias tiveram de abandonar o “gato” (puxadas ilegais de electricidade) e agora pagam a conta da luz e água. “Então rola a questão do endividamento e força o menino a trabalhar muito mais cedo”, explica.

Haver menos tráfico de droga não fez desaparecer todas as dificuldades. “Conseguimos tirar alguns [meninos] do tráfico. Agora os problemas são que não querem estudar, querem levar vida mais fácil”, diz Cypa, enumerando a gravidez na adolescência como outra das questões de que fala frequentemente aos seus alunos, incluindo a turma feminina. “Ainda hoje falámos das doenças sexualmente transmissíveis”, acrescenta o professor, admitindo que faz um pouco o papel de pai deles. “Gosto de fazer com que eles se abram. São adolescentes. Consideram-se imortais, não ficam doentes, se acham super-heróis e sei que não se abrem em casa, porque os meus filhos são assim.”

Pietro, de 16 anos, um dos alunos de Cypa, confirma. “Sou meio fechado, não costumo falar com ninguém. Mas, quando tenho de falar de coisas sérias, converso com Cypa, porque ele me ajuda”, diz este rapaz, que mora no Vidigal com a mãe e o irmão. E serão as palestras uma seca? Não, responde Pietro, sorrindo. “Não fica chato, porque ele sempre dá uma ‘brincada’.”

Cypa gosta de liderar pelo exemplo. Usa situações da sua vida para convencer os alunos da bondade dos seus conselhos. A meio da palestra a que a Revista 2 assistiu, recorreu ao caso de uma discussão entre ele, adepto do Botafogo, e um amigo da filha, adepto do Flamengo, sobre quem era melhor: Zico (ídolo do “Fla” nos anos 1980) ou Garrincha (o génio do Botafogo nos anos 1950

60)? “Perguntei-lhe quantas Copas tinha vencido o Zico. Ele disse que não sabia”, conta o professor. “Eu respondi: nenhuma”, acrescenta Cypa, formando um zero com os dedos. “O Garrincha ganhou duas.” E mostra dois dedos, perante o olhar atento dos rapazes, sempre interessados em conversas sobre futebol.

O exemplo parece conversa de crianças. O objectivo de Cypa era mesmo esse: chamar os alunos para um terreno que conhecem até poder apresentar a moral da história. “Não se pode discutir sobre um assunto que não se domina. Sem informação, você não chega a lugar nenhum”, diz o professor aos alunos, insistindo constantemente na obrigatoriedade de estudar, na necessidade de ter objectivos e no direito a ter sonhos na vida. “Para quem não sabe onde quer chegar, qualquer vento serve”, diz ele aos alunos, antes de descer o morro rumo ao mar, por um caminho estreito, de onde se vislumbra uma praia magnífica: “Eu estou correndo atrás de um sonho: é ser feliz.”     

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O objectivo "não é formar futebolistas. É formar o cidadão", diz o professor