A graça que o mundo tem

Dois escritores com muitos pontos em comum: livros, identidade, a vida secreta das plantas, a guerra. Entrevista de Anabela Mota Ribeiro

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São criaturas de fronteira.

Mia Couto, nascido António, em Moçambique, já disse de si: “Sou um branco que é africano; um ateu não praticante; um poeta que escreve prosa; um homem que tem nome de mulher; um cientista que tem poucas certezas na ciência; um escritor numa terra de oralidade.”


José Eduardo Agualusa é um “angolano em viagem, quase sem raça”. Se a raça vier do ar e do chão, é da raça dos pássaros e das árvores.

São amigos há tanto tempo que parece uma amizade de sempre. Têm percursos quase coincidentes, apesar da especificidade das suas histórias e da dos seus países. Mia nasceu em 1955, Agualusa em 1960.

Nesta semana, Agualusa lançou o romance histórico Rainha Ginga — E de como os Africanos Inventaram o Mundo. Mia fez a apresentação.

A entrevista foi na casa de Agualusa. Mia, não surpreendentemente, estava em casa. É preciso dizer que se riem muito. Um do outro, de si próprios, de imbecilidades (a palavra é deles). Os risos são muito mais recorrentes do que aqueles que são anotados no texto. Porquê? Deve ser da graça que encontram no mundo. (Graça no dicionário: mercê, benefício, dádiva; benevolência, estima, boa vontade; beleza, elegância.)

Qual é a palavra de que mais gosta em quimbundo? Pode ser pela sonoridade ou pelo conteúdo.
Agualusa — Sou da zona do umbundo, o Huambo. O quimbundo tem uma tradição escrita que o umbundo não tem. Ainda cheguei a aprender quimbundo. É mais fácil responder em umbundo: ombembua. Significa “paz”.

O som de ombembua faz-me pensar numa nuvem.
Mia — Flutua.
Agualusa — É uma língua inventada pelos pássaros.
Mia — É piado.

Mia, o biólogo e inventor de palavras, fala a língua dos pássaros? Qual é a palavra de que mais gosta num dialecto moçambicano?
Mia — Estou a aprender aquilo a que presunçosamente chamaria “a língua da vida”. O que me apaixona na Biologia é a parte linguística, não é a parte científica. No sentido de decifrar códigos. Há linguagens que estão ali, presentes, e a gente está surda. E cega.

Por exemplo.
Mia — Fui-me apercebendo com mais clareza como é que as plantas dizem coisas. Têm de as dizer porque têm relações simbióticas com pássaros, com morcegos, por causa da polinização. Quando um fruto muda de cor, está a dizer que aquele é o momento. Está a falar connosco. Isso, o cheiro, são formas de diálogo.
Agualusa — O fruto é mesmo para ser colhido e disseminado. Diz: “Vem comer-me e propaga-me.” Concordo com o Mia. Pensamos que as coisas estão ocultas, os grandes segredos, e está tudo à luz do sol. Não somos capazes de ver. As crianças muitas vezes vêem.

Os adultos não vêem?
Agualusa — Nalguns casos, vêem à medida que envelhecem. As crianças vêem o evidente. Costumo contar uma história da minha filha, de quando era bem pequenina. Uma senhora fez-lhe uma pergunta muito idiota. “De que raça és tu?” Ela não entendeu. Não tinha sequer o conceito de raça. A senhora tentou corrigir a pergunta, errando ainda mais. “De que cor és tu?” A minha filha olhou muito espantada. “Mas tu não vês que sou uma menina? As meninas são pessoas. As pessoas têm cores diferentes. A minha língua é vermelha, os meus dentes são brancos, o meu cabelo é castanho.” Temos todas as cores. É preciso uma criança de quatro anos para dizer o óbvio.

Como é que perdemos a capacidade de ouvir, ver, ler o mundo? Tem que ver com a perda da inocência? Junto a experiência do medo. Eram muito jovens, um e outro, quando viveram a guerra dos vossos países. Não consigo imaginar o que é ter 15 anos e ter a guerra a rebentar à porta. Ou 22.
Agualusa — Éramos mais novos. Eu nasci com a guerra, em 1960.

A guerra fratricida começa mais tarde, quando está na adolescência. Aquela que está lá, antes disso, é a guerra colonial.
Agualusa — Tenho a noção da presença da guerra no meu quotidiano desde sempre. A questão é essa: quando temos desde sempre, também olhamos para a guerra de uma outra maneira. O meu pai trabalhava nos caminhos-de-ferro.
Mia — O meu pai também.
Agualusa — O meu pai começou a dar aulas às populações ao longo da linha do caminho-de-ferro. Tinha um vagão especial, com uma sala de aulas.

Como era o vagão?
Agualusa — Muito bonito. A companhia era inglesa, vagões em mogno, com salões, quartos. Tinha um quarto para mim e para a minha irmã, com beliches. Havia um cozinheiro, uma cozinha, sala de jantar. Nas férias, acompanhávamos o meu pai. Lembro-me muito bem de o comboio ser atacado. Várias vezes. Descarrilavam os comboios, et cetera. O caminho-de-ferro de Benguela era a principal empresa, na época. Portanto, um interesse estratégico. Tu deves ter sentido o mesmo.
Mia — Sim.
Agualusa — Toda a minha infância teve a guerra como pano de fundo. Não estava dentro das casas. Estava ali ao lado.
Mia — A guerra que não está ao lado de casa chega através de vozes e de histórias. Coisas que assumem um carácter ficcional. Com nove anos, ouvia falar do que se passava na guerra de libertação nacional.

Além da guerra, estava lá desde sempre o quadro colonial.
Agualusa — A violência, a injustiça colonial... Se eu, uma criança privilegiada, fui afectado por isso (são memórias que tenho até hoje), imagino o menino...
Mia — ... que sofria do outro lado do muro.
Agualusa — Custa-me muito ouvir um certo saudosismo colonial. O discurso do retornado com saudade de África. Como se fosse um paraíso intocado.
Mia — Como se fosse diferente. [Porque] “os portugueses nunca fizeram como os outros”.
Agualusa — Era uma sociedade profundamente distorcida, e só não via quem fosse completamente cego. Era explícito para uma criança de poucos anos.

Não era preciso que lhe explicassem ou chamassem a atenção?
Mia — Não.
Agualusa — Estava exposto. Era obsceno.
Mia — O sentimento de inocência, ali, perdia-se rapidamente.
Agualusa — Antes da guerra, percebíamos a violência colonial, a injustiça colonial.

Era uma discriminação de que tipo, para começar?
Agualusa — De todo o tipo. O colonialismo é feito com pessoas. Pessoas boas e pessoas más. Os sistemas maus puxam pelo pior das pessoas. O sistema colonial é um sistema de dominação. Se não, não é um sistema colonial. E a qualquer reacção, a pessoa era considerada terrorista. Ouvi “terrorista” ou “turra” contra pessoas que não eram nem estavam ligadas ao movimento nacionalista. Eram simplesmente pessoas que contestavam uma injustiça.

Conte-me da sua experiência em Moçambique.
Mia — É muito semelhante. Vivia numa cidade, que, sendo a segunda de Moçambique, era pequena. Na Beira, esse carácter colonial estava tão à flor da pele que ninguém teve de me explicar nada. Quando tenho consciência do mundo e tenho de tomar partido, já sabia quem eu era e o que é que ia fazer.

Militou na Frelimo muito cedo.
Mia — Quando vou para a universidade, com 17 anos, sabia que não ia estudar. Sabia que ia aderir ao movimento de libertação nacional. Não porque tivesse sido doutrinado. Mas por aquilo que vivi. Sabia que queria fazer uma ruptura completa com o passado. Devo dizer uma coisa: fui muito feliz nesta infância. Tive uma infância infinita.

Como é que se inventa esse espaço para a felicidade?
Agualusa — Porque se cria. Porque as coisas acontecem assim. Mesmo durante o período de maior violência, pode-se ser feliz. Também fui muito feliz na infância.
Mia — Imagina que era outro tipo de violência... O espaço da minha casa era de grande afecto.
Agualusa — O da minha casa, também.
Mia — Se calhar era pior ter a experiência da violência interna, dentro de casa.
Agualusa — Com certeza. Fui muito protegido. Tive uma família sem... história.

Parece uma coisa terrível, uma família sem história. E afinal não.
Mia — Antes isso do que uma história sem família.

Já voltamos à felicidade na infância. Antes: sentia discriminação pelo facto se ser branco?
Mia — Sim. Havia várias discriminações. Na cidade, circulavam autocarros. Na África do Sul, estava escrito “Negros/Não Negros”. Ali não estava escrito, mas era assim que se vivia. Não era preciso escrever. Estava escrito dentro da cabeça das pessoas. Sabia-se que um negro nunca podia sentar-se no banco da frente. Havia um banco traseiro, corrido, que era o lugar onde ficavam os negros. Outra discriminação: não havia “os brancos”. Havia os brancos de primeira e os brancos de segunda. Os brancos de segunda (era o meu caso) nunca poderiam chegar a chefe da função pública.

Tinha que ver com dinheiro e status, essa discriminação?
Mia — Tinha que ver com nascimento, com os que já nasciam na colónia. Esses eram os brancos de segunda classe.
Agualusa — Isso chegou a ser uma coisa instituída. Havia os assimilados, os brancos de segunda, os brancos de primeira.
Mia — Os assimilados eram portugueses de pele preta.
Agualusa — Era uma coisa horrível! A pessoa tinha de provar que comia de garfo e faca.
Mia — Além das boas maneiras, tinha de ser católico, monógamo.

A marca do dinheiro era notória? Havia colégios em Moçambique frequentados por portugueses brancos e goeses. A distinção aí não era em função da cor.
Mia — Mesmo entre os goeses havia uma discriminação enorme. O goês tinha direito a pertencer a um certo clube social em função da sua casta. Havia vários clubes. Bastava dizer: “Sou do clube indo-português”, e sabia logo qual era o estatuto social daquele fulano.
Agualusa — É legítimo pensar (é o pensamento comum) que em Moçambique havia mais discriminação (não instituída, mas havia) do que em Angola?
Mia — Não sei comparar, mas acredito que sim. Por causa da influência directa da África do Sul e da Rodésia.

Um momento de felicidade da infância: que é que primeiro vos ocorre?
Agualusa — Não tive momentos. Tive imensos momentos. Tinha um quintal enorme. Cães. Brincava muito sozinho. Inventava mundo sozinho. O meu espaço de felicidade era esse quintal. Além disso, a minha casa era o limite da cidade. À frente, não havia nada. Vivi nesse infinito. Fui uma criança com um pé no asfalto e um pé no mato.
Mia — Sabes, a varanda colonial que circundava a casa e que fazia a transição? Nunca percebi bem o que era o dentro e o fora. Havia uma porta de rede, batente. Sabíamos que saímos de casa porque ouvíamos aquela porta bater. Nunca percebíamos se estávamos dentro ou fora. Foi uma coisa muito mágica.

Isso dura até quando? O que caracteriza essa noção de infinito, o não haver barreiras, é a ausência de medo, de ameaça. Ou não?
Mia — Ausência de medo é uma coisa que funciona bem para caracterizar aquilo. Não?
Agualusa — Não estou seguro. A minha filha diz-me uma coisa sobre o ser criança. Primeiro, há sempre alguém que manda em nós. Crescer é deixar de ter alguém a mandar em nós. Ou ter menos pessoas a mandar em nós. Diminui a cadeia de comando. A outra coisa é o medo. O medo está muito presente nas crianças. Vamos perdendo medos à medida que crescemos. Não?
Mia — Vais mudando de medos.
Agualusa — Não sei se não vais mesmo atenuando os medos.
Mia — Tínhamos medos. É melhor confessar!
Agualusa — Tínhamos medos e éramos felizes!
Mia — Eram medos domesticáveis. Medo do escuro. Vinguei-me quando fiz um primeiro livro para crianças [O Gato e o Escuro]. O medo cumpre a função de primeiro grande conselheiro.

Não entendo.
Mia — Precisamos de ter medos porque os medos nos conduzem. É um alerta, um sistema de avisos. O problema é quando os medos nos dominam, nos paralisam.
Agualusa — Tive uma professora especial, de uma família nacionalista, uma senhora de grande coragem. Não tive de aprender a geografia ou a história portuguesas. Não tínhamos Salazar na parede. Estudávamos poesia angolana. Ela criou o seu próprio programa de ensino. Em contrapartida, era muito violenta. Vivia no terror de ir ao quadro. Passámos tormentos que hoje seriam impossíveis.

Fez alguma redacção, para essa professora ou outra, de que se lembre especialmente? Em relação à qual tenham dito: “Que bem escreve.”
Agualusa — Não tenho a menor ideia. Era considerado um mau aluno. Estava na chamada fila dos burros irrecuperáveis.

Nunca teve essa ideia de si próprio, pois não? A sério.
Agualusa — Não me achava muito inteligente. A minha irmã era muito mais inteligente do que eu. Fazia tudo mais depressa, melhor.
Mia — Eu também vivi essa situação.

Estão a fazer género, os dois.
Agualusa e Mia — Não! [gargalhada]
Agualusa — Fui melhorando. Eu era feliz em casa. E inventava.

Inventava dentro da sua cabeça ou já escrevendo alguma coisa? Quando pergunto por uma redacção, tento compreender quando estabelece uma relação com a palavra escrita.
Agualusa — Mais tarde, muito mais tarde. É preciso ler muito [para escrever].

Como foi consigo, Mia?
Mia — Era mau aluno e a escola foi penosa. Apurei o sentido de não estar no lugar [onde efectivamente estava] na escola.
Agualusa — Eu também!
Mia — Isso foi uma escola fantástica. De alheamento. Com os olhos abertos, fingindo estar atento. É uma coisa que procuro ensinar aos meus filhos: a capacidade de não estar.
Agualusa — É uma coisa de budista avançado.
Mia — A escrever comecei cedo. A única coisa que me salvava de ter nota negativa a Português era a redacção.
Agualusa — A minha mãe era professora de Português. Tinha muitos livros em casa. Também devias ter. O teu pai era poeta. Não me proibiam o acesso aos livros. Lemos os livros que podemos ler. Pegamos num livro e percebemos se é para nós ou não. Tento fazer isso com os meus filhos. Li dicionários e enciclopédias. Tenho ali dois tomos de uma enciclopédia que os meus pais me deram há pouco tempo, porque eu tinha muitas saudades daquela enciclopédia, uma Lello Universal. [Levanta-se e vai buscar.]

Edição dos anos 1930, com figuras, capa dura. Linda.
Agualusa — Nesta enciclopédia, o Fernando Pessoa tinha morrido há pouco tempo e só tem direito a duas linhas. Para se ver que não lhe davam muita atenção. O Hitler ainda é tratado com benevolência.

E assim se aprende o mundo. Ando às voltas para tentar saber de onde vem o vosso mundo fantástico.
Mia — Posso contar uma história da escola? Tinha um professor magro, alto, que um dia leu uma redacção que fez. Era uma redacção para a mãe dele. Sobre as mãos da mãe dele. Comoveu-me tanto. Era estranho. Ele também estava comovido. Tinha uma relação de paixão com o texto. Falava das mãos da mãe como eu pensei que podia falar das mãos da minha mãe. As mãos da mãe dele só tinham marcas. Do tempo, do trabalho. Aquilo foi importantíssimo. Aquele professor ficou um menino frágil.

Esse professor era o Zeca Afonso? Sei que foi aluno dele.
Mia — Não. O Zeca foi meu professor por um período curto de tempo. Foi substituir a minha professora de Geografia. Toda a gente o considerava um óptimo professor. [Em surdina] Eu achava-o péssimo. Mas era divertido e ensinava outras coisas.

O vosso mundo fantástico, poético, o talento para ver a realidade nos seus aspectos mais espantosos, e a converter em palavras, de onde vem?
Mia — É difícil falarmos de nós próprios. Vem de várias coisas. Por exemplo, sou de uma geração educada a ser homem, macho.

Quais eram os códigos?
Mia — Um homem não chora. Um homem não confessa certo tipo de sentimentos. É duro. A relação com o lado sentimental era diferente desta que tomei para mim. Quando se escreve e se tem de ser mulher e ser outro, dentro de nós há uma briga. Há uma ousadia que é preciso ter. A capacidade de nos aceitarmos múltiplos, plurais, é um bom ponto de partida para escrever.
Agualusa — Não sei dizer. Talvez tenha que ver com essa infância.
Mia — Posso dizer o que é que ele tem de especial?

Pode. É capaz de ser mais fácil falarem um do outro. Verem-se de fora.
Mia — Ele é uma criatura de fronteira. Alguém que esteve entre mundos e que não quis nunca construir um lugar físico. Vive em histórias permanentemente. A moradia dele não é um lugar e um tempo. O tempo só serve para a travessia, para a viagem. E nunca está em lado nenhum. Está aqui mas está a fingir que está aqui. [Gargalhada de Agualusa.] Estando nós a viajar no meio da Ucrânia ou num musseque em Angola, ele está sempre na criação de histórias. Não tem um onde.
Agualusa — Na minha família, toda a gente contava histórias. Toda a gente queria contar as melhores histórias.
Mia, esperavam de si grandes histórias, grandes coisas?
Mia — Eu era o mais desvalido da casa. Era o pasmado, o que não sabia fazer coisas práticas. Tinha de haver um território onde dissesse — onde disséssemos — que somos visíveis.
Agualusa — [Contar histórias] é uma afirmação identitária. O que é importante no nosso caso, tu como moçambicano, eu como angolano, é que na escrita há uma afirmação identitária.
Mia — Começa por ser isso. Depois já não queremos saber disso.
Agualusa — O meu primeiro livro, A Conjura, um romance histórico sobre o século XIX, é claro para mim que surge como afirmação identitária. Depois é como o Mia diz. A gente toma o gosto naquilo. E vai.

Resolver e afirmar uma identidade, através da escrita, é também uma maneira de suturar feridas?
Agualusa — Afirmação identitária mesmo. Um modo de dizer: “Estou aqui neste país e sou angolano desta maneira.”

E a ferida? Não havia como não estarem em ferida, doridos, quando começaram a escrever. O fim da guerra, das guerras, era recente. A escrita ajudou a organizar o mundo?
Mia — A ideia de alguém ter uma ferida particular... Todos temos.
Agualusa — A escrita ajuda sempre. A escrita é um processo de reflexão. Ajuda-nos a situar-nos naquele momento, naquele universo. Depois vem a fruição, o prazer de que falava o Mia. Escreve-se pelo prazer que a escrita dá.

Descreva.
Agualusa — É muito bom. Tem aquela coisa da descoberta, certo, é um exercício de alteridade, maravilha, compreende-se melhor o outro e compreendemo-nos melhor a nós, verdade. E, além disso, e o mais importante não é nada disso, há o prazer. De repente, as palavras organizam-se, há uma luz ali, os personagens começam a desenhar uma história. É como ler. Mas sou eu que estou a fazer. É um duplo prazer. É um mundo que vai nascendo de dentro de nós.

É bonito que fale desse prazer, sobretudo porque temos a imagem do escritor angustiado.
Agualusa — Em Portugal, há a escola do escritor angustiado. Portugal tem um culto do sofrimento, da tristeza, da melancolia. Aquilo que é prazer tem de ser [também] sofrimento.
Mia — O sofrimento como elemento identitário é [marca] do catolicismo. Quando me ofereci para ser membro da Frelimo, fui a uma sessão em que era o único gajo jovem e o único gajo branco. Havia um grupo que ajuizava os candidatos e estes tinham de apresentar uma “narração do sofrimento”.

Narração do sofrimento?
Mia — Cada candidato chegava e dizia o que é que sofreu. Comecei a ficar atrapalhado. Eu não tinha sofrido nada, na verdade. Aquilo era gente mesmo sofredora. Gente que tinha sido presa, que passava fome, que tinha sido espancada, discriminada racialmente. Percebi a minha felicidade como nunca tinha percebido. Entendi mais tarde que aquilo era uma marca do cristianismo.

A confissão e partilha?
Mia — O sofrimento como prova de identidade.
Agualusa — Cristianismo na sua versão mais calvinista, que era a que vocês mais tinham.

Voltemos atrás para que Agualusa diga o que é que Mia tem de especial.
Mia — Ele não me acha nada de especial.
Agualusa — Provavelmente, o facto de o Mia ser o irmão do meio [é decisivo]. O irmão do meio tem de dar provas. Tem que ver sempre com a necessidade de afirmação. Chamar a atenção numa área. Chamar a atenção da mãe. Estamos a tentar explicar coisas que não se explicam. Nasceu com isto..., com esta deformidade. [Riso.]

A deformidade de ser um poeta que escreve prosa? Foi assim que Mia se apresentou uma vez.
Agualusa — Como é que nasce um xamã? Um xamã tem um lado que é de formação e um lado que não é de formação — é de condição. É poeta, nasceu poeta!, coitado, podia ter nascido com uma perna torta.
Mia — Imagina que tinhas jeito para fazer coisas? Tens jeito? Hoje podias ser um engenheiro de pontes. São também as portas que se fecham.
Agualusa — Se tivesse terminado Agronomia, podia não ser hoje escritor.
Mia — Tenho uma tese sobre por que é que não terminaste.

Qual é?
Mia — Agronomia implica um tipo que tem raiz. Este gajo não pode ter raiz. Só pode ter asa.

É uma leitura poética.
Mia — É a verdade. Isto explica duas coisas. Porque é que aderiste ao curso — porque precisas de ter raiz. E não concluíste porque não podes ficar numa raiz só.
Agualusa — Devia ter ido para artes levitatórias. Ou ser condutor de balões.

Quando é que se conheceram?
Agualusa — Posso estar a criar ficção, mas acho que fui a primeira pessoa a fazer uma recensão de um livro do Mia, aqui em Portugal, no Expresso. Na sequência disso, uma amiga comum organizou um jantar, onde o Mia esteve com a Patrícia [mulher].
Mia — Antes disso, cruzámo-nos e falámos sobre o teu texto. Percebemos que tínhamos muita coisa em comum. Sendo africanos, brancos, de um certo tipo de família...

Está a enunciar as coisas que vos aproximaram?
Mia — Havia um (termo horrível) destino. Parece uma confissão. Daqui a bocado, uma confissão gay. Parecia que estávamos fadados um para o outro. O Zé já era apaixonado pela escrita e pela leitura. Ele era jornalista, eu já tinha sido jornalista.
Agualusa — E havia o interesse pela Biologia.
Mia — Falámos de nomes de plantas.

De política, falaram muito?
Agualusa — Claro.
Mia — Tínhamos zangas e discórdias.
Agualusa — Não me lembro.
Mia — O Zé tinha uma coisa mais clarividente do que eu. Maior distância crítica. Eu estava muito dentro do processo político da Frente de Libertação. Seres mais novo também ajudou. Quando ele punha dúvidas, eu estava naquela postura do militante mais convicto.

Quando é que deixou de ser convicto? E militante?
Agualusa — Luto por causas. Continuo a combater provavelmente pelas mesmas causas. Pela pacificação e democratização de Angola. Nesse aspecto, não mudei nem perdi a fé.

Não? Se olho para um livro como o Barroco Tropical, que se passa no futuro angolano, e que dá uma visão tão negra, tão ácida desse futuro, penso que está desencantado.
Mia — É o livro do não futuro.
Agualusa — O Barroco é uma distopia, um retrato de um mundo que não quero para mim, para os meus filhos, para as pessoas que amo. As distopias servem para alertar para os erros do presente na intenção de corrigir esses erros. Se for olhado dessa maneira, não é um livro pessimista. Pode haver muito horror, e há, em alguns dos meus livros. Na Estação das Chuvas, por exemplo. [O que escrevo é] também uma denúncia desse horror.
Mia — O Zé está condenado a não sair mais de Angola.
Agualusa — Como assim?
Mia — Angola está tão dentro de ti que, mesmo estando ausente, Angola persegue-te. Não vais ter outro território de sonho. Comigo é a mesma coisa em relação a Moçambique. Talvez pela condição histórica de termos nascido no momento em que os países se estavam a afirmar. Não temos casa — casa da alma — se não for aquela que está ali.

Assistiram à celebração da paz, tiveram o sonho. Os países cresceram com as suas desigualdades, injustiças.
Agualusa — Mas a paz não foi feita ainda. Em Angola, o fim da guerra foi um triunfo militar. Não foi através do diálogo. Não se constrói a paz assim. A paz implica uma conversa que nunca foi feita. Implica compreender as razões do outro. As razões do outro não foram ouvidas, foram apagadas. Estão calcadas, não estão resolvidas. A guerra civil tem uma razão de ser que se percebe ao longo da História. Tem que ver com a construção da cidade, do mundo urbano, que cresceu à custa do mundo rural, através da escravatura. A sociedade mestiça de Luanda enriqueceu com o tráfico negreiro. Há um rancor histórico que persiste até hoje. É preciso ir mais longe, fazer uma reconciliação. Eu teria preferido uma paz negociada. Eu preferia sobretudo que nunca tivesse havido confronto físico, bélico, guerra! Os territórios sujeitos à guerra têm durante uma eternidade essa guerra. A violência sempre eclode de novo.

Como se fosse um eco.
Agualusa — Um eco. Aquela violência foi, está lá, ficou. Como quebrar esse ciclo de violência? É o desafio que temos. Vamos a todos os grandes filósofos, profetas, de Cristo a Buda. Todos ensinam o mesmo. Dá a outra face. Faz com que o outro se coloque no teu lugar. Coloca-te no lugar do outro. Tenta compreender o outro. Não é nada que a gente não saiba. Só que não se faz. O pior é isso: não é que não saibamos como fazer.

Não se faz por causa de diamantes, petróleo, orgulho, por tudo isto?
Agualusa — [suspiro] Acho que por estupidez. Falta de inteligência, mesmo.

Fale de como viu o processo de paz em Moçambique.
Mia — Tenho de rectificar um bocado o discurso que andava a fazer até há pouco tempo. Depois do fim da guerra civil, em 1992, os moçambicanos decidiram não falar sobre o assunto. Um ano, dois anos depois, e não tinha acontecido nada. Ninguém queria abrir aquela caixa. Pensei que era a maneira mais sábia. As pessoas percebiam que qualquer coisa não tinha sido resolvida. Essa qualquer coisa era tão essencial que era melhor não tocar nela. Afinal, acho que não se resolveu bem quando se resolveu não falar. [Não foi uma boa decisão] enterrar isso no esquecimento. A solução esquecimento não é uma solução.
Agualusa — Estás a dar-me razão. Tivemos este combate durante anos. Sempre defendi que é preciso criar rituais de reconciliação, de perdão. As pessoas têm de chorar em conjunto. Como os casais. Como os amigos desavindos.

Como as famílias.
Agualusa — Exactamente, é uma família. As pessoas têm de ser capazes de fazer o luto e de se perdoarem.
Mia — De alguma maneira, esse ritual foi feito [em Moçambique]. Mudei de atitude, mas não estou de acordo com uma solução de tipo sul-africano, muito institucionalizada, que não toca os rituais mais profundos das pessoas.

Rainha Ginga, o novo livro de Agualusa, tem no centro uma figura icónica da história angolana. Mia está a escrever sobre Gungunhana, o rei moçambicano, gigante, que viveu entre 1850 e 1906, que todos queriam capturar. Está para breve?
Mia — Não sei. Quando quero escrever um romance, aparece-me poesia. Acabei um livro de poesia. Agora encaro a prosa como um filho que resta. Vou demorar ainda uns seis meses a acabar o que já tenho feito.

Na contracapa da Rainha Ginga, diz que “Angola tem muito passado pela frente, no sentido de que há tanto passado angolano por descobrir e ficcionar”. Anos depois da ratificação da paz, mesmo que ela não seja tão efectiva quanto gostaria, há tempo para ir lá atrás e falar de uma figura assim, do século XVI?
Agualusa — Escrevi este livro ao mesmo tempo que o Mia escrevia sobre Gungunhana e em Angola se produzia um filme sobre a Rainha Ginga. Talvez haja em África uma demanda comum. É uma tentativa de redescobrir o passado numa perspectiva africana. O que temos, normalmente, é uma perspectiva europeia ou uma perspectiva um pouco extremada, nacionalista, que também é mentirosa. Este livro responde a uma inquietação comum ao continente (e não apenas à África de língua portuguesa).

Porque é que Ginga o fascina?
Agualusa — Por ser uma mulher que foi capaz de subverter todas as regras, a sua própria tradição, e de construir um mundo que era o seu mundo. De inventar um mundo à sua imagem.

É um pouco o que fazem com a escrita: inventar um mundo.
Agualusa — Pois, mas ela põe no terreno, nós pomos no papel. Menos corajoso.

Gungunhana interessou-o porquê?
Mia — Por aquilo que não foi. Há dois discursos que o esmagam. Houve uma ficção daquele personagem por parte dos portugueses, que o queriam maior do que era. Era preciso ter um inimigo grande para engrandecer o feito de o ter vencido. A Frelimo, o Governo moçambicano, precisou de construir nele um herói nacional. Houve uma mistificação daquele personagem. O que procuro é a pessoa que sobrou no meio destas duas ficções.
Agualusa — Gosto dessa ideia [a pessoa que sobrou].
Mia — Ainda sobre a coincidência de escrevermos romances históricos: esta sede pelo passado vem da falta de futuro. O Barroco Tropical do Zé era uma maneira de dizer que queremos outro futuro. A necessidade de desenhar um futuro faz com que a gente tenha de recomeçar lá atrás, a recriar um tempo que não foi aquele que nos disseram que existia. Houve uma tentativa de impor só um passado.

Uma visão única da história?
Mia — Como se o passado fosse uma coisa simples, singular, única. E houve vários passados.
Agualusa — Parece que o passado nunca passa. Uma das coisas mais interessantes ao estudar esta época da Rainha Ginga foi perceber que aquilo é tão presente... A forma como aqueles conflitos se desenrolam, as alianças feitas..., e tudo com pessoas. Por vezes, perdemos a noção de que eram pessoas.

Porque os vemos apenas como mitos.
Agualusa — Sim. Eram pessoas inseridas em processos históricos complicadíssimos. Quando comparamos a época da independência, que é uma época de redesenhar as fronteiras, com a da Rainha Ginga, que era também de redesenhar fronteiras, e de fazer um país, ou países, porque é Angola que está em construção, é o Brasil que está em construção, é Portugal que de certa forma está em construção, as situações são semelhantes. E essas pessoas são pessoas. Procuravam o mesmo que procuramos hoje.

O quê? Felicidade, amor, glória?
Agualusa — Isso tudo que realmente conta, essas coisas básicas, simples. Falámos tanto do medo: procuravam perder o medo.

O que é busca na sua viagem incessante?
Agualusa — Compreender. Compreender o outro para perceber o que faço aqui. É tão cliché, mas é assim mesmo. À medida que vamos crescendo, percebemos que o outro somos nós. Que não há um outro. Cada vez sou mais fascinado (voltando à Biologia) pelas formigas. Há a tese de que o formigueiro é que é o animal. As formigas são células do animal; não são sequer células autónomas porque não sobrevivem longe, sozinhas. Talvez não estejamos longe disto. Talvez sejamos um único animal.
Mia — O teu próximo curso é Biologia, vais ver.
Agualusa — A humanidade é uma única entidade. Sempre fomos o mesmo ao longo do tempo. É o mesmo animal, o mesmo ser. Daí o absurdo dos conflitos. Estamos a combater-nos a nós próprios. Uma guerra civil é uma guerra na qual nos combatemos a nós próprios, o nosso organismo.

Como um cancro. Que nasce de nós e nos mata.
Agualusa — É.
Mia — Porque é que deixamos de ver os outros como uma parte de nós? Porque aprendemos a olhar de mais para nós. Há uma anulação de nós próprios que temos de aprender. No fundo, o escritor é um escutador. Aprendeu a ouvir os outros. E percebendo no fim que quem está ali é ele próprio. Mas tem de começar por fora.

Agora que estamos a terminar, estava a perguntar-me se seria diferente esta entrevista se eu fosse um homem. Será que falaríamos mais dos conflitos africanos?
Agualusa — Pode ser. E pode ser que não soubéssemos responder!
Mia — Se calhar também estamos a procurar ser engraçados por ser uma mulher. [Gargalhada dos dois.]

Isto é também uma maneira de perguntar se querem falar mais de política, de guerra. Têm um discurso muito crítico politicamente.
Agualusa — Eu recebo notícias de Luanda todos os dias. Sou atingido pelo facto de o regime existir e se comportar de uma determinada maneira. E reajo a isso, como é óbvio.

Mas não é o centro da sua vida como no passado a política foi um centro.
Agualusa — Na minha vida, nunca foi.
Mia — Na minha, foi.
Agualusa — O centro são as pessoas.
Mia — A política é uma maneira de chegar às pessoas.
Agualusa — Tu foste militante partidário, eu nunca fui. Completamente diferente. Sou militante de ideias. Não sou militante de movimentos políticos. Como cidadão, intervenho todos os dias. Com certeza. Mas a minha vida é muito mais.

Sente alguma limitação quando intervém? Perseguem-no?
Agualusa — Eu tinha uma crónica no jornal A Capital e deixei de ter. Alguém comprou o jornal e não pude continuar a escrever. Claro que há limitações. O Rafael Marques escrevia no mesmo jornal e pela mesma razão [foi dispensado]. Fomos apagados. Agora escrevo num jornal online, na Rede Angola.
Mia — Aos 17 anos, procurava uma extensão da família num partido político. Abandonei os estudos de Medicina, tudo, para me dedicar àquela causa. Foi muito complicado pensar que [a política] era outra coisa. A ruptura, em 1986, magoou-me muito. Ao mesmo tempo foi uma grande libertação. Quiseram pagar-me os estudos, quando [saí da política activa]. Felizmente não aceitei. Não queria ter dívidas.

São o melhor amigo um do outro? Como irmãos?
Mia — Alguém é um grande amigo se temos um momento intenso, uma coisa bonita que estamos a ver, e pensamos: “Gostaria que ele estivesse aqui.” Penso nele. Rimo-nos muito das mesmas coisas, imbecilidades. Partilhamos coisas que os escritores normalmente não partilham. Ideias para livros. Sem receio. Agora diz lá porque é que tu és meu amigo!
Agualusa — Concordo inteiramente com o que disseste. Há uma alegria no Mia, na escrita do Mia... E uma melancolia. Uma tristeza elegante.
Mia — Ele faz uma coisa de que tenho inveja: uma poesia que faz de conta que não é. Há um trabalho poético que ele não põe à varanda. Quanto é que me pagas por ter dito isto?