A ordem natural das coisas
Sátira mordaz, números cómicos, alegorias, tudo fica bem no figurino de , com encenação de Sylvan Creuzevault. 4 estrelas
Ainda antes de começar o espectáculo, a julgar pelo cenário dir-se-ia que estamos na continuação da anterior obra de Sylvan Creuzevault, Notre Terreur, vista nesta mesma sala em 2010. A tendência para serializar tudo, dos bons restaurantes aos gadgets electrónicos, dos eventos desportivos às intrigas políticas, e para não superar nada, está para durar. O Capital avança no tempo, em relação à outra peça, transportando-nos para aquele longínquo ano de 1848 em que uma Primavera de revoluções contagiou a Europa, no lugar de reunião de um grupo revolucionário, representado por um bando de excelentes actores que encarnam várias figuras históricas, com os recorrentes anacronismos, as ocasionais coreografias e as necessárias referências e lições tiradas de O Capital, de Marx.
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Ainda antes de começar o espectáculo, a julgar pelo cenário dir-se-ia que estamos na continuação da anterior obra de Sylvan Creuzevault, Notre Terreur, vista nesta mesma sala em 2010. A tendência para serializar tudo, dos bons restaurantes aos gadgets electrónicos, dos eventos desportivos às intrigas políticas, e para não superar nada, está para durar. O Capital avança no tempo, em relação à outra peça, transportando-nos para aquele longínquo ano de 1848 em que uma Primavera de revoluções contagiou a Europa, no lugar de reunião de um grupo revolucionário, representado por um bando de excelentes actores que encarnam várias figuras históricas, com os recorrentes anacronismos, as ocasionais coreografias e as necessárias referências e lições tiradas de O Capital, de Marx.
Não vale a pena sublinhar a ironia de um espectáculo a partir de Marx ser apresentado na sala de um banco, aliás público, em primeiro lugar porque o regime de paródia deste trabalho facilmente o enquadraria nas formas culturais típicas do capitalismo tardio, em segundo porque a factura pode sempre ser passada em nome da dialéctica. Uma coisa é certa: a capacidade deste trabalho para engendrar o debate estético e político – impossível de resumir nestas colunas – deverá deixar roídos de inveja os muitos fazedores de teatro político.
Se Notre Terreur estava para o nosso tempo como as tragédias clássicas para os gregos, reproduzindo os mitos de origem dessa cultura, este O Capital, com o seu voo rasante sobre Marx e a sociedade contemporânea, bem poderia ser o equivalente à comédia com que os autores helénicos completavam o conjunto de obras a concurso. Sátira mordaz, números cómicos, alegorias, tudo fica bem no figurino. Mas a tentativa de abordar o assunto a todo o custo e a forma inacabada como o espectáculo é apresentado tornam-se mais relevantes para uma crítica deste trabalho.
Logo no prólogo, em que um único actor encarna as figuras de Brecht, Freud e Foucault, fica clara a proposição da trupe: fazer um ensaio (répétition) mais que um espectáculo, uma experiência mais que uma obra, uma tentativa mais que um sucesso, em busca do agente livre que se proponha abrir, de dentro para fora, o jogo de caixinhas chinesas que é a ideologia vigente. (Mas em que camada da realidade, descascada a ordem natural das coisas, se encontram os actores da trupe?).
No começo, é Blanqui, um dos protagonistas da revolução de 1848, que porta o estandarte do inconformismo perante o aparente fim da história conseguido com o primeiro sufrágio mais ou menos universal. (Talvez protagonista seja uma palavra já demasiado comprometida com a ideologia em vigor.) As tentativas sucedem-se por duas horas, culminando no episódio final, um diálogo entre duas mercadorias encarnadas.
O desejo pelo desejo do outro, máscaras à parte, fica escancarado. A análise mal começou, todavia. Os actores, às tantas, propõem-se despedaçar o precioso objecto de um dos espectadores, neste dia um telefone, para gozo e terror da audiência, que revê nesse infalível número de circo a contradição entre ter e não ter uma mercadoria (como se sabe, fabricada na China, por operários explorados que não reconheceriam as imagens do tanque de Tiananmen, com metais obtidos graças ao trabalho infantil numa mina no Congo).
A frase final do espectáculo, definindo o teatro da incompletude como um espectáculo de marionetas manipuladas por sombras, cujas falas cacofónicas são sopradas por um ponto, deixa a promessa que estes herdeiros de Brecht, mas também de Genet, farão um dia a revolução.
Qual a actualidade desta obra? Para que serve? Esta é a era em que Thomas Piketty repete o título de O Capital no popular Le capital au XXIe siècle, mas também de Debt: the first 5000 years, de David Graeber. Os duzentos anos de utopia e capitalismo entre 1789 e 1989, para arredondar as contas, estarão arrumados ou não, conforme as perspectivas.
No Brasil, as manifestações de Junho de 2013 temperadas com vinagre e gás lacrimogéneo ficaram conhecidas nalguns círculos da esquerda – os mesmos que identificam as Terras de Vera Cruz com a experiência mais avançada do capitalismo – como as jornadas de Junho, repetindo o nome de uma das etapas da revolução de 1848. Veremos como será este Junho em que todo o mundo está concentrado em Pindorama.
O tempo é um rolo compressor que está, ele mesmo, cada vez mais comprimido, futuro e passado, ambos, precipitados num presente sem horizonte de expectativas. Talvez por isso estejamos de volta a um tempo repetido, em que o ensaio, apesar de parecer marcar passo, será a melhor forma de sair do impasse.