Três discos de afirmação
Rodrigo Amado precisava deste gesto de risco. Num claro movimento ascensional desde que encontrou em Miguel Mira e Gabriel Ferrandini a base para o Motion Trio, tem vindo a galgar sucessivos limites para a sua música, em parte através dos músicos convidados que tem trazido para a sua orla — Jeb Bishop no excelente Flame Alphabet, Kent Kessler e Paal Nilssen-Love na dose dupla Teatro e The Abstract Truth. Mas abrir a porta a Peter Evans era provavelmente a ambição mais desmedida que Amado podia anunciar. Evans será hoje o músico mais fascinante, imprevisível e versátil no contexto da música improvisada terráquea. E abrir-lhe a porta é convidar o génio, mas também saber que o som daquela trompete pode eclipsar todos os instrumentos ao seu redor.
Essa prova de força de Rodrigo Amado e respectivo trio é ganha em ambos os registos com Evans. Em perspectivas totalmente diferentes. No LP Live in Lisbon, registado no concerto do Teatro Maria Matos em Março de 2013, o tom é muitas vezes de perseguição, como se Peter Evans arrancasse desde logo em sprint e fosse espalhando um caos inclemente, ficando os três músicos portugueses obrigados a não o perderem de vista e a evitar os detritos que o norte-americano vai deixando pelo caminho. É um registo de tensão permanente, abrasivo, mais facilmente codificado numa linguagem de improvisação construída a partir dos alicerces (escaqueirados) do bop.
The Freedom Principle, gravado em estúdio passados dois dias, é um CD de estudo mútuo. Evans, como peça volante, deixa de chamar a si um papel de destabilização óbvia, procurando antes o espaço entre os restantes instrumentos, gerando uma dinâmica completamente nova, mais avançada e funda do que acontecera com os anteriores convidados do Motion Trio. O tema título, aliás, presta-se a uma imagem clara: Evans passa largos minutos num voo de insecto (é a isso que soa, não é metáfora rebuscada) por entre Amado, Mira e Ferrandini, como que olhando a música de cima, intervindo de uma forma cirúrgica — totalmente contrária à prodigiosa falta de subtileza que emprestara ao concerto do Maria Matos. Em ambos os casos, nestes dois discos de notável encontro, a acção de Evans não é indiferente ao Motion e vice-versa, e os arrazoados diálogos entre trompete e saxofone são, frequentemente, algo que apenas confirma Rodrigo Amado como um dos músicos mais inventivos da música improvisada mundial — deixemo-nos de escalas locais.
A prova, de resto, está bem patente em Wire Quartet — Amado, Ferrandini, Hernâni Faustino e Manuel Mota. Saxofone, bateria, contrabaixo e guitarra eléctrica, portanto. O nível não anda muito longe da parelha de discos do Motion com Evans, sobretudo quando o quarteto não cede à tentação de dinamitar a música e levanta o jogo colectivo em crescendos que não desembocam na saída fácil da chinfrineira desregrada, percebendo sempre onde está a armadilha da vulgaridade. Para esse desfecho é essencial um Manuel Mota que está longe do onanismo habitual nas incursões das guitarras nestes cenários, contribuindo para a música e não imaginando que tem por trás uma banda-papel de cenário. O vai-vém constante de Abandon yourself, o longo tema de abertura, em subidas e descidas sucessivas, junta-se às melhores coisas que Rodrigo Amado gravou até hoje. Algo que, como já se terá percebido, não é coisa pouca.
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Rodrigo Amado precisava deste gesto de risco. Num claro movimento ascensional desde que encontrou em Miguel Mira e Gabriel Ferrandini a base para o Motion Trio, tem vindo a galgar sucessivos limites para a sua música, em parte através dos músicos convidados que tem trazido para a sua orla — Jeb Bishop no excelente Flame Alphabet, Kent Kessler e Paal Nilssen-Love na dose dupla Teatro e The Abstract Truth. Mas abrir a porta a Peter Evans era provavelmente a ambição mais desmedida que Amado podia anunciar. Evans será hoje o músico mais fascinante, imprevisível e versátil no contexto da música improvisada terráquea. E abrir-lhe a porta é convidar o génio, mas também saber que o som daquela trompete pode eclipsar todos os instrumentos ao seu redor.
Essa prova de força de Rodrigo Amado e respectivo trio é ganha em ambos os registos com Evans. Em perspectivas totalmente diferentes. No LP Live in Lisbon, registado no concerto do Teatro Maria Matos em Março de 2013, o tom é muitas vezes de perseguição, como se Peter Evans arrancasse desde logo em sprint e fosse espalhando um caos inclemente, ficando os três músicos portugueses obrigados a não o perderem de vista e a evitar os detritos que o norte-americano vai deixando pelo caminho. É um registo de tensão permanente, abrasivo, mais facilmente codificado numa linguagem de improvisação construída a partir dos alicerces (escaqueirados) do bop.
The Freedom Principle, gravado em estúdio passados dois dias, é um CD de estudo mútuo. Evans, como peça volante, deixa de chamar a si um papel de destabilização óbvia, procurando antes o espaço entre os restantes instrumentos, gerando uma dinâmica completamente nova, mais avançada e funda do que acontecera com os anteriores convidados do Motion Trio. O tema título, aliás, presta-se a uma imagem clara: Evans passa largos minutos num voo de insecto (é a isso que soa, não é metáfora rebuscada) por entre Amado, Mira e Ferrandini, como que olhando a música de cima, intervindo de uma forma cirúrgica — totalmente contrária à prodigiosa falta de subtileza que emprestara ao concerto do Maria Matos. Em ambos os casos, nestes dois discos de notável encontro, a acção de Evans não é indiferente ao Motion e vice-versa, e os arrazoados diálogos entre trompete e saxofone são, frequentemente, algo que apenas confirma Rodrigo Amado como um dos músicos mais inventivos da música improvisada mundial — deixemo-nos de escalas locais.
A prova, de resto, está bem patente em Wire Quartet — Amado, Ferrandini, Hernâni Faustino e Manuel Mota. Saxofone, bateria, contrabaixo e guitarra eléctrica, portanto. O nível não anda muito longe da parelha de discos do Motion com Evans, sobretudo quando o quarteto não cede à tentação de dinamitar a música e levanta o jogo colectivo em crescendos que não desembocam na saída fácil da chinfrineira desregrada, percebendo sempre onde está a armadilha da vulgaridade. Para esse desfecho é essencial um Manuel Mota que está longe do onanismo habitual nas incursões das guitarras nestes cenários, contribuindo para a música e não imaginando que tem por trás uma banda-papel de cenário. O vai-vém constante de Abandon yourself, o longo tema de abertura, em subidas e descidas sucessivas, junta-se às melhores coisas que Rodrigo Amado gravou até hoje. Algo que, como já se terá percebido, não é coisa pouca.