Alberto da Costa e Silva: o vício de África
Alberto da Costa e Silva encontrou em África e no tráfico atlântico de escravos a raiz a partir da qual o Brasil necessita de ser explicado. A produção deste intelectual brasileiro mostra que a capacidade para inovar nem sempre se reduz às rotinas do ensino académico.
Para os portugueses, trata-se também de uma ocasião para ultrapassar evidentes limitações quanto ao conhecimento que temos da produção intelectual brasileira. É que se contam pelos dedos as iniciativas destinadas a colmatar o nosso enorme desconhecimento acerca do Brasil, sobretudo em mundos da comunicação situados para além da música, do futebol e da televisão. Claro, algumas excepções de peso existem, localizadas bem à margem das tretas oficiais da lusofonia — uma espécie de discurso oficial que de tão recorrente já não convence ninguém, sobretudo quando se procura impor pela força.
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Para os portugueses, trata-se também de uma ocasião para ultrapassar evidentes limitações quanto ao conhecimento que temos da produção intelectual brasileira. É que se contam pelos dedos as iniciativas destinadas a colmatar o nosso enorme desconhecimento acerca do Brasil, sobretudo em mundos da comunicação situados para além da música, do futebol e da televisão. Claro, algumas excepções de peso existem, localizadas bem à margem das tretas oficiais da lusofonia — uma espécie de discurso oficial que de tão recorrente já não convence ninguém, sobretudo quando se procura impor pela força.
A primeira dessas excepções sucedeu entre 2000 e 2003 e tem de ser vista como uma das mais sérias contribuições para o estudo das populações ameríndias que se registaram em Portugal. Foi na contramão das comemorações dos descobrimentos que, graças a Joaquim Pais de Brito, director do Museu Nacional de Etnologia, teve lugar a grande exposição Os Índios, Nós. Paralelamente, o mesmo museu publicou um conjunto de monografias em parceria com a Assírio & Alvim, que também editou o estudo sobre os araweté de Eduardo Viveiros de Castro.
A segunda excepção foi suscitada por Abel Barros Baptista, um estudioso da obra de Machado de Assis, que entre 2005 e 2008 pôs cá fora, na Cotovia e em vários volumes, um “Curso breve de literatura brasileira”. E a terceira excepção não passou despercebida: surgiu com a reedição, no início do corrente ano, da obra de Edmundo Correia Lopes, A Escravatura – Subsídios para a sua História (Antígona, 2014; 1.ª ed., Agência Geral das Colónias, 1944). Este filólogo e musicólogo, dobrado de historiador da estatística e do tráfico de escravos, aprendeu durante cerca de uma década no Brasil — graças aos ensinamentos de Nina Rodrigues, Artur Ramos e Mário de Andrade — a necessidade de estudar as culturas africanas no seu lugar de origem. Contemporâneo desse outro interesse pela vida intelectual do Brasil — bem representado, nos círculos oficiais do Estado Novo, por José Osório de Oliveira e que foi também desenvolvido por alguns intelectuais da oposição que ali conheceram o exílio, tais como Maria Archer e Jaime Cortesão —, Edmundo Correia Lopes faleceu em 1948 na Guiné, quando ali efectuava trabalhos de campo.
Alberto da Costa e Silva nasceu em 1931. Da sua infância, na casa grande do Piauí e chegada ao Rio de Janeiro, escreveu umas memórias. Intitulou-as, com ironia e gosto pelo paradoxo, Espelho do Príncipe, que lemos no exemplar da Biblioteca Nacional de Lisboa dedicado ao poeta Alberto de Lacerda. A par da sua carreira como diplomata, no âmbito da qual serviu como embaixador em Portugal (1989-1992), dedicou-se à poesia, ao ensaio e à investigação histórica. Tal como um outro diplomata brasileiro da sua geração, o grande historiador nordestino Evaldo Cabral de Melo (irmão do poeta e também diplomata João Cabral de Melo Neto), Costa e Silva deve ser considerado um dos maiores historiadores brasileiros da actualidade.
Se todos estes nomes, só por si, revelam o altíssimo nível intelectual dos diplomatas brasileiros, eles também indicam que a capacidade para inovar e propor novos quadros de análise histórica depende de lógicas que nem sempre se reduzem às rotinas do ensino e da reprodução académica. Quais são, então, os principais domínios e pontos de vista em que Costa e Silva inovou ou alcançou uma maior profundidade analítica?
Para responder a esta questão identifico três linhas principais, depois de tomar em mãos os seus principais livros de história publicados pela Editora Nova Fronteira: A Enxada e a Lança: a África antes dos Portugueses (1992; 2.ª ed., 1996), 768 pp.; A Manilha e o Libambo: A África e a Escravidão, de 1500 a 1700 (Nova Fronteira, 2002), 1071 pp.; Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos (2004), 207 pp.; Um Rio Chamado Atlântico (Nova Fronteira, 2012), 287 pp.. Não esqueço uma colectânea de ensaios publicada há muito em Lisboa O Vício da África e Outros Vícios (João Sá da Costa, 1989), 215 pp.; nem a sua recente coordenação do vol. I da História do Brasil Nação: 1808-2010 – Crise Colonial e Independência 1808-1930 (Fundación Mapfre e Editora Objetiva, 2011), 256 pp..
A primeira característica encontra-se no confessado “vício de África” que todas essas obras de história revelam. Ou seja, se outros grandes historiadores brasileiros procuraram dentro do Brasil a construção da sua história, propondo-se encontrar o seu epicentro tanto numa visão do paraíso situado algures no sertão, como numa outra qualquer matriz regionalista (do Nordeste à Bahia, de Minas Gerais ao Rio de Janeiro, ou das plantações e engenhos aos caminhos dos bandeirantes paulistas), Alberto da Costa e Silva encontra em África e no tráfico atlântico de escravos a raiz a partir da qual o Brasil necessita de ser explicado.
Outros intelectuais brasileiros, tais como os antropólogos Nina Rodrigues e Artur Ramos em trabalhos começados a publicar na década de 1930 — que foram bem conhecidos em Portugal, nomeadamente pelo já referido Edmundo Correia Lopes —, foram pioneiros na criação dessa visão africanista do Brasil. Mais recentemente, Luiz Felipe de Alencastro, outro grande historiador brasileiro, também procurou traçar o quadro estrutural de um Brasil feito fora do Brasil, no Atlântico Sul. Costa e Silva elogiou o último, sem deixar de o criticar. Isto porque, ao retábulo de um só painel — representando a junção de Angola ao “miolo negreiro do Brasil” ou, por outras palavras, unindo Luanda ao Rio de Janeiro —, se deveriam acrescentar outras tábuas, capazes de formar um políptico. Compunham-no: a Costa do Ouro, onde os acãs vendiam escravos em troca de ouro brasileiro, no fim do século XVII; a Costa dos Escravos no Golfo do Benin com a sua procura de tabaco baiano; o tráfico do Senegal e dos Rios da Guiné, considerado o mais antigo de todos (tão bem estudado por António Carreira em livros que é urgente difundir); e a vasta linha costeira do Gabão aos reinos ao norte do rio Zaire.
Segunda característica: se a preocupação pela história de África implica que o historiador saia do Brasil para o compreender melhor, obriga igualmente a recorrer a diferentes texturas temporais, a começar por aquelas que só são apreensíveis através de um recuo aos ritmos mais lentos da longa duração. A este respeito, que admiráveis são os exercícios analíticos de Costa e Silva em A Enxada e a Lança! Nuns casos, encontra-se a lenta expansão a sul do Sara da cultura banta — comparada à expansão dos tupis-guaranis na América do Sul —, tanto ao nível da língua como das novas tecnologias da fundição do ferro. Noutros, são as comunidades agrícolas, fundadas na enxada, em oposição aos grupos nómadas do pastoreio, na sua relação com os processos de concentração dos poderes.
Noutros casos, ainda, como no Zimbabué, no Gana ou no Mali, é a acumulação de riquezas, nomeadamente o ouro, a revelar que o comércio à distância se constituía como um dos principais instrumentos dos reis para fortalecer o seu domínio. Claro que a capacidade de lidar com diferentes texturas temporais não se reduz ao afrontar do tempo longo — em oposição às visões superficiais do que se julga ser a mudança rápida porque associada, em círculo vicioso, ao contemporâneo. Mas revela-se também no estudo de outros processos de mudança que tanto podem percorrer dois séculos (A Manilha e o Libambo…), como ser compreendidos à escala de uma vida (Francisco Félix de Souza…).
Uma última característica diz respeito não aos resultados das análises históricas centradas em África e na escravatura, que procuram jogar com diferentes texturas temporais, mas à própria oficina onde Alberto da Costa e Silva compõe os seus trabalhos. Ora, esta é composta por uma bibliografia gigantesca, lida e comentada, sempre de forma crítica, com destaque para as obras essenciais de Eric Williams a Jan Vansina. Menor peso ocupam as novidades recolhidas em arquivo, embora este seja compensado por uma fina atenção às fontes impressas, em particular aos relatos de viagem.
Porventura, mais importante, é o cuidado com o estilo — não no sentido vazio da forma pela forma — mas posto ao serviço da explicação analítica e do traçar dos quadros onde se desenham processos de mudança. É que um grande historiador recorre sempre a múltiplas formas de explicação, para procurar responder a diferentes problemas. Nuns casos, são as referidas imagens que se inspiram nas técnicas da pintura, dos retábulos aos polípticos. Noutros, encontra-se a paráfrase que se inspira em Carlos Drummond de Andrade: “apenas um arabesco em torno do elemento essencial – inatingível” (A Enxada e a Lança, p. 647). Noutros casos, ainda, estão as referências aos vestígios materiais: os três fragmentos de um prato de porcelana chinesa azul e branca, da dinastia Ming, a testemunhar como o paço real do Zimbabué, na transição dos séculos XV para o século XVI, estava no centro de uma rede de comércio a longa distância (A Enxada e a Lança, p. 657).
Em toda esta erudita diversidade de registos, sente-se bem a figura do escritor dobrado de historiador. Tal como se Alberto da Costa e Silva fosse um Michelet brasileiro interessado na história de África...
Historiador