À rédea solta

O primeiro livro de Matilde Campilho é um acontecimento precioso em língua portuguesa.

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Não é só o primeiro livro da escritora (nascida em 1982) nem mais um bom livro da colecção que Pedro Mexia coordena: Jóquei é um acontecimento precioso em língua portuguesa, nem vale a pena dizer menos.

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Não é só o primeiro livro da escritora (nascida em 1982) nem mais um bom livro da colecção que Pedro Mexia coordena: Jóquei é um acontecimento precioso em língua portuguesa, nem vale a pena dizer menos.Uma nota de badana explica que Matilde vive desde 2010 entre o Rio de Janeiro e Lisboa. Seja o que for que isso signifique, onde mais o notamos é na magnífica língua destes poemas, pouco agradável (adivinha-se) a quem gosta de manter distantes as águas linguísticas entre Portugal e o Brasil. Aqui não há separação: os gerúndios abundam, o comboio pode ser trem, escreve-se “ele falou” onde poderia estar “ele disse”, “você” vale “tu” e assim se pode ler num poema que “você e eu sempre damos um jeito de sincronizar nossos batimentos” sem sentir mácula na sintaxe. Em Jóquei galopa-se para dar cabo da ideia nacionalista da língua, sobretudo da língua poética.Até porque, quanto a línguas, Matilde Campilho não faz sequer questão de que um poema seja todo na mesma. Um bom exemplo pode ser Brincando com os Dentes do Tubarão, ao começar com quatro versos bilingues, “You are the sunshineof my life/ e conversar contigo de manhã/ é tão bom”, e prosseguir com mais quatro da mesma enganadora banalidade: “tens o poder do muesli e da/ laranja/ ou de qualquer fruta de época/ for all that matters”. Enganadora porque não será sequer a última estrofe a anular a estranheza do título, muito menos a desistir da misturada anglo-luso-brasileira: “My dear bicho gente/ veja lá se sua próxima visita/ vem antes da edição fria/ do Financial Times.” Talvez os dentes do tubarão sejam esse mesmo risco que a escritora corre na aproximação à cena mais comum, sabendo que o comum pode destruir, com uma dentada só, o corpo bem mortal do poema.Mas não levar demasiado à letra o comum ou o banal (o registo pop, por assim dizer) é regra de ouro na leitura de Jóquei. Quem não vê que escrever “My dear bicho gente” é marcar a língua com uma entoação desconhecida? Só que é fazê-lo soltando as rédeas da dicção, abrindo espaço para a distensa intensidade do híbrido na era www. Nada disso empurra Matilde para qualquer linhagem modernista ou antimodernista, mas aproxima-a de outras vozes recentes para quem a poesia volta a estar, em certo sentido, muito para cá da literatura, numa zona de necessidade vital equivalente à da voz que diz no primeiro poema do livro: “você citava poetas húngaros mas nesse tempo/ eu só queria saber de inventar uma língua/ que não existisse.” Não por acaso, esse poema é escrito ou dito “com cara de Whitman” e a pessoa que nele fala é masculina. Não é um regresso a Walt Whitman, mas a mesma liberdade do verso e da voz, a mesma partilha ambígua da diferença sexual, o mesmo poder de segredo e de exposição de que usou o poeta norte-americano fazem falta agora a uma poesia radicalmente democratizada e disseminada como a que descobre e persegue Matilde Campilho. Nem língua única, nem voz única, nem pessoa nem sexo únicos, este Jóquei está longe de ter pista própria, bem marcada: verso curto, prosa longa, diálogo, narrativa, quase aforismo, espécie de carta, glosa, por qualquer forma pode cavalgar. Leituras, filmes, canções, conversas, a colecção das matérias é virtualmente infinita. É como se o próprio fosse afastado por impróprio e uma prática do roubo nada tivesse de desaconselhável: “um pedaço de aço? — vai lá e rouba./ a entrada da barcaça no Ganges? — vai lá e rouba./ os dentes do jaguar japonês?/ — vai lá e rouba.”Nem sombra se sente aqui daquela poética enroscada na sua própria impotência a que, por vezes, a palavra “melancolia” deu uma cobertura nobre. Quando o título de um poema diz: Até as Ruínas Podemos Amar Neste Lugar, é a força política do lugar do poema que ele afirma. Sim, a figura do “jóquei”, afinal tão inesperada para um livro de poemas “português” dos dias de hoje, é uma figura de força e de poder. Será preciso tempo para aprender o idioma dessa política espalhada nos poemas e que por vezes cristaliza em formulações mais verticais.Escolhendo uma delas, poderíamos chamar-lhe política florestal, que não visa gerir nem proteger nem controlar, mas sim, como toda a grande poesia, libertar, expandir e adensar a floresta: “estamos dando utilidade ao amor/ alargando os braços das amendoeiras/ alargando os braços dos jacarandás/ partindo as inúteis linhas de fronteira/ e fazendo do mundo/ a gigante floresta.”