A última aula de João Lobo Antunes ou “uma vida examinada” numa hora
Médico faz 70 anos na quarta-feira, nesta terça deu a última lição na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Uma plateia cheia ouviu-o falar sobre o tempo, a educação e o sentido da vida.
“O tempo passou tão depressa”, desabafou João Lobo Antunes, no início da sua última lição. Antes, falaram José Fernandes e Fernandes, director da FMUL, e António da Cruz Serra, reitor da Universidade de Lisboa, que agradeceu ao médico a ajuda na unificação das antigas Universidade de Lisboa e Universidade Técnica de Lisboa. “É com imensa pena que o vejo jubilar”, disse Cruz Serra.
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“O tempo passou tão depressa”, desabafou João Lobo Antunes, no início da sua última lição. Antes, falaram José Fernandes e Fernandes, director da FMUL, e António da Cruz Serra, reitor da Universidade de Lisboa, que agradeceu ao médico a ajuda na unificação das antigas Universidade de Lisboa e Universidade Técnica de Lisboa. “É com imensa pena que o vejo jubilar”, disse Cruz Serra.
A assistir na plateia, estavam Jorge Sampaio e António Ramalho Eanes, ex-presidentes da República, António Lobo Antunes, escritor e irmão do neurocirurgião, o patriarca de Lisboa D. Manuel Clemente, o empresário Francisco Pinto Balsemão, o ministro da Educação e Ciência Nuno Crato, a antiga ministra da Ciência Maria da Graça Carvalho, a presidente do Instituto Champalimaud Leonor Beleza, médicos, muitas pessoas de bata branca, investigadores, alunos.
“Última lição” prometia ser o título da aula do neurocirurgião, de acordo com o slide de abertura que tinha desenhados neurónios. Mas João Lobo Antunes explicou que, depois de pensar sobre o que queria dizer, decidiu o seguinte: “Falar para vós como se estivesse a falar simplesmente e só para mim.” Por isso, inspirando-se na Apologia de Sócrates de Platão, onde se lê “sem me examinar a mim próprio e aos outros não vale a pena viver a vida”, o neurocirurgião chamou à sua lição de Uma vida examinada.
Nessa revisitação, a profissão surge como se se tratasse de uma característica genética, que João Lobo Antunes herdou do pai, João Alfredo Lobo Antunes, também médico. No PowerPoint apareceu uma árvore genética da família, com quadrados e círculos (homens e mulheres). Estas árvores mostram a frequência com que uma doença genética aparece nas famílias, ajudando a antecipar a probabilidade de surgir num novo membro. Mas, neste caso, os quadrados e círculos pintados a vermelho eram os médicos. E o título do slide, “Profissão dominante de penetrância variável”, era um trocadilho com jargão científico que fez rir a plateia.
Lisboa-Nova Iorque-Lisboa
João Lobo Antunes nasceu a 4 de Junho de 1944, em Lisboa. Antes de entrar na FMUL, passou pelo Liceu Camões. Do estudo que o permitiu terminar a licenciatura em 1967 com média 19,47, lembrou a vida quase monástica que teve, ao ritmo do relógio da Igreja de Benfica: “Estudava das 9h às 13h, parava para almoçar, continuava das 15h às 20h, parava para ir jantar e voltava das 21h até às 23h.” E lembrou também o “prazer de ter um livro na mão”.
Diz-se um produto da “educação liberal”, onde se aprende a “saber ouvir”, mas também a ler, a compreender, a falar com qualquer pessoa, a escrever de forma prática, humilde, clara, a reconhecer uma variedade de problemas quando se analisa um tema e, finalmente, a “relacionar tudo e tudo saber articular”.
Depois de falar sobre a sua passagem pelo Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, e por outras instituições portuguesas, o médico contou a sua estadia nos Estados Unidos. “Fui sempre livre para que as coisas me acontecessem.” Entre 1971 e 1984 esteve em Nova Iorque, como bolseiro Fulbright e professor de neurocirurgia da Universidade de Columbia, e onde completou o doutoramento. Entre as pessoas que o marcaram, falou de Houston Merritt, “o maior neurologista americano da sua geração”, que nunca “perdia a oportunidade de ver mais um doente”.
Quanto às razões que o fizeram regressar a Portugal, João Lobo Antunes cita Robert Oppenheimer, físico que dirigiu o projecto Manhattan (que desenvolveu a bomba atómica). Mais tarde, o físico foi posto de parte a nível político por suspeitas de espionagem para a União Soviética. Mas nunca abandonou os EUA, e um amigo citou-o a justificar-se: “Raios! Acontece que amo o meu país.”
Já sobre os anos em Portugal, quando veio dar aulas para a FMUL, o neurocirurgião falou do crescimento da ciência, de pessoas que o marcaram — como o ex-ministro da Ciência José Mariano Gago, Graça Carvalho, o filósofo Fernando Gil ou Fernando Ramôa Ribeiro, antigo presidente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia —, lembrou o tempo em que foi mandatário das campanhas presidenciais de Jorge Sampaio e Cavaco Silva e referiu a unificação das universidades de Lisboa como exemplo de que os compromissos são possíveis por um bem maior.
Mas o neurocirurgião voltou ao bloco operatório e ao universo da medicina, onde ajudou a dar mais vida a alguns, a tranquilizar muitos, mas também testemunhou aqueles que a doença venceu. “O acto cirúrgico é sagrado”, defendeu. “Purificamos as mãos”, disse, referindo-se à lavagem antes da cirurgia. Um ofício de que, ao contrário das aulas, João Lobo Antunes ainda não se despediu: “Enquanto as mãos me obedecerem e o cérebro souber mandar, vou continuar.” A plateia levantou-se e bateu palmas mais de um minuto.