Os livros do esquecimento
Não se fale de um livro e ele morre. É uma frase repetida por editores sobre um silêncio que condena, que não deixa vestígios para a construção de uma memória e para a sua capacidade de ser alimentada. Sem esse discurso sobre, o leitor não pode fazer como Tamina, a personagem de Milan Kundera que vivia com uma missão muito pessoal: trabalhar o cérebro de modo a não esquecer o rosto do marido. Ela diz da memória pessoal e da dos homens enquanto colectivo.
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Não se fale de um livro e ele morre. É uma frase repetida por editores sobre um silêncio que condena, que não deixa vestígios para a construção de uma memória e para a sua capacidade de ser alimentada. Sem esse discurso sobre, o leitor não pode fazer como Tamina, a personagem de Milan Kundera que vivia com uma missão muito pessoal: trabalhar o cérebro de modo a não esquecer o rosto do marido. Ela diz da memória pessoal e da dos homens enquanto colectivo.
Tamina serviu a Kundera para trabalhar, entre outros, o tema do esquecimento na Checoslováquia invadida pela União Soviética. Nos anos que se seguiram a esse Verão de 1968, a sociedade programou-se para esquecer o passado. Tamina, a mulher a quem mataram o marido, decidiu resistir à ordem para apagar da memória, anotando todos os vestígios de uma existência ameaçada de maneira a impedi-la de se esfumar — é um dos sete contos que compõem O Livro do Riso e do Esquecimento, ensaio literário sobre a memória de um autor muito valorizado nas décadas de 70 e 80 que passou a ser visto com alguma desconfiança pela crítica quando se tornou um best-seller. Os seus livros vendem em todo o mundo, traduzidos, reedita- dos, permitindo-lhe uma confortável vida de ex-exilado político em Paris.
Passados 45 anos desde que se estreou com Risíveis Amores, em 1969, Milan Kundera recupera presti´gio e apontam-no como candidato a Nobel talvez num dos momentos menos criativos da sua vida literária. Está longe de ser um autor esquecido. Nas livrarias há sempre um exemplar de Kundera. Ele é, em simultâneo, best-seller e long-seller, um escritor sempre procurado cujas vendas disparam a cada novidade. A memória é dos que ficam, como ele. Mas arrisque-se outra lista — arrisque-se o exercício de procurar os que inexplicavelmente apareceram e desapareceram sem deixar rasto embora tivessem tudo para fazer parte da tal memória que Tamina fez por não perder porque era tudo o que tinha. Um nome, dez, 15, 50... autores e títulos que passaram ao lado da atenção de lei- tores, livreiros e muitas vezes da crítica. Foram apostas de editores que escolheram publicá-los seguindo um u´nico critério, a qualidade, uma valorização subjectiva que não escapa ilesa às regras do mercado — foram apenas o que foram, e não volumes à espera de um dia melhor ou da simples destruição.
Tamina, a personagem-metáfora que luta contra o esquecimento no livro de Kundera, é aqui uma espé- cie de guia para recuperar livros que se perderam na memória recente mas ainda têm uma presença física, ainda que no limiar da invisibilida- de. Mais do que as novidades, esses “livros perdidos”, os condenados pela falta de um discurso que produza memória colectiva, protagonizam cada edição da Feira do Livro — e a de Lisboa começou ontem. São eles os grandes achados e só estão vivos porque alguém os leu e não os esqueceu.
A possibilidade de uma lista
E pode ser por causa de uma frase. Um papel verde-alface a marcar a página fechada: “Em italiano exis- tem duas palavras sono e sonho, enquanto o napolitano tem uma só, suonno.” Original de 2001, Montedidio foi editado pela primeira vez em Portugal pela Ambar, saiu de circulação e voltou reeditado pela Bertrand em 2012. É considerado um dos grande livros contemporâneos em Itália. Escrito por Erri di Lucca (Nápoles, 1950), poeta, tradutor, revolucionário, operário, autor múltiplo, é o relato do quotidiano de um rapaz de 13 anos, na- politano como o escritor, a quem o mestre Errico ensina como quem ensina um ofício que cada dia é curto, como “uma dentada” — esse quotidiano em que o rapaz aprende a palavra ammor, com consoante dobrada, e a querer fazer voar um pedaço de madeira. A escrita é depurada, os capítulos breves, cada palavra medida porque “neste bair- ro de vielas chamado Montedidio se se quiser cuspir para o chão não se encontra um espaço livre entre um pé e o outro”. O aplauso em Itália ditou-lhe traduções, mas editar é quase sempre uma aposta em que ganhar e perder são hipóteses iguais à partida.
Numa geografia próxima está A Ilha dos Demónios, da catalã Carmen Laforet (1921-2004). A Cavalo de Ferro editou-o em 2009, era o livro que se seguia ao romance que a tinha apresentado como uma das grandes escritoras espanholas do século XX: Nada, com o qual venceu o prémio Nadal, em 1994. Em A Ilha dos Demónios, publicado oito anos depois do sucesso inicial, Laforet recupera o espírito da jovem protagonista de Nada, que a crítica chegou a comparar a Holden Caulfield, o rapaz de À Espera no Centeio, de J.D. Salinger.
Desta vez, a acção decorre em 1938, ano de mudança na vida de Marta Camino, na passagem da adolescência para a idade adulta. É Las Palmas, nas Canárias, em ambiente de Guerra Civil, numa família entre o exílio e o trauma. O tempo entre Nada e este A Ilha dos Demónios foi precioso para confirmar o talento de Laforet. A insegurança que sentiu entre um livro e o outro passou a fazer parte da sua biografia e a acrescentar-lhe interesse.
Os títulos sucedem-se, o ritmo é sôfrego, tanto tem sido o esquecimento. São dezenas de livros perdidos mas “imperdíveis”. Mede-se o exagero do qualificativo enquanto se acrescentam títulos à lista à custa da supressão de outros. Pede-se ajuda a editores, críticos, tradutores, leitores. Bibliófilos. Mas são os editores que melhor sabem da relação entre o que se publica e o que se vende, do que sai sem quase ser visto. Enviam listas mais ou menos extensas. Não se repetem e recomendam-se uns aos outros. Nomeiam ficção e poesia entre os livros mais esquecidos a encontrar no Parque Eduardo VII. Por exemplo: em 2005, passou discreto um dos grandes poemas épicos numa tradução a reter, de José Lino Grunewald. Falamos de Os Cantos, de Ezra Pound, editado pela mesma Assírio & Alvim que tem colocado no mercado muita da poesia que se publicou nas últimas décadas em Portugal. Não há editor que a propósito da Feira do Livro não fale dos saldos da Assírio — como dos da Relógio D’Água, da Cavalo de Ferro ou da Cotovia... Os clássicos, lembram. Mas esses são os que sempre vão vendendo. Outro exemplo: O Bom Soldado Svejk, do checo Jaroslav Hasek (1883-1903), sátira que desmonta de forma corrosiva o poder de um Estado. O original foi publicado em 1929 e a Tinta-da- China traduziu-o na íntegra, pela primeira vez, em 2012. Em português do Brasil, um clássico menos conhecido mas a merecer lugar de honra entre os grandes romances a não esquecer: A Menina Morta, de Cornélio Penna (1896-1958). Publicado em 2006 na colecção de Literatura Brasileira coordenada por Abel Barros Baptista para a Cotovia, é um marco pela originalidade, pela elegância da escrita e pelo modo como se dedicou a um universo mais pessoal num tempo de agitação social.
Todas as geografias
A passagem para a senhora que se segue é intuitiva. Eudora Welty (1909-2001), uma das grandes prosadoras da América, de quem a Antígona publicou, em 2013, As Maçãs Douradas (1949), um prodigioso livro de contos que guarda o que de mais precioso e cru existe no imaginário do interior sul do Estados Uni- dos. Welty é com frequência nomeada como inspiração de muitos escritores que tentam captar-lhe a simplicidade aparente que vem de um talento raro de observadora do quotidiano e do seu olho clínico. O outro, a nu, é o seu tópico. É exímia em captar-lhe a gíria e o inconfessável, exercício de que resultam livros de grande riqueza linguística e densidade humana. O feito de verosimilhança, por mais desconcertante, acontece. Um pouco em contraste com a alucinante escrita do argentino Roberto Arlt e Os Sete Loucos. Não consta dos tops este homem nascido em Buenos Aires, em 1900, com a história de Erdosain, um cientista perdido nas suas convicções e imerso numa espiral de mal-entendidos que serviu ao autor argentino para ensaiar, num estilo surreal, uma nociva concepção de sociedade e para romper com “os bons modos da época” e do que tinha sido até então a sua própria escrita entre a autobiografia e a escola prussiana, a origem da sua família. “Aquilo a que chamamos loucura é a falta de hábito do pensamento dos outros”, lê-se, e é bom que haja caneta à mão para que a mente retenha este livro de 1929, editado em português em 2003, pela Cavalo de Ferro.
Sabe-se que a subversão é um dos caminhos para permanecer ou ser- se esquecido. O egípcio radicado em França Albert Cossery (1913-2008) não produziu muito mas nenhum dos seus oito livros merece se não um lugar de destaque em qualquer estante. São dele Os Homens Esquecidos de Deus e Mendigos e Altivos, ambos editados pela Antígona. Um modo de escrever em que o escárnio convive com grandes descrições do que pode ser a maior miséria humana, nunca incompatíveis com o riso. Coincide na estante com Os Javaneses, romance de Jean Malaquais (1908-1998), francês nascido polaco, vencedor do prémio Renaudot em 1939. Poderia ter como subtítulo os “homens também esquecidos por Deus” — no caso, os trabalhadores de uma mina na ilha de Java, na década de 30. Malaquais escreve sobre viver na exclusão, no limite de meios e de linguagem, criando códigos de sobrevivência — e assim expõe alguns dos seus ideais políticos, próximos do trotskismo, facto que não compromete em nada a qualidade literária do livro.
Está feita a ponte para o Leste. A Vida e o Sonho de Sukahanov revelou Olga Grushnin (Moscovo, 1971) em mais um exemplo, agora actual, de que ideologia e boa literatura são conjugáveis. Sukahanov é um homem de mais de 50 anos satisfeito com as suas conquistas pessoais até que o Kremlin muda de comando. Não é tanto a acção o que conta, mas o modo como a escritora consegue dar densidade ao que poderia ser uma existência banal de mais um ser humano comprometido com o seu passado. A Bizâncio publicou este romance em 2007. O que é feito dele?
A lista tenta ser abrangente nas suas limitações. Clássicos, contemporâneos, geografias diversas. A norte, o norueguês Jon Fosse (n. 1959), com É a Aless, novela de um autor conhecido sobretudo pela sua dramaturgia. Não chega a cem páginas, mas é como imergir na mente de alguém e acompanhar as suas hesitações, os seus impulsos, percebendo nessa cadência única uma melodia universal. A Cotovia publicou-o em 2008. O vizinho do lado é sueco. Chama-se Torgny Lindgren (n. 1938) e escreveu um romance sobre o compromisso de um jorna- lista com a realidade. A acção arranca em 1948, ano de um surto de tu- berculose numa zona inóspita da Suécia onde o correspondente de um pequeno jornal é acusado de inventar um périplo gastronómico muito pouco conveniente. O romance chama-se A Última Receita na tradução portuguesa, também de 2008, da Cavalo de Ferro.
Lembrar os imerecidamente esquecidos e ter de não falar da maioria é um exercício doloroso. Na ficção de Kundera, Tamina tinha um rosto para não apagar e ele era tudo. Não é o caso desta lista em aberto. Entre os grandes livros esquecidos das livrarias, dos leitores, dos jornais, há muitos em português. A escolha vai para Uma Aventura Secreta do Marquês de Bradomín, de Teresa Veiga, pseudónimo de uma autora nascida em Lisboa em 1945 que prefere não falar dos livros que escreve. Não há um rosto, apenas nomes de personagens contadas entre silêncios neste livro de contos — que talvez seja oportuno neste momento em que os leitores parecem estar a reconciliar- se com o género.