Este jazz que veio de Saturno
Não devia ter grande sucesso em aeroportos, mas Sun Ra gostava de se fazer acompanhar de um passaporte em que se lia como local de nascimento “Saturno” e de que não constava qualquer data. Pelo menos assim confidenciou o biógrafo John Szwed à National Public Radio, explicando que teve de se esfalfar para encontrar prova de que Herman Blount, mais tarde chamado Sun Ra, teria nascido a 22 de Abril de 1914, em Birmingham, no Alabama. É natural que a Terra parecesse demasiado vulgar para gerar um ser tão desprendido de convenções e tão imune às leis aplicáveis aos comuns mortais. Tomemos a lei da gravidade como exemplo. Nada na música de Sun Ra puxava para baixo Tudo acontecia em sentido contrário, a partir de um jazz que tragava a tradição das big bands de Duke Ellington ou Count Basie e o devolvia numa visão expandida, de um psicadelismo em delírio e de uma espiritualidade quase cartoonesca, como se Sun Ra avançasse pela história do jazz aos comandos de uma nave espacial.
Apesar de existirem provas de que o seu nome verdadeiro era, de facto, Herman Blount, Sun Ra sempre negou todas as evidências, alegando que não passava de um reles pseudónimo. Possivelmente porque não se revia no ambiente em que nasceu e cresceu; certamente porque a sua crença mística de que cumpria um papel de revolução no mundo era incompatível com uma existência comum a qualquer outra.
David Stubbs, jornalista inglês das revistas Uncut e The Wire que acaba de publicar um artigo sobre o centenário de Sun Ra no site The Quietus, afirma ao Ípsilon não ter dificuldade em perceber o aparecimento de Saturno nos dados biográficos de Blount. “Sun Ra veio de Birmingham, Alabama, um sítio terrível para um negro nascer em 1914. Quem é que pode culpá-lo por rasgar as cartas que a vida lhe deu e reinventar a sua história?”. No entanto, ressalva Stubbs, não é descabido olhar para lá da fantasia biográfica e classificar Ra como um ser quase alienígena, “fora deste mundo”. “Ele não tinha os apetites terrenos normais em pessoas normais — não demonstrava qualquer fraqueza pela bebida, pelas drogas, por má comida, e parecia indiferente ao sexo. Nesse sentido, não era muito humano. Era capaz de dirigir toda a sua energia para a música e para uma filosofia autodidacta.”
A visão da Arkestra
A transformação de Blount nesse ser que professava a sua chegada à Terra com o fito de a transformar dar-se-ia, alegadamente, nos tempos da universidade. Segundo terá chegado a confessar, para disfarçar dificuldades financeiras criou a ficção de que teria sido teletransportado para Saturno e sido aconselhado a deixar os estudos por estarem previstos tempos conturbados nas escolas. Deveria antes dedicar a sua vida a espalhar uma mensagem através da música. Assim fez. E pouco depois de uma complicada passagem pelo exército durante a Segunda Guerra Mundial, alistou-se na banda de Fletcher Henderson, que actuava no Club DeLisa, em Chicago. Aí foi deixando fervilhar um novo paradigma musical, que começou a explorar livremente a partir de 1952, quando mudou legalmente o seu nome para Le Sony’r Ra e encontrou os saxofonistas John Gilmore e Marshall Allen (actual líder da banda), com quem fundou a sua Arkestra — que assumiu também nomes como Myth-Science, Solar Myth e Omniverse antes de se fixar em Sun Ra Arkestra. Arkestra, no entendimento mais prosaico, era apenas uma ortografia que aproximava orchestra da pronúncia dos afro-americanos do Sul. Mas, o que é muito mais condizente com o espírito sideral de Ra, remetia para a ideia de que “o começo é o fim” (começa por “AR” e termina em “RA”) ou para a imagem da Arca de Noé (Noah’s ark, em inglês), cujo destino final seria a grande união cósmica entre todos os povos.
Desde o início, a Arkestra teve a missão de ser o veículo para Sun Ra levar a cabo uma música que queria ser poesia e performance e happening, uma música que queria estar para lá dos sons, integrar tudo, ser o mais próxima possível da própria vida, e que contagiava enquanto visão transcendente. Tanto assim que esse objectivo declarado — e, quem sabe, encomendado por seres saturnais — de mudar o mundo ficou impregnado na visão musical daqueles que foram puxados por um Ra patriarcal e profético para a sua pequena comunidade de discípulos. Os membros da Arkestra viviam e ainda vivem juntos na mesma casa de Filadélfia, para que, no limite, possam ensaiar 24 horas por dia.
Ainda hoje, o fagotista/saxofonista Danny Ray Thompson confessa ao Ípsilon a sua fé absoluta numa música “que ia espantar e mudar o mundo, torná-lo um local lindo, levar a que governos mudassem de ideias, os países deixassem de lutar e passassem a amar-se”. “A música da Sun Ra Arkestra mudaria o mundo para as gerações seguintes. O Sun Ra estava a fazer isso”, diz Thompson, na voz emocionada de quem se espanta pelo declínio global, consequência de música a menos. Até à sua morte, em 1993, Sun Ra terá, acredita, funcionado como tampão, desacelerando e adiando o actual estado do planeta.
“Tal como Stockhausen”, reflecte David Stubbs, “Sun Ra acreditava com toda a convicção que a música podia mudar o mundo profundamente — não apenas atiçar revoluções, mas impelir saltos evolucionários no estado da humanidade. Nada disso aconteceu. Contudo, os músicos da Arkestra abriram as portas a possibilidades infinitas para serem exploradas pelos músicos subsequentes.”
Influência em expansão
Se não houve demissões em barda por parte dos governantes mundiais, nem exércitos a trocarem rajadas de disparos por abraços aos “inimigos”, se nem tão-pouco os habitantes da Terra deram mostras de uma súbita consciencialização ambiental, artisticamente a passagem de Sun Ra pelo seu planeta adoptivo deixou marcas profundas em todos os campos musicais. A integração de uma linguagem libertária por parte do grupo seria tão inspiradora para formações do free jazz, como o Art Ensemble of Chicago, como para o funk em expansão de George Clinton e os seus Parliament/Funkadelic, ou até mesmo para o proto-punk rock dos Stooges — Iggy Pop sempre se afirmou um devoto — e dos MC5. “Pode ver-se e ouvir-se a sua influência em George Clinton e os Parliament/Funkadelic”, concorda o crítico de jazz da revista Point of Departure, Stuart Broomer, “e também nas obras para múltiplas orquestras de Anthony Braxton, através da imaginativa complexidade de relações entre música, história e texto. Penso que Sun Ra demonstrou que não há limites para aquilo que um músico pode alcançar ao ligar som, imagem e linguagem”. Stubbs, por sua vez, acrescenta que Ra “foi um exemplo colossal para os músicos de funk, demonstrando com o seu ruído garboso e alegre e com o seu futurismo toda uma nova paleta de possibilidades para a música negra”. Para os artistas rock, acrescenta, terá “desvendado um universo de sons futuristas avant-garde que fazem os Led Zeppelin soar comparativamente minúsculos”.
A palavra futurismo tem aqui um lugar fundamental. Muito embora fosse, como qualquer inovador, alguém capaz de puxar o futuro para terras do presente, a vertente cosmológica de Sun Ra e as referências constantes ao espaço (não há título mais importante na sua obra do que Space is the Place, jazz, funk e soul agitados dentro de um shaker intergaláctico) faziam convergir quase impossivelmente referências ancestrais egípcias, toda a história do jazz e uma gama de sons que rompiam a normalidade da música graças à introdução precoce dos sintetizadores e da electrónica. “Como diziam aqueles que seriam talvez os parentes musicais mais próximos da Arkestra, os membros do Art Ensemble of Chicago, Great black music from the ancient to the future”, comenta David Stubbs. “O escopo de Ra era vasto — a maioria do jazz, mesmo com inovadores como Charlie Parker, confinava-se a desenvolvimentos harmónicos com escassos anos de vida. Sun Ra imaginava um passado em que os negros reclamavam o papel que ele achava que os brancos tinham apagado na sua mitificada reescrita de tempos antigos — sentia que isto era verdade em relação à Bíblia. Porque não reclamar o passado, da mesma maneira que o haviam feito contadores de histórias e fabricantes de mitos?”
“Ele estava imerso em blues e outras formas antigas afro-americanas e era um estudioso de culturas ancestrais”, acrescenta Broomer. “Por vezes assistimos a uma rápida transição entre o passado identificável e o novo desconhecido, criando uma fricção que é a experiência do presente. E quando ouvimos a Arkestra tocar Fletcher Henderson ou Duke Ellington, é como se Sun Ra extraísse mais de cada um deles do que qualquer outro músico — a energia e a precisão de Henderson, a elegância, a harmonia e a riqueza sónica de Ellington.”
Em Portugal
A música de Fletcher Henderson, curiosamente, seria protagonista do segundo de dois concertos da Sun Ra Arkestra no Jazz em Agosto de 1985. Depois de, três anos antes, Rui Neves ter conseguido através de um amigo brasileiro — “um engenheiro electrónico que vivia em Sintra e tinha conhecido bem o Sun Ra em Itália” — o contacto para trazer Ra pela primeira vez a Portugal, para actuar no Festival Vilar de Mouros, o programador voltaria a assegurar a presença da lenda viva na segunda edição do Jazz em Agosto. Embora não podendo competir em números com os 15 mil que assistiram no Minho ao concerto, o sucesso no Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian foi de tal ordem que Madalena Perdigão, directora do Serviço Acarte, autorizou a entrada de mais de cem pessoas que não tinham já conseguido bilhete.
Dado o entusiasmo gerado pela histórica actuação — gravada pela RTP e exibida na última edição do festival, em Agosto passado —, Rui Neves quis repetir o concerto no dia seguinte. “Só que a doutora Madalena, logo após o concerto, tinha saído para um périplo nos Açores”, recorda. “Levei todo o dia seguinte ao telefone a tentar apanhá-la nas várias escalas que ia fazendo. E lá consegui a autorização.” A segunda noite, depois da performance delirante da véspera em que Ra parecia querer provar ter nascido, de facto, em Saturno, fez-se de um repertório absolutamente respeitador da tradição, apoiado nos temas de Fletcher Henderson. A estupefacção foi total. “Acho que é isso que o define melhor”, defende Neves. “Aquela forma de transportar a história completa do jazz com ele, desde os primórdios até à fase que viveu.”
Exemplo que reforça aquilo que os músicos da Arkestra sempre dizem, frisando que quase toda a sua música estava escrita e era por ele controlada ao pormenor: com Sun Ra nada havia de aleatório. Nem mesmo a escolha de Saturno para berço da sua ficção.
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Não devia ter grande sucesso em aeroportos, mas Sun Ra gostava de se fazer acompanhar de um passaporte em que se lia como local de nascimento “Saturno” e de que não constava qualquer data. Pelo menos assim confidenciou o biógrafo John Szwed à National Public Radio, explicando que teve de se esfalfar para encontrar prova de que Herman Blount, mais tarde chamado Sun Ra, teria nascido a 22 de Abril de 1914, em Birmingham, no Alabama. É natural que a Terra parecesse demasiado vulgar para gerar um ser tão desprendido de convenções e tão imune às leis aplicáveis aos comuns mortais. Tomemos a lei da gravidade como exemplo. Nada na música de Sun Ra puxava para baixo Tudo acontecia em sentido contrário, a partir de um jazz que tragava a tradição das big bands de Duke Ellington ou Count Basie e o devolvia numa visão expandida, de um psicadelismo em delírio e de uma espiritualidade quase cartoonesca, como se Sun Ra avançasse pela história do jazz aos comandos de uma nave espacial.
Apesar de existirem provas de que o seu nome verdadeiro era, de facto, Herman Blount, Sun Ra sempre negou todas as evidências, alegando que não passava de um reles pseudónimo. Possivelmente porque não se revia no ambiente em que nasceu e cresceu; certamente porque a sua crença mística de que cumpria um papel de revolução no mundo era incompatível com uma existência comum a qualquer outra.
David Stubbs, jornalista inglês das revistas Uncut e The Wire que acaba de publicar um artigo sobre o centenário de Sun Ra no site The Quietus, afirma ao Ípsilon não ter dificuldade em perceber o aparecimento de Saturno nos dados biográficos de Blount. “Sun Ra veio de Birmingham, Alabama, um sítio terrível para um negro nascer em 1914. Quem é que pode culpá-lo por rasgar as cartas que a vida lhe deu e reinventar a sua história?”. No entanto, ressalva Stubbs, não é descabido olhar para lá da fantasia biográfica e classificar Ra como um ser quase alienígena, “fora deste mundo”. “Ele não tinha os apetites terrenos normais em pessoas normais — não demonstrava qualquer fraqueza pela bebida, pelas drogas, por má comida, e parecia indiferente ao sexo. Nesse sentido, não era muito humano. Era capaz de dirigir toda a sua energia para a música e para uma filosofia autodidacta.”
A visão da Arkestra
A transformação de Blount nesse ser que professava a sua chegada à Terra com o fito de a transformar dar-se-ia, alegadamente, nos tempos da universidade. Segundo terá chegado a confessar, para disfarçar dificuldades financeiras criou a ficção de que teria sido teletransportado para Saturno e sido aconselhado a deixar os estudos por estarem previstos tempos conturbados nas escolas. Deveria antes dedicar a sua vida a espalhar uma mensagem através da música. Assim fez. E pouco depois de uma complicada passagem pelo exército durante a Segunda Guerra Mundial, alistou-se na banda de Fletcher Henderson, que actuava no Club DeLisa, em Chicago. Aí foi deixando fervilhar um novo paradigma musical, que começou a explorar livremente a partir de 1952, quando mudou legalmente o seu nome para Le Sony’r Ra e encontrou os saxofonistas John Gilmore e Marshall Allen (actual líder da banda), com quem fundou a sua Arkestra — que assumiu também nomes como Myth-Science, Solar Myth e Omniverse antes de se fixar em Sun Ra Arkestra. Arkestra, no entendimento mais prosaico, era apenas uma ortografia que aproximava orchestra da pronúncia dos afro-americanos do Sul. Mas, o que é muito mais condizente com o espírito sideral de Ra, remetia para a ideia de que “o começo é o fim” (começa por “AR” e termina em “RA”) ou para a imagem da Arca de Noé (Noah’s ark, em inglês), cujo destino final seria a grande união cósmica entre todos os povos.
Desde o início, a Arkestra teve a missão de ser o veículo para Sun Ra levar a cabo uma música que queria ser poesia e performance e happening, uma música que queria estar para lá dos sons, integrar tudo, ser o mais próxima possível da própria vida, e que contagiava enquanto visão transcendente. Tanto assim que esse objectivo declarado — e, quem sabe, encomendado por seres saturnais — de mudar o mundo ficou impregnado na visão musical daqueles que foram puxados por um Ra patriarcal e profético para a sua pequena comunidade de discípulos. Os membros da Arkestra viviam e ainda vivem juntos na mesma casa de Filadélfia, para que, no limite, possam ensaiar 24 horas por dia.
Ainda hoje, o fagotista/saxofonista Danny Ray Thompson confessa ao Ípsilon a sua fé absoluta numa música “que ia espantar e mudar o mundo, torná-lo um local lindo, levar a que governos mudassem de ideias, os países deixassem de lutar e passassem a amar-se”. “A música da Sun Ra Arkestra mudaria o mundo para as gerações seguintes. O Sun Ra estava a fazer isso”, diz Thompson, na voz emocionada de quem se espanta pelo declínio global, consequência de música a menos. Até à sua morte, em 1993, Sun Ra terá, acredita, funcionado como tampão, desacelerando e adiando o actual estado do planeta.
“Tal como Stockhausen”, reflecte David Stubbs, “Sun Ra acreditava com toda a convicção que a música podia mudar o mundo profundamente — não apenas atiçar revoluções, mas impelir saltos evolucionários no estado da humanidade. Nada disso aconteceu. Contudo, os músicos da Arkestra abriram as portas a possibilidades infinitas para serem exploradas pelos músicos subsequentes.”
Influência em expansão
Se não houve demissões em barda por parte dos governantes mundiais, nem exércitos a trocarem rajadas de disparos por abraços aos “inimigos”, se nem tão-pouco os habitantes da Terra deram mostras de uma súbita consciencialização ambiental, artisticamente a passagem de Sun Ra pelo seu planeta adoptivo deixou marcas profundas em todos os campos musicais. A integração de uma linguagem libertária por parte do grupo seria tão inspiradora para formações do free jazz, como o Art Ensemble of Chicago, como para o funk em expansão de George Clinton e os seus Parliament/Funkadelic, ou até mesmo para o proto-punk rock dos Stooges — Iggy Pop sempre se afirmou um devoto — e dos MC5. “Pode ver-se e ouvir-se a sua influência em George Clinton e os Parliament/Funkadelic”, concorda o crítico de jazz da revista Point of Departure, Stuart Broomer, “e também nas obras para múltiplas orquestras de Anthony Braxton, através da imaginativa complexidade de relações entre música, história e texto. Penso que Sun Ra demonstrou que não há limites para aquilo que um músico pode alcançar ao ligar som, imagem e linguagem”. Stubbs, por sua vez, acrescenta que Ra “foi um exemplo colossal para os músicos de funk, demonstrando com o seu ruído garboso e alegre e com o seu futurismo toda uma nova paleta de possibilidades para a música negra”. Para os artistas rock, acrescenta, terá “desvendado um universo de sons futuristas avant-garde que fazem os Led Zeppelin soar comparativamente minúsculos”.
A palavra futurismo tem aqui um lugar fundamental. Muito embora fosse, como qualquer inovador, alguém capaz de puxar o futuro para terras do presente, a vertente cosmológica de Sun Ra e as referências constantes ao espaço (não há título mais importante na sua obra do que Space is the Place, jazz, funk e soul agitados dentro de um shaker intergaláctico) faziam convergir quase impossivelmente referências ancestrais egípcias, toda a história do jazz e uma gama de sons que rompiam a normalidade da música graças à introdução precoce dos sintetizadores e da electrónica. “Como diziam aqueles que seriam talvez os parentes musicais mais próximos da Arkestra, os membros do Art Ensemble of Chicago, Great black music from the ancient to the future”, comenta David Stubbs. “O escopo de Ra era vasto — a maioria do jazz, mesmo com inovadores como Charlie Parker, confinava-se a desenvolvimentos harmónicos com escassos anos de vida. Sun Ra imaginava um passado em que os negros reclamavam o papel que ele achava que os brancos tinham apagado na sua mitificada reescrita de tempos antigos — sentia que isto era verdade em relação à Bíblia. Porque não reclamar o passado, da mesma maneira que o haviam feito contadores de histórias e fabricantes de mitos?”
“Ele estava imerso em blues e outras formas antigas afro-americanas e era um estudioso de culturas ancestrais”, acrescenta Broomer. “Por vezes assistimos a uma rápida transição entre o passado identificável e o novo desconhecido, criando uma fricção que é a experiência do presente. E quando ouvimos a Arkestra tocar Fletcher Henderson ou Duke Ellington, é como se Sun Ra extraísse mais de cada um deles do que qualquer outro músico — a energia e a precisão de Henderson, a elegância, a harmonia e a riqueza sónica de Ellington.”
Em Portugal
A música de Fletcher Henderson, curiosamente, seria protagonista do segundo de dois concertos da Sun Ra Arkestra no Jazz em Agosto de 1985. Depois de, três anos antes, Rui Neves ter conseguido através de um amigo brasileiro — “um engenheiro electrónico que vivia em Sintra e tinha conhecido bem o Sun Ra em Itália” — o contacto para trazer Ra pela primeira vez a Portugal, para actuar no Festival Vilar de Mouros, o programador voltaria a assegurar a presença da lenda viva na segunda edição do Jazz em Agosto. Embora não podendo competir em números com os 15 mil que assistiram no Minho ao concerto, o sucesso no Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian foi de tal ordem que Madalena Perdigão, directora do Serviço Acarte, autorizou a entrada de mais de cem pessoas que não tinham já conseguido bilhete.
Dado o entusiasmo gerado pela histórica actuação — gravada pela RTP e exibida na última edição do festival, em Agosto passado —, Rui Neves quis repetir o concerto no dia seguinte. “Só que a doutora Madalena, logo após o concerto, tinha saído para um périplo nos Açores”, recorda. “Levei todo o dia seguinte ao telefone a tentar apanhá-la nas várias escalas que ia fazendo. E lá consegui a autorização.” A segunda noite, depois da performance delirante da véspera em que Ra parecia querer provar ter nascido, de facto, em Saturno, fez-se de um repertório absolutamente respeitador da tradição, apoiado nos temas de Fletcher Henderson. A estupefacção foi total. “Acho que é isso que o define melhor”, defende Neves. “Aquela forma de transportar a história completa do jazz com ele, desde os primórdios até à fase que viveu.”
Exemplo que reforça aquilo que os músicos da Arkestra sempre dizem, frisando que quase toda a sua música estava escrita e era por ele controlada ao pormenor: com Sun Ra nada havia de aleatório. Nem mesmo a escolha de Saturno para berço da sua ficção.