O verme que veio das praias para nos dar um sangue universal
Empresa francesa de biotecnologia quer desenvolver sangue compatível com qualquer pessoa e que também poderá ser usado para manter órgãos destinados a transplantes e curar feridas de diabéticos.
Ao inspirarmos, levamos até aos pulmões ar, cujo oxigénio é depois transportado até às células. Aí o oxigénio cumpre a sua função: ajuda a produzir as moléculas energéticas que são o combustível para todo o trabalho celular. Sem estas moléculas energéticas, nada funciona. E sem o oxigénio, essas moléculas não são produzidas e as pessoas morrem.
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Ao inspirarmos, levamos até aos pulmões ar, cujo oxigénio é depois transportado até às células. Aí o oxigénio cumpre a sua função: ajuda a produzir as moléculas energéticas que são o combustível para todo o trabalho celular. Sem estas moléculas energéticas, nada funciona. E sem o oxigénio, essas moléculas não são produzidas e as pessoas morrem.
Os glóbulos vermelhos transportam o oxigénio na molécula de hemoglobina, que tem o dom de se ligar ao oxigénio, quando os glóbulos vermelhos estão nos pulmões. E de o largar mais tarde, quando eles chegam aos capilares, junto das células.
Por isso, quando alguém está com uma grande hemorragia necessita de uma transfusão de sangue para não morrer. Mas um dos problemas é as especificidades do sangue de cada um de nós. Os glóbulos vermelhos têm antenas à sua superfície, que podem ser de quatro grandes grupos: A, B, AB ou O. Cada pessoa tem um grupo sanguíneo diferente consoante estas antenas e há incompatibilidade entre a maioria dos grupos.
Se alguém do grupo sanguíneo A receber uma transfusão com sangue B, pode sofrer uma reacção imunitária e até morrer. Os médicos têm de ter cuidado com o sangue que cada doente recebe. Além do sistema ABO, têm de ter em conta a tipologia Rhesus de uma pessoa (+ ou -).
Estas condicionantes podem ser um problema porque o sangue disponível nos hospitais é finito. Por isso, há muito que os cientistas querem ultrapassar esta limitação, desenvolvendo um sangue universal. A descoberta de Franck Zal poderá responder a este problema.
“Comecei a estudar a Arenicola em 1993”, diz o investigador ao PÚBLICO. “No início, foi só investigação fundamental, para compreender a fisiologia deste verme marinho e como é que ele podia viver entre a maré-baixa e a maré-alta, e respirar na água e no mar.” O verme, de 10 a 15 centímetros, vive nas praias na costa da França, mas também em Portugal.
Com o tempo, a equipa descobriu que este poliqueta tem um tipo de hemoglobina, tal como os humanos, para transportar o oxigénio até às células. Só que essa hemoglobina não está dentro dos glóbulos vermelhos, como ocorre nos seres humanos, e anda livremente no sistema circulatório. Têm outras características: é 50 vezes maior do que a hemoglobina humana, o que permite transportar 50 vezes mais oxigénio.
As propriedades da hemoglobina da Arenicola marina tornam-na um candidato a “sangue universal”. Como não está envolvida numa célula, desaparece o perigo de uma reacção imunitária causada pela incompatibilidade dos grupos sanguíneos. Em 2006, a equipa de Franck Zal, que na altura trabalhava no Centro Nacional de Investigação Científica de França, demonstrou num artigo que esta hemoglobina continuava a funcionar em ratos e ratinhos, sem provocar respostas imunitárias significativas.
“O tempo médio de vida da molécula [nos ratos] é de 2,5 dias. Passada uma semana, a molécula é completamente metabolizada”, explica Franck Zal, para dizer que ela desaparece e os animais continuam saudáveis.
Em 2007, o cientista criou a empresa Hemarina, em Morlaix, para pôr no mercado produtos criados com a hemoglobina do Arenicola marina. Neste momento, estão em desenvolvimento três: “sangue” para manter os órgãos à espera de serem transplantados noutra pessoa; “sangue universal” usado quando há grandes hemorragias; e um tecido com a hemoglobina para ajudar a cicatrizar as feridas dos diabéticos.
“Estamos à espera da aprovação do sistema de regulação [francês] para começar os primeiros testes em humanos, que receberem transplantes de rins que levaram o nosso produto”, diz. Esta biotecnologia tem como objectivo manter o órgão oxigenado depois de ter sido colhido no dador — neste caso, os rins —, para que não comece a degenerar-se, o que inviabilizaria o transplante.
Para a hemoglobina a usar directamente na transfusão sanguínea em caso de hemorragias, Franck Zal diz que ainda é necessário fazer mais testes pré-clínicos, antes de se avançar para os ensaios em pessoas.
O mercado anual de transplantes é de cerca de 200 milhões de euros e de sangue é de 72.000 milhões, segundo o cientista-empresário, que não revela a quantidade de vermes necessários para produzir o equivalente a uma unidade de sangue nem quanto custa a sua produção: “É uma informação confidencial. Mas o verme é muito rico em hemoglobina.”