Francisco chega à Terra Santa sem bagagem histórica mas com uma agenda delicada
O 50.º aniversário do encontro de Paulo VI com o líder da Igreja Ortodoxa é o pretexto para a viagem, mas, na Jordânia, em Belém ou em Jerusalém, o Papa quer falar de paz, das perseguições aos cristãos e da violência que consome a região.
Francisco será o quarto Papa a visitar a região desde que, em 1964, Paulo VI escolheu Jerusalém como destino da sua primeira viagem para fora da Europa (e a primeira a realizar-se de avião) – um inédito que se transformou em história quando ele se reuniu com o então patriarca de Constantinopla, considerado o primeiro entre os líderes das igrejas ortodoxas. O 50.º aniversário desse encontro, que inaugurou a reaproximação das duas igrejas desavindas desde o cisma de 1054, é o pretexto para a visita de Francisco, que, no domingo, estará ao lado do patriarca Bartolomeu numa celebração ecuménica na Basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém. A igreja, erguida sobre o local onde, segundo a tradição, terá estado sepultado Jesus Cristo, está sob jurisdição conjunta de gregos ortodoxos, católicos e arménios, mas as quezílias são constantes. A cerimónia pretende, por isso, ser um apelo à unidade dos cristãos, sobretudo num momento em que, por toda a região, são denunciadas perseguições e ataques.
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Francisco será o quarto Papa a visitar a região desde que, em 1964, Paulo VI escolheu Jerusalém como destino da sua primeira viagem para fora da Europa (e a primeira a realizar-se de avião) – um inédito que se transformou em história quando ele se reuniu com o então patriarca de Constantinopla, considerado o primeiro entre os líderes das igrejas ortodoxas. O 50.º aniversário desse encontro, que inaugurou a reaproximação das duas igrejas desavindas desde o cisma de 1054, é o pretexto para a visita de Francisco, que, no domingo, estará ao lado do patriarca Bartolomeu numa celebração ecuménica na Basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém. A igreja, erguida sobre o local onde, segundo a tradição, terá estado sepultado Jesus Cristo, está sob jurisdição conjunta de gregos ortodoxos, católicos e arménios, mas as quezílias são constantes. A cerimónia pretende, por isso, ser um apelo à unidade dos cristãos, sobretudo num momento em que, por toda a região, são denunciadas perseguições e ataques.
Na celebração, Francisco terá bem perto de si alguém que foi directamente visado por essas ameaças: Bechara Rai, patriarca dos maronitas (igreja de rito oriental, maioritária entre os cristãos libaneses), foi avisado pela milícia xiita do Hezbollah de que a sua deslocação a Israel – com que o Líbano continua oficialmente em guerra – constitui “um pecado histórico” com “repercussões perigosas e negativas”.
Às ameaças dos radicais islâmicos, junta-se a discriminação em Israel, as limitações de culto em muitos países árabes, a violência confessional no Egipto ou as guerras que provocaram verdadeiros êxodos na Síria e no Iraque, ao ponto de, como alertou o patriarca latino de Jerusalém, Fouad Twal, a terra que foi o berço do cristianismo, estar à beira de se tornar uma “Disneyland espiritual”, à qual acorrem peregrinos de todo o mundo, mas onde já quase não vivem fiéis – no início do século XX eram 20% da população do Médio Oriente, hoje não serão mais de 2% a 4%.
O tema deverá estar no centro da visita, neste sábado, à Jordânia, que incluiu, além de uma missa em Amã à qual deverão assistir peregrinos vindos do Líbano e do Iraque, uma deslocação às margens do rio Jordão, onde Cristo terá sido baptizado, e a ida a um campo que acolhe refugiados sírios e iraquianos – uma das ocasiões em que o Papa promete falar e “rezar pela paz desta terra que tanto sofre”.
Diálogo inter-religioso
Mas uma viagem à Terra Santa é sobretudo uma oportunidade de aproximação às outras duas religiões monoteístas, com quem os cristãos partilham valores mas também uma história de ódios e incompreensões.
Francisco, ao contrário dos seus dois antecessores, não tem previsto um encontro a três com líderes judeus e muçulmanos, mas semanas antes da partida enviou um sinal de que foi bem acolhido pelas duas religiões. Viaja acompanhado pelo rabino Abraham Skorka e o professor de estudos islâmicos Omar Abboud, dois velhos amigos de Buenos Aires. Uma “novidade absoluta” nas palavras do porta-voz do Vaticano, com a qual Francisco quer mostrar, por actos e não apenas por palavras, que a convivência entre religiões é um ingrediente essencial para a paz. “Não espero que Francisco tenha uma varinha mágica e num passe consiga fazer a paz entre judeus e palestinianos, mas o seu carisma e a sua grande humildade podem enviar uma mensagem poderosa de paz a toda a região do Médio Oriente”, disse ao jornal católico Avvenire Skorka , que em 2010 co-assinou com o futuro Papa o livro Sobre o Céu e a Terra.
Além da simplicidade e cordialidade que se tornaram já uma imagem de marca, o Papa argentino inicia também esta visita com “menos bagagem” do que os seus antecessores, lembra o vaticanista John Allen, no jornal Boston Globe. João Paulo II – que cumpriu na Terra Santa uma das mais emblemáticas viagens do seu pontificado e foi responsável por uma revolução nas relações entre judeus e católicos – era oriundo da Polónia, país com séculos de anti-semitismo. Bento XVI, alemão, foi recrutado pela juventude hitleriana e na visita a Jerusalém, em 2009, desapontou quando se referiu ao Holocausto como “uma tragédia”. Três anos antes, indignara os muçulmanos com o discurso na Universidade de Rastibona quando recordou palavras de um antigo imperador bizantino que se referia ao islão como uma religião da violência.
"Com Francisco, o foco do diálogo inter-religioso é muito mais o presente – é sobre desafios da pobreza e da guerra e sobre aquilo que as religiões podem fazer juntas para os confrontar", sublinha o vaticanista.
Mas numa terra em que cada metro quadrado é reivindicado e a política se cruza a cada esquina com a religião, a visita está cheia de momentos sensíveis para o Papa.
Depois da Jordânia, Francisco voa no domingo directamente de helicóptero para a Cisjordânia. “Isto é uma forma de reconhecimento da Palestina”, congratulou-se o padre Jamal Khader, porta-voz da organização local da visita, dizendo estar certo de que o Papa, na missa que celebrará na praça frente à Basílica da Natividade ou na visita ao campo de refugiados de Dheisheh, “dirá qualquer coisa em defesa dos que sofrem, incluindo dos palestinianos que vivem sob ocupação e são humilhados diariamente”.
O Vaticano, assegurou à AFP uma fonte envolvida na preparação do programa, “quer evitar qualquer tipo de aproveitamento, mesmo arriscando desagradar a todas as partes”, mas é inevitável que cada um dos lados leia à sua maneira os discursos que Francisco fará – 14 em apenas três dias. É por isso certo que palavras mais duras dirigidas a Israel – mesmo que não se esperem novidades na posição do Vaticano em defesa de uma solução de dois Estados – podem azedar o ambiente da última e mais sensível das três etapas da visita.
Ambiente tenso em Israel
Francisco não ficará mais do que um dia em Israel e em Jerusalém, onde foram impostas apertadas medidas de segurança, o Papa não tem encontros previstos com fiéis. Mas há um compromisso que está a gerar controvérsia na curta estada, onde haverá sobretudo momentos simbólicos (como a visita ao memorial do Yad Vashem) e oportunidades de diálogo com líderes religiosos.
Antes de regressar ao Vaticano, na segunda-feira, Francisco vai celebrar missa no Cenáculo, a sala onde, segundo a tradição cristã, se realizou a Última Ceia e os apóstolos continuaram a reunir-se após a ressurreição. O actual edifício foi construído pelos cruzados e até 1948 funcionou ali uma mesquita. Mas, na tradição judaica, o edifício está construído sobre o local onde foi sepultado o rei David, e Israel, apesar de permitir a visita de peregrinos cristãos, não autoriza que ali se realizem serviços religiosos.
A excepção aberta para o Papa originou rumores, entretanto desmentidos, de que Israel estaria prestes a transferir a jurisdição do local para o Vaticano, ao abrigo de negociações sobre direitos de propriedade e impostos que decorrem praticamente desde que, em 1994, os dois Estados iniciaram relações diplomáticas. Foi quanto bastou para despertar a revolta de ultra-ortodoxos judeus, que se manifestaram várias vezes junto ao Cenáculo, e acrescentar mais uma sombra à preparação da visita, marcada já por uma onda de actos de vandalismo – em mosteiros e igrejas apareceram nas últimas semanas inscrições onde se lia “morte aos cristãos, aos árabes e a todos os que odeiam Israel”.
O Governo de Benjamin Netanyahu atribui estes ataques a extremistas judeus e deu instruções à polícia para reforçar a vigilância durante a visita do Papa, que, ao contrário dos seus antecessores, não viajará em veículos blindados. Os responsáveis israelitas mostram-se também convictos de que a deslocação marcará uma nova etapa nas relações entre os dois Estados e apontam como exemplo o facto de Francisco ter previsto ir ao cemitério onde está sepultado Theodor Herzl, fundador do sionismo – um gesto que os responsáveis palestinianos já classificaram como “infeliz”.
“Francisco vai atravessar fronteiras, fazer visitas a três realidades políticas. Vai pedir a todos que abram o seu espírito numa região marcada por rejeições mútuas”, disse à AFP o padre jesuíta David Neuhaus. “Será muito difícil continuar a ser amado por todos quando disser certas verdades.”