Fala, Faustin, fala!
É perturbador que Faustin Linyekula abra Le Cargo afirmando que “esta noite não irá contar histórias”. Esta noite, diz ele, estará à nossa frente apenas para dançar. É perturbador porque foi precisamente na distância provocada ou consentida pela dança que as histórias que este coreógrafo e bailarino congolês nos foi contando — histórias de fome, crueldade, sadismo, corrupção e miséria que têm feito o quotidiano de um país esquecido pela mesma Europa que por lá andou — deixaram de ser apenas histórias de um país distante, ultrapassaram a fronteira da ficção e se instalaram, em carne viva, na memória e no discurso de um público comprometido apenas com o exotismo de um negro belíssimo a dançar, tornando-se reais. A culpa, se houver culpa, não é da Europa nem dos europeus. Faustin diz mesmo que o dinheiro que foi ganhando de cada vez que dançava “nas auto-estradas da dança contemporânea” lhe serviu para colocar os irmãos mais pequenos a estudar, para ajudar a avó doente, para fazer algumas mudanças na vida daqueles que lhe eram próximos. Mas e nele, o que mudou? E para quê?
Le Cargo, que o Alkantara Festival traz dias 29 e 30 ao São Luiz, em Lisboa, é o beco sem saída no qual Faustin diz encontrar-se depois de anos a dançar e a entreter(-se) enquanto a guerra destruía o mesmo país que ele queria celebrar em cada palco negro de cada teatro cada vez mais distante dos quilómetros entre a selva onde fica a sua aldeia e as ruas torcidas e sujas, sempre sem bermas, de Kinshasa. Agora, explica, quer “uma dança para lá da geografia, da história e da narrativa”. Pergunta-se se alguma vez dançou “realmente”, para lá das tais histórias que, aos ouvidos de quem não sabe sequer onde fica o Congo, não dão para mais do que um apelo à piedade que ainda restar do bom senso humanista que convém ter. Eventualmente consciente disso — porque na Europa dos festivais e das redes e dos focos dedicados aos países terceiros é assim... uma noite choramos pelo Congo, na seguinte pelo Líbano, depois pelo Sudão, e no fim aplaudimos sempre —, Linyekula vira a culpa (e a responsabilidade) para si mesmo: “Se aquilo que fiz não foi se não contar histórias, então dez anos é um bom momento para fazer um balanço e perguntar se elas mudaram alguma coisa.”
É um gesto mais político do que pessoal, precisamente porque o que levou a que Faustin desaparecesse no interior das suas próprias coreografias foi a consciência de que o seu discurso seria tanto mais forte quanto melhor soubesse responder às expectativas de quem pagava. Entretanto, houve qualquer coisa que deixámos que ele perdesse e que a nós nos fosse tirada. Estava em Dinozord: The Dialogue Series III, o primeiro espectáculo que mostrou em Lisboa, em 2008: um movimento que recuava perante qualquer desejo de identificação, modo intuitivo de se proteger de uma máquina triturante a que sabia não ser capaz de resistir. Viu-se como foi com Berenice (2009), estranhíssima adaptação da tragédia de Racine para a Comédie Française em que o corpo da estrangeira era, nas mãos de Linyekula, uma cartografia do exílio, à qual teve de responder com um Pour en finir avec Berenice (2010), feito com os seus e, aí sim, fora de metáforas.
Um corpo perdido
Le Cargo é a vontade de reencontrar uma liberdade que tem tudo a ver com identidade. “Tenho, por vezes, a impressão de que sou um estrangeiro onde quer que esteja, porque nem os congolenses me vêem como um deles”, diz Linyekula. Já tinha sido assim com More, more, more... future (2009), tentativa de agarrar o país olhando para a realidade e recusando a utopia como promessa de mudança. Mas aí — e talvez isso explicasse o desconcerto a que sujeitava o seu discurso — ainda era Faustin a observar os outros, chamando a si a responsabilidade de mudança. Como diz em Le Cargo, dançar tornou-se uma forma de ajudar, de fazer.
Em Drums and Digging, o espectáculo que criou a seguir e que, de certo modo, prolonga o questionamento que estrutura Le Cargo, Faustin dizia: “Ao fim de dez anos dei-me conta de uma constante no meu trabalho: um desejo insaciável de falar da minha relação com o meu país, de testemunhar o que vejo à minha volta, de contar o modo como, dentro de um contexto político como o nosso, as pessoas continuam a viver, a sonhar, a dançar.” Mas nessa altura já não falava com o público. Já não nos olhava de frente. Uma marioneta que lhe era em tudo semelhante, ela sim, olhava para o público com a mesma inquietação e a mesma dúvida: “As histórias que contei mudaram alguma coisa? Mudaram-me a mim?”.
Em Le Cargo ainda encontramos Faustin Linyekula a procurar modos novos de gritar — como já o fez antes de mergulhar, uma vez baptizado, outras vezes torturado, nas águas escuras da expiação pós-colonialista europeia. Quando questiona se ao contar as suas histórias as dançou realmente, somos levados a duvidar da sua sinceridade. Devemos acreditar no que nos diz apenas porque se senta à nossa frente e se nos dirige, perguntando: “O que muda se contar as mesmas histórias de negros que sofrem e passam fome?” Mas quando ele deixa de dançar porque, de facto, as histórias que conta não se tornam mais reais apenas porque ouvimos as vozes e vemos as fotografias, o que vemos é um corpo perdido. “O corpo de um contador de histórias”, sublinha. “Quero caminhar em direcção à minha memória”, reivindica, como se não acreditasse que é através da dança que lá vai chegar.
É ele quem argumenta, a propósito da dança tradicional — que ele diria tribal se isso não criasse uma distância entre os corpos que ele quer, e não quer, que sejam iguais —, que é uma coisa satânica. Uma coisa que as pessoas deviam deixar de dançar, para que não se ritualize, não se formate, não se normalize. Para que não se torne, afinal, igual àquilo a que chamamos coreografias e que queremos protegidas das outras danças, das que são orgânicas, cruas e pessoais.
Quando a voz que no início nos dizia que ia dançar mas não dançava é a voz que ouvimos como se fosse música para o corpo que agora dança sem parar, percebemos que o que Faustin Linyekula nos pede é que não deixemos de ouvir as histórias, mesmo que sejam só histórias. O corpo é uma voz.
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É perturbador que Faustin Linyekula abra Le Cargo afirmando que “esta noite não irá contar histórias”. Esta noite, diz ele, estará à nossa frente apenas para dançar. É perturbador porque foi precisamente na distância provocada ou consentida pela dança que as histórias que este coreógrafo e bailarino congolês nos foi contando — histórias de fome, crueldade, sadismo, corrupção e miséria que têm feito o quotidiano de um país esquecido pela mesma Europa que por lá andou — deixaram de ser apenas histórias de um país distante, ultrapassaram a fronteira da ficção e se instalaram, em carne viva, na memória e no discurso de um público comprometido apenas com o exotismo de um negro belíssimo a dançar, tornando-se reais. A culpa, se houver culpa, não é da Europa nem dos europeus. Faustin diz mesmo que o dinheiro que foi ganhando de cada vez que dançava “nas auto-estradas da dança contemporânea” lhe serviu para colocar os irmãos mais pequenos a estudar, para ajudar a avó doente, para fazer algumas mudanças na vida daqueles que lhe eram próximos. Mas e nele, o que mudou? E para quê?
Le Cargo, que o Alkantara Festival traz dias 29 e 30 ao São Luiz, em Lisboa, é o beco sem saída no qual Faustin diz encontrar-se depois de anos a dançar e a entreter(-se) enquanto a guerra destruía o mesmo país que ele queria celebrar em cada palco negro de cada teatro cada vez mais distante dos quilómetros entre a selva onde fica a sua aldeia e as ruas torcidas e sujas, sempre sem bermas, de Kinshasa. Agora, explica, quer “uma dança para lá da geografia, da história e da narrativa”. Pergunta-se se alguma vez dançou “realmente”, para lá das tais histórias que, aos ouvidos de quem não sabe sequer onde fica o Congo, não dão para mais do que um apelo à piedade que ainda restar do bom senso humanista que convém ter. Eventualmente consciente disso — porque na Europa dos festivais e das redes e dos focos dedicados aos países terceiros é assim... uma noite choramos pelo Congo, na seguinte pelo Líbano, depois pelo Sudão, e no fim aplaudimos sempre —, Linyekula vira a culpa (e a responsabilidade) para si mesmo: “Se aquilo que fiz não foi se não contar histórias, então dez anos é um bom momento para fazer um balanço e perguntar se elas mudaram alguma coisa.”
É um gesto mais político do que pessoal, precisamente porque o que levou a que Faustin desaparecesse no interior das suas próprias coreografias foi a consciência de que o seu discurso seria tanto mais forte quanto melhor soubesse responder às expectativas de quem pagava. Entretanto, houve qualquer coisa que deixámos que ele perdesse e que a nós nos fosse tirada. Estava em Dinozord: The Dialogue Series III, o primeiro espectáculo que mostrou em Lisboa, em 2008: um movimento que recuava perante qualquer desejo de identificação, modo intuitivo de se proteger de uma máquina triturante a que sabia não ser capaz de resistir. Viu-se como foi com Berenice (2009), estranhíssima adaptação da tragédia de Racine para a Comédie Française em que o corpo da estrangeira era, nas mãos de Linyekula, uma cartografia do exílio, à qual teve de responder com um Pour en finir avec Berenice (2010), feito com os seus e, aí sim, fora de metáforas.
Um corpo perdido
Le Cargo é a vontade de reencontrar uma liberdade que tem tudo a ver com identidade. “Tenho, por vezes, a impressão de que sou um estrangeiro onde quer que esteja, porque nem os congolenses me vêem como um deles”, diz Linyekula. Já tinha sido assim com More, more, more... future (2009), tentativa de agarrar o país olhando para a realidade e recusando a utopia como promessa de mudança. Mas aí — e talvez isso explicasse o desconcerto a que sujeitava o seu discurso — ainda era Faustin a observar os outros, chamando a si a responsabilidade de mudança. Como diz em Le Cargo, dançar tornou-se uma forma de ajudar, de fazer.
Em Drums and Digging, o espectáculo que criou a seguir e que, de certo modo, prolonga o questionamento que estrutura Le Cargo, Faustin dizia: “Ao fim de dez anos dei-me conta de uma constante no meu trabalho: um desejo insaciável de falar da minha relação com o meu país, de testemunhar o que vejo à minha volta, de contar o modo como, dentro de um contexto político como o nosso, as pessoas continuam a viver, a sonhar, a dançar.” Mas nessa altura já não falava com o público. Já não nos olhava de frente. Uma marioneta que lhe era em tudo semelhante, ela sim, olhava para o público com a mesma inquietação e a mesma dúvida: “As histórias que contei mudaram alguma coisa? Mudaram-me a mim?”.
Em Le Cargo ainda encontramos Faustin Linyekula a procurar modos novos de gritar — como já o fez antes de mergulhar, uma vez baptizado, outras vezes torturado, nas águas escuras da expiação pós-colonialista europeia. Quando questiona se ao contar as suas histórias as dançou realmente, somos levados a duvidar da sua sinceridade. Devemos acreditar no que nos diz apenas porque se senta à nossa frente e se nos dirige, perguntando: “O que muda se contar as mesmas histórias de negros que sofrem e passam fome?” Mas quando ele deixa de dançar porque, de facto, as histórias que conta não se tornam mais reais apenas porque ouvimos as vozes e vemos as fotografias, o que vemos é um corpo perdido. “O corpo de um contador de histórias”, sublinha. “Quero caminhar em direcção à minha memória”, reivindica, como se não acreditasse que é através da dança que lá vai chegar.
É ele quem argumenta, a propósito da dança tradicional — que ele diria tribal se isso não criasse uma distância entre os corpos que ele quer, e não quer, que sejam iguais —, que é uma coisa satânica. Uma coisa que as pessoas deviam deixar de dançar, para que não se ritualize, não se formate, não se normalize. Para que não se torne, afinal, igual àquilo a que chamamos coreografias e que queremos protegidas das outras danças, das que são orgânicas, cruas e pessoais.
Quando a voz que no início nos dizia que ia dançar mas não dançava é a voz que ouvimos como se fosse música para o corpo que agora dança sem parar, percebemos que o que Faustin Linyekula nos pede é que não deixemos de ouvir as histórias, mesmo que sejam só histórias. O corpo é uma voz.