A missão dos intérpretes também é evitar conflitos na Babel da UE
Quem diria que o maior desafio de um intérprete do Parlamento Europeu é traduzir humor e emoção? Quem o diz é Francisco Falcão, que trabalha no PE há 20 anos.
Já aconteceu a Francisco Falcão e é dos momentos que considera mais desafiantes na interpretação – mesmo no Parlamento Europeu (PE), uma instituição que muitos não associarão a humor. “Mas há momentos de humor, sim”, diz o chefe de unidade portuguesa da Direcção-Geral de Interpretação de Conferências do PE, com o seu modo de falar calmo. “Pode ser sarcasmo, ironia, um pequeno remoque. E encontrar uma expressão que seja fiel ao espírito do orador – pode não ser textual, mas que corresponda – já é um grande desafio, e gosto disso.”
Há uma história que circula entre os intérpretes de alguém que, vendo-se sem saída numa situação destas, com um trocadilho intraduzível e inexplicável em tempo útil, encontrou uma solução. Disse apenas: “Agora riam-se.” A sala riu-se, a comunicação não ficou interrompida. “A interpretação é baseada na confiança e se há uma parte da sala que está a rir e outra parte que não está...”
Outro desafio é a emoção. Lembra por exemplo quando Malala Yousafzai, a jovem paquistanesa que quase morreu num ataque dos taliban por ter desafiado a ordem de que as raparigas não podiam ir à escola, recebeu o Prémio Sakharov. “O depoimento, apesar de tranquilo, era muito emotivo. O meu primeiro objectivo é passar a mensagem, e controlar a minha emoção”, nota.
Francisco Falcão traduz de espanhol, francês, inglês, alemão, neerlandês e sueco para português (sempre para português – no PE, o princípio é de que se interprete sempre para a língua materna).
“Curiosamente, espanhol foi a última língua que acrescentei.” Porque para interpretar não basta conhecer uma língua. “É preciso conhecer a estrutura do país, saber também cultura, isso é que nos ajuda a um bom trabalho”, sublinha. “Há vários níveis de conhecimento que exigem estarmos muito actualizados. Antes, o intérprete consumia muito papel, agora consome muita Internet para saber quais são os temas de actualidade.”
É que falar uma língua não é só falar uma língua: “Cada vez que se aprende uma língua, descobre-se outro mundo, outra forma de ver as coisas.”
No seu dia-a-dia, faz sobretudo interpretação em cabina, e, como chefe de unidade, gere uma equipa de intérpretes. A maior parte do tempo em Bruxelas, uma semana por mês em Estrasburgo, as duas sedes do PE. Começou a trabalhar como intérprete no Parlamento Europeu em 1994 como freelancer, como funcionário em 2000 e chefe de unidade em 2009, enumera.
Também explica que um dos maiores mal entendidos em relação à interpretação é que as pessoas acham que se traduz palavra a palavra. “Não, o intérprete fala mal haja uma unidade de sentido”. É um trabalho muito exigente “porque estamos a fazer algo que não é natural – ouvir e falar ao mesmo tempo”. O grau de concentração exigido é muito grande, e por isso o tempo máximo de interpretação é de 30 minutos e os intérpretes vão-se revezando. Isto na interpretação mais comum, a simultânea, feita em cabinas, na sala – “estamos presentes mas não estamos”.
É o grosso do trabalho do intérprete, embora também haja ocasiões em que é feita interpretação sucessiva – “alguém faz um discurso, o intérprete toma notas e reproduz noutra língua” – ou chuchotage ou sussurrada – “alguém está fisicamente presente entre duas pessoas e faz passar a mensagem: acontece em reuniões de alto nível, quando se vêem dois chefes de Estado e alguém atrás de um deles a sussurrar.”
Primeiro Interrail em 1977
Francisco Falcão sempre gostou de viajar e conhecer mais línguas e mundos. Em 1977, “com 16 anos e meio”, fez o seu primeiro Interrail. “Vinha de uma cidade de província (Santarém) e, quando soube que havia aquilo – tinha acabado de ser lançado –, pensei: ‘Eu quero fazer isto’ e juntei as minhas mesadas todas e fui.” O objectivo era chegar à Finlândia, “porque tinha conhecido uns finlandeses num festival de folclore em Santarém e achei aquilo tudo tão fascinante, tão diferente, que pensei: ‘Quero ver e conhecer isto’. E meti-me no comboio e fui naqueles comboios todos até à Finlândia. E não era nada de namoro nem nada, era mesmo ser diferente.”
Depois deste, seguiram-se muitos outros Interrails, e quem sabe não se seguirão mais: “Sei que há Interrail a partir dos 65 anos. Quando tiver, vou fazer de novo, com certeza. Interrail sénior, já não falta assim tanto quanto isso”, brinca.
Apesar de todas estas diferenças que o fascinaram desde cedo, Francisco Falcão defende que há uma identidade europeia: “Nós somos europeus, independentemente de sermos desta ou daquela nacionalidade – e somos, eu sou português, sinto-me completamente português, e estou em Bruxelas e não sou belga, nem de Bruxelas. Mas cada vez que vamos para outro continente, mesmo para os Estados Unidos, somos completamente europeus.” “O facto de estarmos unidos não quer dizer que tenhamos de ser homogéneos. É uma riqueza tão grande.”
Desfaz o mito de que com 28 membros, a parte da interpretação no Parlamento Europeu se tornou muito complicada. “Já quando entrou Portugal e Espanha se dizia isso, que a estrutura não aguentava mais línguas. E sempre que vem uma nova vaga diz-se o mesmo. Mas é uma questão técnica apenas. Complexa sim, mas apenas técnica.” São mais de 300 intérpretes a tempo inteiro para que cada eurodeputado tenha a possibilidade de se expressar na sua língua materna. “Às vezes, fala-se do inglês como língua franca. Mas eu, em qualquer língua que não seja a minha, digo o que posso e não digo o que quero”, o que pode ser uma grande desvantagem – “a capacidade de persuasão pode ser posta em causa.”
Já houve outras crises
Nos seus 20 anos de trabalho no Parlamento Europeu, Francisco Falcão acompanhou a construção europeia, “na fila da frente, não como actor, como espectador”. E isso permite-lhe responder à pergunta: “O que é que já fizemos?”: “Já fizemos muito. Estive em reuniões em que se discutiu a reunificação alemã, a integração da Eslovénia antes dos outros países da ex-Jugoslávia. A adesão dos países que chamaram o ‘big bang’, tudo isso é importante. O caminho que foi feito é enorme”. Também já houve outras crises: “Nos anos 1960, a crise foi enorme, a França, por causa dos seus interesses na agricultura, teve a política da cadeira vazia. Há momentos de crise, mas a integração europeia é feita disso.”
Em momentos como o actual, “há crispação”, admite, “e temos tendência a apresentar uma visão redutora do outro e simplificar – os países do Sul e os do Norte, os protestantes e os católicos…” enumera. “Mas temos de ler mais longe: em que foi baseado este projecto? Não há mais guerra entre nós. Esquecemos um pouco isso.”
Há desilusão, e desilusão tem-se traduzido numa subida de partidos eurocépticos, cuja representação neste próximo Parlamento Europeu deverá ser a maior de sempre. “Termos pessoas que são contra o projecto europeu dentro do Parlamento é uma coisa contraditória”, diz Francisco Falcão. “É uma novidade, até agora eram residuais. Como intérprete, apenas posso assistir.”
Como assistiu a muitos momentos históricos. Mas Francisco Falcão, a voz pausada, não vai mais nervoso nesses dias. “Não… não. Sentimos é que estamos a participar em qualquer coisa importante.” Para além da presença, um contributo. Porque a União Europeia, repete, “é um projecto de paz, de entendimento, é um projecto em que os conflitos – que há sempre – se resolvem pelas palavras, pela concessão, aqui e ali, pela negociação.” E os intérpretes trabalham justamente aqui: “Ao passarmos as palavras estamos a criar entendimento e a evitar o conflito, no fundo, é isso. É obviamente um contributo muito modesto, mas é isso.”
Esta é a última de onze paragens na Europa que vai a votos.