A crise europeia matou de vez o federalismo?

Proposto há 60 anos como ideal para a Europa, o federalismo saiu de moda mas mantém fiéis em todo o continente. Mas há um problema prévio: nunca se sabe bem do que se está a falar.

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Geert Wilders FRANÇOIS LENOIR/REUTERS

Catorze anos depois do célebre “discurso de Humboldt”, o termo parece irritar ainda mais pessoas e não só no Reino Unido. Em toda a Europa. Há quem brinque e fale em “f-word”, como quem se refere a um palavrão, uma coisa feia que não se deve dizer em voz alta.

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Catorze anos depois do célebre “discurso de Humboldt”, o termo parece irritar ainda mais pessoas e não só no Reino Unido. Em toda a Europa. Há quem brinque e fale em “f-word”, como quem se refere a um palavrão, uma coisa feia que não se deve dizer em voz alta.

Hoje, o federalismo saiu do limelight e é olhado como uma ideia “irrealista” e “utópica” que apenas seduz uma elite desligada da realidade. Isto na versão simpática. Para muitos, talvez a maioria dos cidadãos europeus, é um cenário distante, “perigoso” e até “aberrante”.

Há um problema prévio: é difícil falar sobre federalismo. Estamos rodeados, apesar de tudo, por conceitos políticos mais claros. É tão complicado falar de federalismo que há mais de 20 anos que o tema não surge de forma explícita em nenhuma sondagem do Eurobarómetro. “Perguntar num inquérito ‘É federalista?’ é ao mesmo tempo demasiado directo e demasiado delicado”, diz Pedro Magalhães, cientista político e professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. “Quando se fala em federalismo fala-se num pacote muito completo de instituições, e não há garantia de que a União Europeia possa alguma vez ser uma reprodução dos sistemas federais existentes. É melhor fazer perguntas sobre aspectos concretos do que poderia ser um sistema de tipo federal, e depois verificar em que medida as mesmas pessoas podem desejar alguns deles, mas não outros.”

Mesmo assim, e apesar desta distância dos cidadãos, o federalismo continua a ser levado a sério e a ser analisado em think tanks e universidades de toda a Europa. E continua a gerar manifestos, como o do Grupo Eiffel, que reúne peritos franceses e que acaba de propor uma “Comunidade do Euro” numa linha marcadamente federalista: essa “Comunidade”, que já tem uma moeda e um “destino comuns”, passaria a abranger também os negócios estrangeiros e a educação, investiria no digital, na investigação, nos transportes e redes de energia, teria novos instrumentos para absorver os choques económicos e apoiar os cidadãos mais vulneráveis, benefícios comuns para os desempregados e uma “harmonização parcial” do mercado de trabalho. Como funcionaria? Um novo parlamento da zona euro elegeria um governo com poderes executivos sobre a “Comunidade” (esses deputados seriam os membros do actual Parlamento Europeu).

Tudo isto pode parecer apenas mais uma ideia louca francesa. Mas há uma coisa que este novo manifesto evidencia: o arrastar da crise europeia, a incapacidade que o sistema tem em dar respostas aos problemas, os novos nacionalismos, as sucessivas vitórias dos extremistas em eleições locais e regionais, o número de eurodeputados anti-Europa que vão ser eleitos para o Parlamento Europeu… todos estes sinais estão a estimular federalistas em toda a Europa. Que vão encontrando inspiração em ideias aparentemente mais sensatas e consensuais, como a do investigador Hugo Brady, do Centre for European Reform: uma vez que os cidadãos europeus não querem nem o colapso do euro, nem um super-Estado federal, talvez sejam persuadidos por uma ideia intermédia, uma “terceira opção”. A saber: a perda temporária da soberania económica durante três ciclos eleitorais (15 anos), o que garantiria o nível de vida de uma geração e, ao mesmo tempo, dava “aos governos o tempo que eles precisam para consertar o falido sistema bancário, redesenhar a moeda única e fazer amplas reformas económicas”. Como se isto fosse pouco, Brady propõe também mais “união política” que, na sua versão, seria isto: “Definição de regras para garantir standards mínimos de administração nacional básica e cumprimento da lei ; o mercado único teria de ser relançado de modo a tornar-se uma realidade; os comissários europeus teriam de ser em menor número mas aumentar em pedigree político de modo a reforçarem a sua autoridade. E a União Europeia teria de ser capaz de abolir estruturas improdutivas como o Comité Económico e Social e o Comité das Regiões”. Haveria, claro, uma cláusula de saída: toda e qualquer soberania perdida durante os 15 anos do acordo seria automaticamente devolvida aos Estados em 2029. Hugo Brady chama a isto um “New Deal para o euro” ou um “quebrar o medo pelo método rooseveltiano”.

Ao pé disto a proposta histórica de se criar uma Federação Europeia parece uma brincadeira de crianças.
Em Maio de 1950, no que é hoje considerado o discurso fundador da União Europeia, Robert Schuman propôs que a integração da Europa fosse feita em pequenos passos e não “de um só golpe”. Vê-lo e ouvi-lo nos vídeos dos arquivos históricos é constatar num minuto como a Europa mudou. O então ministro francês dos Negócios Estrangeiros disse duas frases com o seu quê de poesia e mistério que ainda hoje nos fazem pensar. A primeira: “A Europa não foi feita, tivemos a guerra.” A segunda: “Para que a paz possa verdadeiramente tentar a sua sorte, é preciso, primeiro, que haja uma Europa.”
Por outras palavras, só há paz na Europa se a Europa for um todo uno. Ou: depois de terem sido incapazes de evitar duas guerras, os países europeus não podem ser deixados soltos, sem um chapéu comum e uma super-estrutura que os amarre à paz e à democracia.

Foi com base nesta ideia que, na Sala do Relógio no Quai d’Orsay, em Paris, com os seus carismáticos óculos pretos de massa, Schuman propôs criar uma aliança para lançar “os alicerces de uma Federação europeia, indispensável à preservação da paz”.

Quando Schuman morreu, o Presidente John Kennedy disse que ele “combinava imaginação e realismo”. Mas não só a “Federação europeia” está longe de existir, como agora, quando estamos em Maio de 2014 e à beira de mais umas eleições europeias, as palavras do “pai da Europa” parecem vir das nuvens. De que está Schuman a falar? Há 70 anos que a Europa está em paz, com excepções terríveis mas contidas. As gerações mais jovens já não são sensíveis ao argumento de que a integração europeia é a garantia da paz.

Vão alguma vez os federalistas convencer as populações europeias de que a sua é uma boa proposta? “Enquanto houver uma real divergência na qualidade da governação, como parece acontecer hoje na Europa, que incentivos tem quem beneficia de uma democracia de alta qualidade, como os nórdicos, para abdicar dessas instituições e se juntar a uma Europa que não funciona?”— interroga Pedro Magalhães.

O historiador e eurodeputado Rui Tavares, candidato às eleições deste domingo pelo novo partido Livre, prefere falar em “democracia” do que “federalismo”: “Federalismo versus soberanismo é um falso debate hoje em dia. O verdadeiro debate é democracia versus tecnocracia. Pode bem ser que a única forma de ter uma democracia europeia é que ela seja federal. Mas não tem de ser obrigatoriamente assim. Pode inventar-se na Europa uma forma de democracia continental que não seja federal (até pela dificuldade prática de ter uma maioria da população a favor do federalismo, ao passo que é bem mais fácil ter uma maioria da população a favor da democracia). Mas há muitos federalistas que querem uma federação à força, acreditando que ela vá ser democrática depois. Também isto não é forçosamente assim: a Europa pode federalizar-se com base nos seus elementos tecnocráticos e/ou burocráticos e, nesse sentido, vir a ser uma federação sem chegar a ser democrática — e, nesse caso, eu não a quereria.”

Francisco Assis, o cabeça de lista do PS, sublinha que é importante “manter a palavra ‘federalismo’ como horizonte regulador do projecto europeu, senão isto reduz-se a uma mera organização intergovernamental”, mas também já foi um tema mais premente.

Dos quatro cabeças de lista assumidos europeístas, Paulo Rangel (PSD), Francisco Assis (PS), Rui Tavares (Livre) e Marisa Matias (BE), só o primeiro responde “sim, sou federalista” sem hesitar. Assis, o mais próximo, diz: “Não sou um federalista puro e duro, um federalista absoluto. Sou um federalista mitigado.” Uma espécie de federalista “amansado” pelo peso dos sucessivos obstáculos que foram sendo levantados ao longo dos últimos 50 anos. Um deles — decisivo —, foi o chumbo, nos referendos de 2005 em França e na Holanda, da Constituição Europeia assinada em Roma pelos então 25 Estados-membros da União Europeia.

Mas mesmo Rangel, talvez o mais federalista de todos os candidatos às eleições do domingo, coloca um travão logo a seguir ao seu “sim”: “Como o federalismo não é viável no curto prazo, revejo-me mais no epíteto de ‘europeísta’ ou ‘pró-europeu’.” A cabeça de lista do Bloco de Esquerda, eurodeputada há cinco anos, diz que “o problema” é que a União Europeia “já tem federalismo a mais”, “já há um federalismo sem democracia”. Marisa Matias acredita em ideias aparentemente inconciliáveis: quer um Conselho Europeu “que represente os Estados e não os governos” e portanto  seja eleito directamente pelos cidadãos europeus, mas ao mesmo tempo não quer que Bruxelas tenha um controlo sobre os orçamentos nacionais. “Aceito que há áreas em que tem de haver partilha de soberania, mas não em matérias essenciais como a política orçamental.” Acima de tudo, insiste, não consegue “falar de federalismo como conceito abstracto”.
E aqui vamos de novo. Quando falamos de federalismo, não é óbvio sobre o que estamos a falar. Estes quatro candidatos europeístas fazem leituras em alguns casos opostas sobre a crise europeia, mas quando se tira a palavra “federalismo” da discussão e se fala de “passos futuros”, todos parecem concordar com um desenho genérico: uma União Europeia com mais integração social, com uma câmara alta e uma baixa eleitas directamente, e desse modo um Conselho Europeu que represente Estados e não governos, e um BCE com poderes semelhantes aos da Reserva Federal americana, capaz de emitir dívida em nome da União. Parece simples.

“Há a ideia de que com o federalismo há uma perda, mas é o contrário”, diz Rangel. “O federalismo dá mais poder aos Estados pequenos e médios porque a ponderação de votos passa a ser paritária (como acontece nos EUA e na Suíça) ou quase paritária (Alemanha). O federalismo favorece a igualdade entre os Estados e facilita a organização de alianças de geometria variável”, diz o eurodeputado. Portugal ficaria a ganhar “em protecção da sua autonomia soberana”, porque o federalismo “é mais amigo da autonomia estadual do que o hibridismo actual”. Também Assis só vê vantagens: “Os cidadãos são tratados em pé de igualdade, os Estados são tratados como iguais.” O candidato socialista sublinha um ponto: “Tem de ser um processo gradativo. O tempo e o modo são decisivos.”

Com a distância dos cientistas políticos, Pedro Magalhães desconfia. “Como se dá o salto? Receio que isso só vá acontecer quando houver o risco de desagregação e de caos. Só esse risco, só essa pressão, ou pelo menos o medo de que isso aconteça, o medo de que a ordem política e social e a segurança das pessoas sejam postas em causa, só isso poderá obrigar as elites políticas a impulsionar uma mudança e as pessoas a aceitá-la. Hoje, não sei qual poderá ser essa mudança, mas só essa pressão permitirá que possamos sair deste navegar à vista, deste ‘incrementalismo’.”