O triunfo da sombra
À terceira longa-metragem, Albert Serra continua a aplicar o mesmo princípio: depois de Dom Quixote (em Honra de Cavalaria) e dos três Reis Magos (em O Canto dos Pássaros), na raiz de História da Minha Morte voltam a estar figuras colhidas na literatura e no imaginário cultural, o veneziano Casanova (cuja História da Minha Vida dá, em negativo, título ao filme) e o transilvano Drácula, sendo que a questão da ontologia de cada um (personagem real vs. personagem de ficção) é, no modo da apropriação de Serra, absolutamente irrelevante. Porque, como já acontecia nesses outros filmes, o que lhe interessa é a silhueta simbólica das personagens, e através de Casanova e Drácula, num encontro que parece saído duma série B americana de antanho (e numa lógica, a do “encontro” precisamente, que também é, essa sim, nova no cinema de Serra), o que o realizador catalão “esquematiza”, no melhor sentido da palavra, é o confronto entre o excesso vitalista do primeiro e o magnetismo mortífero do segundo, o carácter teórico de um e a natureza fantasmática de outro. O homem “civilizado” contra as forças obscuras que o destroem, ou ainda, mais simples e precisamente, em termos de enquadramento histórico tal como Serra (em conversa publicada nestas páginas) o define, a oposição de dois imaginários dominantes do século XVIII, o racionalismo e o romantismo. Como naquele maniqueísmo primordial do cinema do mudo (que de resto, e via Murnau, tanto fez pelo enraizamento “nosferático” de Drácula no imaginário cultural), é a luz contra a sombra, e de maneira nada metafórica porque isso, a mise-en-scène da luz e da sombra, é um dado crucial no tratamento cinematográfico de Serra.
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À terceira longa-metragem, Albert Serra continua a aplicar o mesmo princípio: depois de Dom Quixote (em Honra de Cavalaria) e dos três Reis Magos (em O Canto dos Pássaros), na raiz de História da Minha Morte voltam a estar figuras colhidas na literatura e no imaginário cultural, o veneziano Casanova (cuja História da Minha Vida dá, em negativo, título ao filme) e o transilvano Drácula, sendo que a questão da ontologia de cada um (personagem real vs. personagem de ficção) é, no modo da apropriação de Serra, absolutamente irrelevante. Porque, como já acontecia nesses outros filmes, o que lhe interessa é a silhueta simbólica das personagens, e através de Casanova e Drácula, num encontro que parece saído duma série B americana de antanho (e numa lógica, a do “encontro” precisamente, que também é, essa sim, nova no cinema de Serra), o que o realizador catalão “esquematiza”, no melhor sentido da palavra, é o confronto entre o excesso vitalista do primeiro e o magnetismo mortífero do segundo, o carácter teórico de um e a natureza fantasmática de outro. O homem “civilizado” contra as forças obscuras que o destroem, ou ainda, mais simples e precisamente, em termos de enquadramento histórico tal como Serra (em conversa publicada nestas páginas) o define, a oposição de dois imaginários dominantes do século XVIII, o racionalismo e o romantismo. Como naquele maniqueísmo primordial do cinema do mudo (que de resto, e via Murnau, tanto fez pelo enraizamento “nosferático” de Drácula no imaginário cultural), é a luz contra a sombra, e de maneira nada metafórica porque isso, a mise-en-scène da luz e da sombra, é um dado crucial no tratamento cinematográfico de Serra.
Mas se as personagens representam “ideias”, e obedecem a uma natureza “esquemática”, metade do gozo do filme está, como habitualmente, no modo como Serra lhes dá carne e osso, essa espécie de ligeiro declive criado entre a sua imagem comum (ou “genérica”) e os corpos e rostos precisos que aqui os vêm encarnar. Ainda e sempre, Serra serve-se de não-actores (quem viu Honra de Cavalaria reconhecerá o rosto de Eliseu Huertas, o Drácula) e o seu método joga em pleno com a espontaneidade incerta que o registo dos intérpretes permite criar, entre a convicção do “primeiro grau” (a ficção, portanto) e a distância do “documento” (como se o filme também fosse a “reportagem” do trabalho destes actores a braços com as personagens de que foram investidos). Não será preciso avisar ninguém de que não se trata de um filme para gente impaciente, com os seus planos fixos por vezes longuíssimos, mas a quantidade de acontecimentos por plano pode ser monumental, e tem por norma a ver com esta capacidade da câmara de Serra para se interessar pelos gestos mais anódinos dos seus actores (Casanova a chupar romãs, por exemplo), numa espécie de acumulação contemplativa que se torna a matéria essencial do filme.
Acompanhada por outra, neste caso. Face à luz eminentemente natural de Honra de Cavalaria, e ao preto e branco muito mineral, como que desenhado a carvão, de O Canto dos Pássaros, História da Minha Morte ensaia outro tipo de sofisticação, conquistado também numa zona de fronteira, entre iluminação natural (e vinda de dentro do plano, como as velas de Barry Lyndon em versão povera e minimal) e a sua superação num pictorialismo “esfumado”, onde as cores lutam para se libertar do flou que as envolve e, no limite, as engole. É finalmente, apenas uma questão de avanço da sombra, até que apenas ela exista, transformando a “história da minha vida” na “história da minha morte”.