Horas de Matar é uma ficção, "não é um incentivo à violência", diz realizador

Politólogo e especialista em redes sociais analisam o vídeo polémico da banda portuguesa Mão Morta.

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Adolfo Luxúria Canibal no novo vídeo dos Mão Morta DR

Rodrigo Areias, realizador do videoclip, garante que o vídeo “não é obviamente um incentivo à violência”, dando mais importância à história construída pelo álbum Pelo Meu Relógio São Horas de Matar do que às imagens do vídeo. “Dizer que este vídeo incita à violência é dizer que a televisão, o cinema e qualquer objecto de audiovisual do século XX é violento”, diz Rodrigo Areias.

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Rodrigo Areias, realizador do videoclip, garante que o vídeo “não é obviamente um incentivo à violência”, dando mais importância à história construída pelo álbum Pelo Meu Relógio São Horas de Matar do que às imagens do vídeo. “Dizer que este vídeo incita à violência é dizer que a televisão, o cinema e qualquer objecto de audiovisual do século XX é violento”, diz Rodrigo Areias.

O realizador lembra que o single Horas de Matar e o seu vídeo são o último capítulo de uma narrativa constituída por todas as músicas do álbum e que lançar um teaser em que Adolfo Luxúria Canibal explica o novo álbum da banda teve como objectivo contextualizar a mensagem do álbum e das suas músicas: a história de um português de classe média, que vivia até à crise uma vida confortável e individualista e que ganha de repente preocupações sociais. "Ele, que tem um passado solitário, a única forma eficaz [de intervir] que encontra é matar”, diz Adolfo Luxúria Canibal no teaser do álbum.

O vídeo tem dois momentos, considera o realizador. "A nossa realidade nas imagens de fundo [imagens de São Bento e de políticos] e a ficção, em câmara lenta." Enquanto isso, Adolfo Luxúria Canibal canta versos como "ultrapassado o limite do ultraje toda a violência é legítima autodefesa".

"Aquilo que transmite é que, em Estados violentos, há actos de violência, como matar, que podem ser autodefesa, o que é a velha tese do terrorismo", diz o politólogo José Adelino Maltez, acrescentando que o videoclip e a música são usos legítimos da liberdade de expressão; no entanto, são usos antidemocráticos.

"Pode dizer-se que é ficção, mas o que vejo são armas reais, políticos reais e instituições democráticas reais", comenta Adelino Maltez. "As redes sociais apresentam muito esta solução que não faz parte da educação democrática. Reflecte um estado de desânimo e desespero. É a sempre perigosa banalização do mal."

Nelson Zagalo, professor do Departamento de Ciências da Comunicação do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, diz que o vídeo é complexo de analisar e a dinâmica própria das redes sociais leva a que o aspecto memorizado seja apenas o superficial – a violência. “Se usamos uma forma muito violenta, ela distrai-nos da mensagem", diz o investigador de redes sociais, acrescentando que na Internet as pessoas não têm um olhar analítico sobre os conteúdos, muitas vezes por falta de tempo e não por falta de bagagem cultural.

E qual é a mensagem mais profunda que Zagalo duvida que passe? “Conhecendo o percurso da banda, parece-me ser um grito-saturação, contra a falta de revolta, contra esta estagnação, contra todos nós.” A letra da música – que se perde pelo foco do espectador na violência, diz o professor – repete palavras agressivas, o que sublinha a atenção à violência.

Uma análise mais cuidada da música e das imagens de Horas de Matar mostra, por outro lado, uma mensagem fragmentada, diz Zagalo. Não há a culpabilização de uma só pessoa ou de um partido. Aparecem imagens de políticos de diferentes quadrantes partidários e a agressão passa a ser contra uma entidade abstracta, uma mensagem com que se poderiam identificar mais facilmente apartidários ou anarcas, diz Nelson Zagalo.

O professor da Universidade do Minho acrescenta que este não é um vídeo com características virais: está estudado que as pessoas partilham coisas que dão uma imagem positiva de si na Internet, e este videoclip causa uma primeira impressão de repulsa. Nelson Zagalo atribui as partilhas à perplexidade que as imagens causam.

Adolfo Luxúria Canibal, apesar de estar a “a leste das redes sociais” e das partilhas e comentários ao vídeo de Horas de Matar, disse ao PÚBLICO que este videoclip, tal como o disco e a história que conta, é uma obra de arte e não “um manifesto político”. “Nenhuma obra de arte, seja ela mais ou menos valiosa, tem qualquer intenção de incitar ao que quer que seja e podemos olhar para os exemplos históricos. Mesmo as vanguardas dos anos 60 não incitavam à revolução. A sua obra de arte era a revolução”, diz Luxúria Canibal.

“As pessoas estão demasiado imbricadas no seu dia-a-dia, funcionam quase mecanicamente. Queremos criar esse pequeno espaço de suspensão em que as pessoas possam pensar. Está longe de ser um incentivo ao que quer que seja”, diz o vocalista, acrescentando que é assim com toda a obra dos Mão Morta.

Rodrigo Areias não estava à espera desta grande partilha do vídeo nas redes sociais e diz que “só quem não faz é que não está sujeito a críticas”. Para o realizador, o sistema em que hoje vivemos e do qual todos participamos “deixa as pessoas nervosas e leva a estas reacções impulsivas”. Adolfo Luxúria Canibal acrescenta a esta ideia que o disco é “um pretexto para as pessoas manifestarem o seu mal- estar – esse é que é real e é violento".

Adolfo Luxúria Canibal não nega a relação da narrativa do álbum com a realidade actual portuguesa e explica-a na entrevista que deu ao jornalista Gonçalo Frota, a publicar na próxima sexta-feira no Ípsilon. “Quisemos assumi-lo [ao português real]. Mas não deixa de ser uma obra ficcional e vazia de expectativas interventivas a esse nível [revolta]. Quisemos o nosso olhar e a nossa linguagem propositadamente poéticos, porque achamos que é muito mais rico e interessante.”

Ao longo da entrevista, o vocalista da banda de Braga, que comemora agora 30 anos, sublinha a importância da ficção para colocar hipóteses de resposta a algumas questões. “No fundo, estamos aqui, em termos psicológicos, a pensar o que pode levar à revolta. Estamos a criar uma ficção, um percurso, que a possa explicar.”